terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O IRMÃO ALEMÃO, DE CHICO BUARQUE

Em crônica do dia 08 de setembro de 1991, o escritor Moreira Campos (1914 -1994) dizia: “Estorvo, que acabei de ler, é o recente livro de Chico Buarque. Livro confuso, a que falta certo andamento lógico. Ficam conosco muitas indagações. Dá-nos a impressão de um casaco mal costurado...”. E por ai vai. O autor de Dizem que os cães veem coisas (1987) tinha completa razão. Contudo, o “mal costurado” do romance em questão estava em consonância com os estilos de escrita proporcionados pela literatura de viés pós-moderno, ou seja, a desordem observada no romance Estorvo (1991) é, na verdade, sua ordem. Ao final do seu texto, Moreira Campos afirma: “diga-se, ainda, por honestidade, que, seja lá qual for o caos, o livro prende” (2013:359-360).

Começo essa resenha, recorrendo às palavras do autor de Os doze parafusos (1978), uma vez que, tal como fez, leio o recente livro de Chico Buarque, O irmão alemão (2014), logo que ele desembarcou nas livrarias. Confesso, inclusive, que, na minha fila de livros a serem lidos, O irmão alemão pulou na frente de A festa da insignificância (2014), de Milan Kundera. Fiz isso com uma dor no coração, tendo em vista que A festa da insignificância é o primeiro livro inédito de Milan Kundera em catorze anos. Por outro lado, o trabalho de escritor de Chico Buarque de Hollanda, tem chamado minha atenção, principalmente no que diz respeito às suas peças e romances. A novela Fazenda modelo (1974), por sua vez, deixa muito a desejar, estando muito distante devido ao seu caráter orwellianamente experimental, da qualidade dos seus outros trabalhos. Assim sendo, desde Estorvo (1991), passando por Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite derramado (2009), o trabalho literário de Chico Buarque vem em um crescendo, o que se faz notar de um romance para o outro. Ousamos afirmar, inclusive, que, com O irmão alemão, Buarque atinge sua maturidade enquanto romancista, assegurando lugar entre os grandes nomes da literatura brasileira. É claro que essa maturidade da qual nos referimos continuará sendo lapidada, acreditamos, a cada novo trabalho do autor de Roda viva (1968).

O irmão alemão, publicado pela Companhia das Letras, está dividido em dezessete capítulos. Ao final, traz uma informação sobre Sérgio Günther, o irmão alemão de Chico Buarque, uma nota explicativa do próprio autor, uma foto de Sérgio Günther, uma reprodução da propaganda dos cigarros Problem, além da reprodução de um documento enviado da Alemanha a Sergio de Hollander. A ficha catalográfica do livro, por sua vez, diz tratar-se de um romance brasileiro, logo, ficção.  Isso é por demais relevante, pois, mesmo Chico Buarque tendo tomando um assunto de família (um fato) e o transformado em matéria literária na composição do seu trabalho, isso não torna seu romance autobiográfico. Logo, não se deve confundir Francisco de Hollander com Francisco Buarque de Holanda, embora realidade e ficção se embaralhem na constituição da referida narrativa.

Toda a narrativa desenvolvida por Chico Buarque em O irmão alemão tem como ponto de partida a história de Sergio Günther, filho de Sérgio Buarque de Holanda e Anne Ernst (não há certeza quanto ao nome exato de Anne, conforme p.227), nascido em Berlim no dia 21 de dezembro de 1930; falecendo no dia 12 de setembro de 1981, sem que tenha havido contato dele com os irmãos brasileiros. A busca pelos detalhes dessa história “perdida” na História da família Buarque de Holanda é o leitmotiv dessa cativante narrativa de Chico Buarque. Como todo bom romance, O irmão alemão aponta não apenas para a busca de Sergio Günther, mas para todo o contexto histórico-cultural universal, com todos os seus desdobramentos no Brasil. Dessa forma, o romance de Chico Buarque de Hollanda apresenta-se como um “repositório” de acontecimentos sobre a Segunda Grande Guerra, liberação sexual, rebeldia juvenil, perseguições políticas, torturas e desaparecimentos recorrentes durante os regimes autoritários.

A narrativa de Buarque pode ser vista a partir de três círculos. O círculo maior seria o mundo, contextualizado pela Segunda Guerra. O médio teria como contextualização o Brasil dos anos da ditadura civil-militar, enquanto o circulo menor seria a casa dos Hollander, com suas paredes feitas de livros. A mesma narrativa também pode ser analisada ao contrário, em sentido inverso, caracterizando-se como um dos pontos altos do texto no que concerne à sua estrutura, ou seja, parte-se da casa da família dos Hollander, como microcosmo do enredo, para um espaço histórico maior, no caso o Brasil, ampliando-se para o espaço histórico-geográfico mundial. No que diz respeito ainda à estrutura do texto, contam-se como pontos positivos as inserções de cunho paratextuais postas no romance. Embora coisa parecida já tenha sido feita em trabalhos de outros autores (no Zero, de Loyola Brandão, por exemplo), isso não depõe contra o texto de Buarque; ao contrário, o enriquece. Como exemplo do que afirmamos, o bilhete (pp.8-9), as cartas (pp.33, 114, 115, 163, 164, 165,166), o ofício (pp.200-203), a dedicatória de Guimarães Rosa para Sergio de Hollander; na folha de rosto do Grande sertão: veredas (p.46); assim como os verbetes “ irmãos germanos” (p.36) e “scontroso” (p.72).

Como já dissemos, O irmão alemão pode ser considerado como um “repositório” da cultura da década de sessenta. Um mosaico em movimento de uma década que insiste em não terminar, uma vez que há ainda muitos esqueletos nos armários e tantos corpos por serem encontrados em países como o Brasil. Na narrativa de Chico Buarque, o amigo e o irmão do narrador desaparecem, tal qual ocorria nos anos de chumbo. A narrativa chega ao fim sem que saibamos, embora imaginemos, que destino tiveram. A mãe, Como as mães dos desaparecidos da vida real, chora e anseia a volta do filho que nunca mais verá. No que diz respeito aos nomes, se fôssemos fazer uma análise de alguns que habitam a narrativa buarqueana, identificaríamos nomes que nos parecem homenagens ou, quando não, referências a acontecimentos históricos e culturais. Assim sendo, o amigo do narrador Ciccio é Ariosto (Ludovico?), codinome Thelonious (Monk?). E o que dizer de Eleonora Fortunato? Teria ela algum parentesco com aquele famoso Gregório? A personagem Thelonious, por si só, dá pano para a construção de outro romance, tendo em vista a riqueza das tintas com as quais está pintada.

Outro espaço que poderia ser considerado um círculo dentro do círculo da casa dos Hollander seria a própria biblioteca, uma biblioteca universal, o próprio mundo. A biblioteca dos Hollander é outra grande personagem. A espinha dorsal da narrativa. Por muito pouco ela não toma as rédeas do próprio destino. O autor, no entanto, (quase) consegue mantê-la em seu lugar secundário na narrativa (secundário?). As descrições, referências e devaneios sobre os livros daquela biblioteca constituem-se em outro alto momento da narrativa em questão. Mas não apenas a cultura canônica (literatura e música especificamente) é ressaltada em O irmão alemão. Por suas páginas passeiam Marlene Dietrich, o Sabonete Palmolive, os Chicletes Adams, os Beatles, Cassius Clay, Jack Kerouac e Joan Baez; para ficarmos apenas em alguns.

A fina ironia do compositor Chico Buarque também pode ser notada na narrativa do romancista Chico Buarque. Destarte, não há como não rir quando o narrador diz: “... ele tem um livro pronto na gaveta: mas é poesia, e nem Rimbaud viveu de poesia” (p. 147). Ou ainda quando a estupidez e a neurose da ditadura eram tamanhas, que chegavam a censurar e decretar a prisão de autores estrangeiros ou já mortos. E assim, quando de uma batida policial na biblioteca dos Hollander, Borges e Cortázar são devidamente detidos para averiguações (p.155). O número de presos só não foi maior, afirma o narrador, porque os meganhas não chegaram até as prateleiras dos chilenos e cubanos.

Em termos gerais, o romance O irmão alemão, de Chico Buarque é a confirmação da maturidade literária de um autor, que já sabe como contar os temas mais áridos de maneira cada vez mais leve, palatável e cativante.

E se o narrador Francisco de Hollander, o Ciccio, encontra o irmão alemão? Cabe a você, leitor, descobrir. Boa leitura!

MAIS:

1. CHICO BUARQUE LÊ O IRMÃO ALEMÃO: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2014/11/chico-buarque-le-trecho-de-o-irmao-alemao-seu-novo-romance-assista.html

 2. VEJA SERGIO GÜNTHER, O IRMÃO ALEMÃO DE CHICO BUARQUE: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/veja-sergio-gunther-irmao-alemao-de-chico-buarque-cantando-no-programa-tele-bz-14571683

3. CAMPOS, Moreira. Porta de academia. Fortaleza: Edições UFC, 2013.





quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A RELAÇÃO DO MARANHÃO: JESUÍTAS E NATIVOS NO CEARÁ DO SÉCULO XVII

Com intuito de cumprir as determinações de seus superiores, no dia 20de janeiro de 1607, os jesuítas Francisco Pinto e Luiz Figueira embarcam no Recife rumo ao Ceará. A ideia missionária de conquistar o Maranhão, afirma Aragão (1985) surgiu por deliberação de Fernão Cardin, reitor do Colégio da Bahia e entusiasta da catequese maranhense. O historiador ainda afirma, que a escolha dos referidos padres jesuítas se deu por serem predestinados do martirológio e serem amantes do mundo embrutecido.
Conforme Aragão (1985):

Nessa primeira etapa, fez-se a viagem por via marítima, com o aproveitamento de navios salineiros. Desembarcaram no rio Mossoró, a 2 de fevereiro seguinte, e, nesse local permaneceram durante alguns dias. Não conduziam armas nem petrechos de guerra, mas serviam-se apenas de índios domesticados e designados para os trabalhos de guia e condução de alguns pertences. (ARAGÃO, 1985:31)

Sobre a chegada dos referidos religiosos ao Ceará, observemos o mesmo relato nas palavras do Barão de Studart (2001):

20 de janeiro – Os jesuítas Francisco Pinto e Luiz Figueira embarcam-se no Recife para a cathechese dos índios do Ceará em um barco, que ia carregar nas salinas de Mossoró. Acompanharam-os 40 índios, potiguares, tobajares e tupinambás. Prosseguindo pela costa septentrional 120 leguas, desembarcam no porto do Jaguaribe e d’ahi fazem seu caminho por terra a pé em demanda da Serra da Ibiapaba, tendo antes se encontrado com o chefe potiguar Algodão ou Amanay, que os acolheu com estima e respeito e sob cuja proteção estabeleceram uma aldeia, que tomou o nome de Ceará, da qual mais tarde se de tacaram duas outras com os nomes de Parangaba,  e Paupina e muito posteriormente a de Caucaia (...) (STUDART, 2001:6)

Os dois historiadores cearenses adaptam para seus textos, o trecho inicial da Relação do Maranhão, escrita pelo jesuíta Padre Luiz Figueira, enviada ao seu superior Claudio Aquaviva. Nas palavras do próprio padre tem-se:

PAX CHRISTI. No mez de jan.ro de 607 p. ordem de Fernão Cardim pr.al esta pr.a nos partimos pera a missão do Maranhão o p. e fr.co Pinto e eu cõ obra de sessenta Indios, cõ intenção de pregar o evangelho aaquela desemperada gentilidade, e fazermos cõ q’ se lançassem da parte dos portugueses, deitando de si os frãcezes corsairos q’ lá residem pera q’ indo os portugueses como determinão os não avexassem nem captivassem, e pera q’ esta nossa ida fosse sem sospeita de engano pareceo bem ao p. e pr. al  q’ não levássemos conosco portugueses e assi nos partimos sós co aquelles sessenta Indios. (Figueira, 1903:97)

Pe. Luiz Figueira, por Candido Portinari em 1942.
A jornada que os dois padres empreenderam pelas entranhas nativas das matas locais não se mostrou das mais agradáveis. Inúmeras foram as adversidades enfrentadas pelos dois missionários. Chuva torrenciais, rios transbordantes e caminhos lamacentos se uniam à fome, aos insetos, aos animais peçonhentos e ao intransponível da mata numa espécie de provação a qual estavam submetidos, tendo  a obrigação de vencê-la, para realizar a missão para a qual haviam sido enviados. Com enorme esforço, transpuseram a Serra dos Corvos, hoje Serra da Uruburetama, sentido na própria pele a inospitalidade dos tristes trópicos  habitados por homens “sem almas”, carente de conversão. Sobre as adversidades enfrentadas, Figueira afirma:

Nesta triste serra dos corvos parece q’ se juntarão todas as pragas do brasil, innumeráveis cobras e aranhas a q’ chamão caranguejeiras, peçonhentissimas de cuja mordedura se diz q’ morrem os homens, carrapatos sem conta, mosquitos e moscas q’ magoão estranham.t e e ferem como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora e assy parecião os índios leprosos das mordeduras, nem eu fizera caso de escrever essas cousas senão foram extraordinarias (...) (Figueira, 1903:103)

Chacina do Pe. Francisco Pinto em 1607, 
por Michiel Cnobbaert em 1667.
O assassinato do Padre Francisco Pinto foi, certamente, o coroamento às avessas da tentativa dos jesuítas de alcançarem o Maranhão. Impossibilitado de prosseguir, o Padre Luiz Figueira comunica, via carta (datada de 26 de agosto de 1609), aos seus superiores, as razões do fracasso da Missão, listando pelo menos seis motivos para tal e, mesmo assim, se oferecendo para uma futura empreitada se assim for o desejo da Companhia.

DO DOCUMENTO

Embora constitua um documento de fundamental importância para os estudos de História, cultura e língua brasileiras, especificamente para o Ceará, não se sabe ao certo aonde se encontram os originais de tal narrativa. A versão disponível na Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, tomo XVII (www.institutodoceara.org.br) para pesquisas é, conforme Florival Seraine (1987), uma reprodução de uma fotocópia, cujo original se acha guardado no arquivo S. J. Romanorum e que teria sido entregue  ao Barão de Studart,, historiador cearense, pelo jesuíta P. J. B. van Meurs, do Limburgo Holandês, por ordem do Superior Geral da Companhia de Jesus.
O documento utilizado pelo Padre Luiz Figueira para comunicar ao seu superior imediato tudo o que aconteceu  na Missão do Maranhão chama-se, como já aludimos ao longo do presente artigo, Relação do Maranhão. Mas afinal, o que devemos compreender por “relação”? Dentre as possíveis definições oportunizadas pelos dicionários, a que atende às especificações do documento ao qual analisamos é aquela que diz: “ato de relatar; relato, informação, descrição” (HOUAISS, 2004). Por qual razão Padre Luiz Figueira decidiu que teria que escrever um “diário de viagem” e enviá-lo ao seu superior, o Provincial Pe. Claudio Aquaviva?
A decisão de escrever a Relação do Maranhão não saiu da cabeça abençoada do Padre Luiz Figueira. Na verdade, o referido missionário, ao produzir tal documento, estava apenas cumprindo as orientações que haviam sido criadas pelo fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola. Desde a criação da Companhia de Jesus, a obrigação de se escrever cartas já era uma realidade. Durante toda sua vida, Inácio de Loyola teria escrito por volta de 7000 cartas nas quais tratava não apenas das questões relacionadas ao funcionamento das obras da Companhia, mas também sobre a forma, o conteúdo e o estilo na feitura das missivas. Produzir cartas e enviá-las aos superiores era algo já previsto nas Constituciones, o documento que contém as normas que regem a Ordem. Conforme Pécora (2012:34), as Constituciones obrigam os missionários a manter o “Superior da Companhia” informado por carta dos êxitos e reveses da missão, a fim de que soubessem se era conveniente permanecer em uma missão ou dirigir-se a alguma outra.
Ainda sobre a correspondência dos jesuítas, Pécora afirma (2012):

Essa correspondência entre superiores e inferiores, segundo as Constituciones, também “ajuda na união dos ânimos”, a fim de que saibam uns dos outros, recebam novas informações das várias partes do mundo em que se encontram e obtenham consolação mútua em Cristo. Autoridades eclesiásticas locais ou reitores deveriam ainda escrever a cada semana ao Provincial – o representante da Ordem em uma província – que, por sua vez, escrevia ao Geral, a maior autoridade da Ordem no mundo (...). No início de cada quadrimestre, devia-se escrever uma carta em vulgar e outra em Latim ao Provincial, apenas com “coisas de edificação”, cujas cópias eram enviadas ao Geral e a outros da província e fora dela. (Pécora, 2012:35)
 
A constante produção de cartas, prevista como norma nas Constituciones, deixa claro três aspectos relacionados ao funcionamento da Ordem. O primeiro seria a informação, o segundo a ideia de que todos compunham um só corpo, mesmo que seus membros constituintes estivessem distantes, apartados. O terceiro aponta para o chamado impulso da experiência mística.  No entanto, o que nos interessa aqui é apenas o primeiro aspecto por este tratar da preocupação dos jesuítas com o registro escrito da informação. No período da colonização do Brasil, por exemplo, a correspondência era, basicamente, a única maneira de se relatar os fatos ocorridos nas Missões encampadas pelos Jesuítas. Assim sendo, compreende-se a razão da preocupação do Padre Luiz Figueira em registrar todas as informações sobre a Missão do Maranhão, tal qual se supõe, fez o Padre Antonio Vieira acerca da Missão da Serra da Ibiapaba. Neste caso, o termo “relação” em Relação do Maranhão, por exemplo, refere-se à obrigação que os missionários tinham de relatar, de fazer um relatório aos seus superiores sobre os andamentos nas Missões. A relação (ou o relatório) não podia ser escrito de qualquer maneira. Embora a escrita presente no texto da Relação do Maranhão aponte para uma escrita produzida por um homem de profundo saber lingüístico, trata-se de uma escrita simples, objetiva, sem floreios. Isso também se deve às orientações estabelecidas por Loyola. Para ele, em determinação aos padres, suas cartas deveriam ser escritas para que pudessem ser lida por qualquer pessoa, especificamente as autoridades de Roma, as quais sempre se mostravam desejosas de saber sobre outros mundos. Em carta ao Padre Roberto Claysson, de 1555, na qual recrimina o estilo empregado pelo padre, afirma: uma coisa é a “eloqüência, atrativo e gala da linguagem profana”; outra, é aquela que cabe ao religioso, para quem o estilo conveniente deve assemelhar-se ao uso dos adornos recomendáveis para uma “matrona”, que sempre deve “respirar gravidade e modéstia. O modo de expressão não deve ser jamais exuberante e juvenil, e quando tiver de ser copioso, que o seja “mais por abundância de ideias que de palavras”.
Para Pécora (2012):

O decoro proposto por Inácio para a escrita jesuítica é fundamentado na ideia de que a virtude se opõe às “palavras inchadas de orgulho”. Assim, os ornatos da elocução exigem sempre limites de aplicação e submetem-se a uma ordem, gramaticalmente correta, ajustando a seriedade do assunto à simplicidade das palavras. Com esse cuidado, seria possível garantir a fidedignidade do relato e a verdade da fé. (Pécora, 2012:36)

Destarte, o estilo presente na Relação do Maranhão deixa claro a mestria que possuía o Padre Luiz Figueira no trato com a língua portuguesa. Compôs como afirma Seraine (1987) a Carta Bienal, em Latim, de 1602 a 1603. Dedicando-se ao estudo do tupi, elaborou a Arte da Gramática da Língua do Brasil, a segunda sobre o tema, no Brasil. Figueira, embora tendo sido educado e vivido quando as ideias renascentistas já influenciavam o mundo, opta por uma escrita contida, quando o esperado seria uma escrita rebuscada já recorrente entre os autores contemporâneos seus. Assim sendo, a opção por um estilo mais simples na escrita da Relação do Maranhão visa, claramente, atender as orientações pré-determinadas no que concerne à maneira de escrever, devidamente registradas nas Constituciones, elaboradas por Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Assim sendo, defendemos que um estudo acerca da Relação do Maranhão deva abarcar aspectos ligados a história, a cultura e a língua; apoiando nossa posição naquilo explicitado por Abbade (2006) quando afirma:

Língua, história e cultura caminham sempre de mãos dadas e, para conhecermos cada um desses aspectos, faz-se necessário mergulhar nos outros, pois nenhum deles caminha sozinho e independente. Portanto, o estudo da língua de um povo é, consequentemente, um mergulho na história e cultura deste povo. (Abbade, 2006:214)

No caso do povo brasileiro, especificamente no período colonial, a língua dominante é a do indígena, o que obriga os catequistas a aprendê-la para melhor conduzirem seus interesses. Por muito tempo, observa-se certo equilíbrio entre a língua do colonizado e a do colonizador até que o português, bastante influenciado pela língua “nativa”, predomine. De todas as trocas culturais operadas no período colonial entre indígenas e portugueses, aquela que agiu diretamente na formação da língua nacional foi, certamente, a mais profunda e a mais relevante. Neste caso, deve-se considerar a relevância intelectual dos missionários da Companhia de Jesus na constituição e evolução lingüística nacional iniciada no período colonial brasileiro. 
Relação do Maranhão (pág.1)
No que concerne ao Ceará, a Relação do Maranhão constitui-se em farto material para os estudos linguísticos, uma vez que o estilo empregado por seu autor está eivado de expressões, termos, palavras e lexias, que miscigenam a língua do colonizador com a língua do colonizado. Por não possuir objetivos literários, a Relação do Maranhão, conforme Seraine (1987) aproxima-se mais da fala comum. Contudo, ressalta o autor, a tradição escrita é bem mais conservadora que a oral e, por conseguinte, a linguagem escrita de uma época jamais poderá ser a reprodução do falar normal de que ela é considerada a representação gráfica. E assim, mesmo tendo sido produzida em meados do século XVII, a Relação do Maranhão é um corpus que permite amplos estudos sobre o estilo, o léxico, a filologia, a morfologia e a fonética, entre outros. Muitos dos termos e expressões com as devidas acepções atribuídas no documento em questão pelo Padre Luiz Figueira constituem elementos de composição e uso recorrente no falar atual do povo cearense, o que demonstra a influência, a atualidade e a importância do referido documento seiscentista para a compreensão da história, da cultura e da identidade linguística do povo cearense.


Artigo escrito em parceria com Geórgia Gardênia Brito Cavalcante. Disponível na íntegra em: Encontro Internacional de História.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A POESIA POLIÉDRICA DE JÁDER DE CARVALHO

        A literatura brasileira está, sem sombra de dúvidas, inserida no enorme arcabouço da literatura universal. Mesmo que ainda seja formalmente reduzida a presença de autores brasileiros no cânone da literatura mundial, tal questão não diminui a qualidade da literatura produzida por nossos autores, sejam eles clássicos ou modernos. Ao contrário, a produção literária em nosso país continua de vento em popa, sendo produzida desde os mais recônditos sítios às mais desenvolvidas regiões, ou seja, independentemente das limitações decorrentes das diversidades geográficas, culturais, econômicas, políticas e ideológicas; a literatura brasileira tem se firmado como uma das mais expressivas representações culturais do Brasil.

Assim sendo, este trabalho objetiva refletir sobre a literatura brasileira em termos gerais e, sobre a literatura de Jáder de Carvalho, em termos mais específicos. Para tanto, tendo em vista o referido autor
Jáder de Carvalho
ter transitado com destacada relevância pelo jornalismo, a prosa, o ensaio sociológico e a poesia; faz-se necessário um recorte na sua obra com o intuito de não nos afastarmos daquilo que nos propomos no título do presente artigo. Destarte, tomaremos a poesia, mais especificamente seu livro Água da Fonte, de 1966, como objeto de análise, observando o quão multifacetada ela se apresenta. Para tanto, ao discorrermos sobre sua poética, utilizaremos o termo “poliédrica” por reconhecermos as inúmeras faces da sua poesia e acreditarmos que a analise da sua obra poética não cabe em gaiolas conceituais limitadoras e finitas. Mas sim, em estudos que se pautem por uma abrangência mais ampla da concepção poética do autor, vanguardista ao seu tempo, e ainda atual quase noventa anos após a publicação do seu primeiro trabalho O Canto Novo da Raça (1927) em parceria com Sidney Neto, Mozart Firmeza e Franklin Nascimento; trabalho este que inaugura o Modernismo em terras de Alencar.

                 Ao listarmos as obras de Jáder de Carvalho, observamos as datas de publicação que separam uma obra da outra. A proximidade das datas indica o quanto o autor era dedicado ao fazer literário, publicando um livro no período de um ou dois anos, no máximo três.  Ao contrário do que possa parecer, a quantidade de livros produzidos a essa velocidade não interfere de forma negativa na qualidade da obra do autor, a qual se apresenta como de extrema qualidade literária.
Quando veio para Fortaleza, no ano de 1915, Jáder de Carvalho tinha apenas catorze anos de idade. Em 1918, ou seja, contando dezessete anos, o poeta vindo da Serra do Estevão trava contato com o escritor e artista plástico Otacílio de Azevedo (1892-1978). Sobre a qualidade da produção literária de Jáder de Carvalho, afirma Azevedo, em seu livro Fortaleza Descalça (2012):

Frequentava um grupo do qual faziam parte, entre outros, Martins d’Alvarez, Edigar de Alencar, Sobreira Filho e Aldo Prado. Nessa época, Jáder de Carvalho já escrevia muito bem, tanto o verso como a prosa. Mais tarde, seria ele grande jornalista e grande poeta. (AZEVEDO, 2012:291)

Sobre o verso de Jáder de Carvalho, Otacílio de Azevedo aponta:

Seu verso amoldou-se posteriormente à estética Modernista. Mas, ao mesmo tempo em que nos conhecemos, escrevia poemas de sabor simbolista, cheios de musicalidade, evocando noturnos e outonos. Ou então, levemente parnasiano (...). (AZEVEDO, 2012:291)

Como exemplo do que afirma, Otacílio de Azevedo cita o poema “Alma”, do livro Água da Fonte (1966:39).

“Alma de viajor de mil viagens,
sigo, num sonho, naves andarilhas
que se esfumam nas líricas paisagens
de angras azuis e solitárias ilhas.

São-me errantes e tristes as imagens...
À lembrança das velas e das quilhas,
formam golfos e idílicas paisagens
e enchem-me os olhos de asas e de milhas:

Asas – quem sabe? – para as minhas ânsias;
milhas para eu sentir o Inalcançado,
no meu roteiro feito de distâncias,

mas onde eu cante sob um céu mirífico
e sonhe um porto virgem, mergulhado
numa doçura de ilha do Pacífico...”

No que diz respeito ao caráter combativo de Jáder de Carvalho e seu reflexo na obra do poeta, Azevedo afirma:

(...) seu profundo sentimentalismo formava apenas uma faceta do homem, que era igualmente combativo, chegando às raias da temeridade nos terríveis artigos com que atacava os inimigos nas colunas de jornais (...).
Talvez justamente por causa desse espirito de luta, Jáder aderiu ao movimento modernista, passando a escrever poemas bem diferentes daqueles que escrevia antes. Abandonando a rima e a métrica (...). (AZEVEDO, 2012: 292)

Para corroborar o que diz, Otacílio de Azevedo aponta os poemas “Cabocla” e “Poema”. Ambos estão em Água da Fonte (1966). Em “Cabocla” (p.192), lê-se:

“Cheiroso inferno dos violeiros
rainha outrora nos batuques, no xerém:
atordoante,
selvagem,
antiga e morena flor dos sambas sertanejos,
é cabocla, tu és no teu reinado extinto
a fecunda promessa do homem novo.
O homem contemporâneo de Orós
nascerá de ti, cabocla.
(Não ouves o rumor dos passos do teu filho?)”

Em “poema” (p.68), tem-se:

“Laura lê poetas.
Laura declama.
Ontem, ela me procurou:
___ Olha: poema não é o que dizes, isto é, uma poesia qualquer.
Está aqui no dicionário:
“Composição poética, de certa extensão e com enredo.”
___ Pois o livro mente ___ respondi.
E, depois de beijar a Amada e Musa:
___ Poema, Laura, às vezes nem precisa ter versos.
Às vezes, basta um nome. O teu, por exemplo.”

Os poemas citados até aqui estão publicados no livro Água da Fonte, de 1966. A referida obra foi publicada pela editora Instituto do Ceará, em Fortaleza, e é dedicada a Nertan Macedo e F.S. Nascimento. O livro é composto de cinco partes. São elas: “Água da Fonte”, “Canções do Entardecer”, “Terra Bárbara”, “Ilhota do Diabo” e “Terra de Ninguém”. Em nota aos leitores, em Toda a Poesia de Jáder de Carvalho (vol. 1,1973), o autor afirma: “Em ordem cronológica, publiquei Terra de Ninguém, Água da Fonte e Cantos da Morte. Respeitei a integridade do primeiro e do último. Quanto ao segundo, dele extrai Terra Bárbara. Assuntos regionais. Ritmo, feição e sentido modernistas. Fiz cortes e acréscimos”. Assim sendo, Terra Bárbara é relançado em 1982 pela editora Terra de Sol. Na segunda página da obra, logo abaixo do título, lê-se: “ poemas telúricos retirados da primeira edição de Água da Fonte e ora acrescidos de muitos outros do mesmo gênero ainda inéditos”. A orientação do autor é bastante oportuna, uma vez que sua obra ainda está um tanto dispersa, o que causa certa confusão quando se busca fazer um levantamento geral da sua produção.
No que diz respeito à fortuna crítica acerca da obra do referido autor, mesmo ainda tímida, observa-se um crescimento, bem como um interesse crescente por parte de novos pesquisadores. Entre estudiosos já estabelecidos, observamos a análise desenvolvida por Pedro Lyra, em Poesia Cearense e Realidade Atual (1975). Na referida obra, Pedro Lyra discorre sobre os trabalhos de autores dos Grupos Clã e SIN. Do primeiro, o autor selecionou seis escritores e denominou suas análises da seguinte forma: “Antônio Girão Barroso e Angústia”, “Jáder de Carvalho e Rebelião”, Otacílio Colares e Burocratismo”, “Artur Eduardo Benevides e Desessencialização”, “Francisco Carvalho e Reificação” e “Carlos D’Alge e Inquietude”. Quanto ao Grupo SIN, os autores em análise são: “Barros Pinho e Solitarismo”, Rogério Bessa e Desnaturação”, “Yêda Estergilda e Cotidianidade”, “Marly Vasconcelos e Nostalgia”, “Linhares Filho e Fatalismo”, “Horácio Dídimo e Esperança”, “Roberto Pontes e Libertação”.

Ao discorrer sobre poesia e rebelião em Jáder de Carvalho, Pedro Lyra afirma:

Há três faces-fases distintas na poesia de Jáder de Carvalho: a 1ª) telúrica, representada por Terra de Ninguém e identificada com o localismo do movimento modernista de 22; a 2ª) política, representada por Terra Bárbara e identificada com o substancialismo da geração de 30; a 3ª) lírica, representada por Água da Fonte, Cantos da Morte e Temas Eternos, e identificada com o instrumentalismo de 45. As duas primeiras, estilizando a estrutura e a linguagem populares da literatura de cordel, encontram-se num ritmo então original, de feição épica, onde o verso se confunde com a frase, a estrofe com o parágrafo, e a composição, embora nunca desça a um nível prosaico, resulta no que chamarei de poema-conto, - e que a terminologite semiótica poderia chamar de ‘contoema’, e o poema continuaria pagão. A terceira, fruto da maturidade do poeta, já ultrapassada a explosão da juventude, se concentra na forma fixa do soneto, opera um retorno aos temas eternos e, literariamente falando, consiste num regresso. (LYRA, 1975:27)

Para o referido crítico, o aspecto lírico da poesia de Jáder de Carvalho é um retrocesso, considerando mais representativos da poesia do poeta em estudo suas faces / fases telúrica e política. É nessas faces/fases, conforme o crítico: “onde temos, na espontaneidade da linguagem e na epicidade do verso, um poeta identificado com sua terra, seu tempo, sua gente – no que estes têm de mais característicos, - fontes da Arte que faz a História”.
Nosso trabalho, por sua vez, está ancorado basicamente nos termos “canto” e “poliédrica”. Sabendo-se que o canto nada mais é do que cada uma das partes de um poema longo; concebemos a obra poética de Jáder de Carvalho não apartada em livros com temáticas dissociadas entre si, mas como partes integrantes de um poema longo devidamente inter-relacionadas. Poema longo esse que pode ser compreendido como a poética do autor ou como a própria vida. Assim sendo, não podemos concordar com o autor de Poesia Cearense e Realidade Atual (1975), quando enclausura a poesia do poeta de Água da Fonte (1966) em três faces/fases. Para nós, trata-se de uma classificação simplista e reducionista que não abrange as temáticas propostas na poesia do referido escritor. Daí, por consideramos a poesia jaderiana, um manancial de temáticas possibilitadoras das mais profícuas interpretações, é compreendemos sua poesia como poliédrica, uma vez que um poliedro, tal qual a poesia de Jáder de Carvalho, é constituído de muitas faces. Por outro lado, vemos como coerente o uso do termo “rebelião” aplicado à literatura de Jáder de Carvalho, uma vez que o referido termo indica oposição à autoridade estabelecida; podendo significar ainda oposição, insurreição e revolta. Dessa forma, a poesia insubmissa de Jáder de Carvalho, assim como o próprio poeta, estará sempre se rebelando contra toda e qualquer forma de submissão, aprisionamento e limitação. 


 Obs: Esse trecho é parte integrante de um artigo maior, escrito em parceria com Geórgia Gardênia Brito Cavalcante Carvalho, disponível na íntegra em http://encontrosliterarios.ufc.br/ 

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

SEXO, DESVIO E DANAÇÃO

Jeffrey Richards
Se ao longo da história da humanidade o sexo tem feito a alegria de muita gente, por outro lado, a falta dele tem afetado negativamente a cabeça de outros tantos. Atualmente muita gente tem assumido posicionamentos acerca de tudo que diga respeito a vida sexual, dos outros, é claro. E, como diria Caetano Veloso: “ ... a vida é tão estreita/nada de novo ao luar/todo mundo quer saber/ com quem você se deita/ nada pode prosperar...”. Essa obsessão com a vida sexual dos outros já é, por si só, o absurdo dos absurdos. Se acompanhada da hipocrisia propagada por algumas religiões então, é o retrocesso elevado à potência infinita. É uma volta ao inferno da Idade Média. O grande problema é que estamos em uma época tida como pós-moderna, na qual abundam liberdades, tecnologias e direitos. Mas, retomando o grande compositor baiano: “... alguma coisa está fora da ordem...”, no que diz respeito a esse discurso encharcado de preconceito, atraso e violência contra as orientações que são diferentes das nossas. Seríamos homens contemporâneos com mentalidades ainda medievais?


E é também sobre questões como essas que Jeffrey Richards, professor de história da cultura na Universidade de Lancaster, Inglaterra, discorre em seu interessante trabalho denominado de Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média, publicado no Brasil, em 1993, pela Jorge Zahar Editor, a partir da primeira edição inglesa publicada em 1990 por Routledge. O título original do referido trabalho é Sex, Dissidence and Dannation: Minority groups in the Middle Ages. Para desenvolver sua pesquisa, o referido professor selecionou seis grupos a serem analisados. São eles: os judeus, hereges, leprosos, bruxos, prostitutas e homossexuais. O livro está dividido em oito capítulos. No primeiro, o autor faz uma abordagem histórica do contexto medieval, enquanto no segundo, discorre sobre o sexo na Idade Média. Cada grupo selecionado como objeto da pesquisa, constituirá cada um dos próximos seis capítulos. Para cada capítulo, ao final do livro, há referências bibliográficas específicas. O livro ainda conta com ricas ilustrações reproduzidas de obras literárias e documentos religiosos. A ilustração da capa, por exemplo, é uma imagem de O Juízo Final, de Stefan Lochner (1400 – 1452). A edição da Zahar conta ainda com a tradução de Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar e revisão técnica de Francisco José Silva Gomes.


Sobre a obra, convém observamos o que é dito na sua apresentação:


Para as autoridades da Europa medieval, tanto seculares quanto eclesiásticas, a dissensão solapava as raízes de um mundo ordenado e estabelecido. Permitir que um único herege ou espírito livre escapasse à justa punição condenaria toda a estrutura da sociedade à decadência e à dissolução. Assim, a dissensão deveria ser extirpada, inicialmente através da razão e da argumentação, mas em seguida com selvageria crescente, através da tortura  e do encarceramento, do fogo e da espada. Mas por que o perigo advindo de uma minoria de indivíduos, geralmente pobres e desprovidos de poder, era considerado uma ameaça tão forte e imediata?


E é exatamente sobre isso que se dá o trabalho em questão. Tomando os grupos mencionados, Jeffrey Richards percebeu que era a aberração sexual que os unia. Tem-se:


A igreja buscava regular até mesmo os detalhes mais íntimos da vida humana, mas sem muito sucesso. Algumas práticas sexuais não-oficiais poderiam ser toleradas; mas, progressivamente, o desvio foi considerado como uma influência maligna, não somente sobre a vida individual, mas sobre o mundo como um todo. Em uma época e expectativa pelo segundo Advento de Cristo, esperava-se que homens e mulheres levassem uma vida piedosa; e tudo que não fosse assim consistia um ultraje. À medida que se consolidaram as estruturas de poder na sociedade, os desviantes tornaram-se bodes expiatórios convenientes para todos os males de um mundo amedrontado: invasão, fomes e doenças, particularmente a Peste Negra.


Sobre seu próprio trabalho, Richards afirma:


Num tempo em que a sociedade parece estar se tornando cada vez mais intolerante com as minorias, em que todos os dias um tablóide raivoso e sem senso de medida incita ao racismo, sexismo, chauvinismo e à homofobia, talvez seja oportuno examinar as maneiras como as eras passadas encaravam e lidavam com as minorias em seus meio. Não busco fazer comparações diretas e deixarei ao leitor a tarefa de tirar as conclusões que devem ser tiradas de como a sociedade moderna difere do seu símile medieval nesta área. O que pode ser aventurado é uma explicação sobre a natureza, raízes, alcance e efeitos do tratamento dispensado pelas sociedades medievais às suas minorias. (RICHARDS, 1993:11).



É Sempre tempo de ler e reler a História, para não se correr o risco de  atirar no próprio pé (ou na cabeça), uma vez que tudo que é histórico também é cíclico. Por mais que o tempo passe, algumas pessoas insistem em não querer ver o passar do tempo. Sêneca (4 a.C - 65 d.C) nos alerta, que o que urge não é a mudança de tempo, mas a mudança de mentalidade. Algumas pessoas, diz ele, existem por muito tempo, mas não vivem. 

E eu, cá com meus botões, penso que é como alguém ter "vivido" a vida toda em Fortaleza sem jamais ter escutado Ednardo cantar "Longarinas" no aterro da Praia de Iracema. 


terça-feira, 30 de setembro de 2014

A RELAÇÃO DA MISSÃO DA SERRA DE IBIAPABA

Por iniciativa de Inácio de Loyola (1491 – 1556), a Companhia de Jesus foi criada no ano de 1534. Contudo, somente por volta de 1537, juntamente com mais seis estudantes da Universidade de Paris, é que Loyola vai para Roma solicitar ao papa Paulo III autorização para criar a Societas Iesu, a Ordem dos Jesuítas. Autorização concedida, Inácio de Loyola para de peregrinar pelo mundo e se estabelece em Roma em 1538, tornando-se Superior-Geral da Companhia que acabara de criar. O referido religioso redige, então, as Constituições, documentos esses que regerão a Companhia a partir de 1554. Sob a liderança de Loyola, os missionários são enviados para os quatro cantos do mundo com o objetivo de levar a palavra de Jesus aos mais recônditos lugares. Contudo, o contato entre os missionários e seus superiores deveria ser mantido a qualquer custo. E assim, tendo em vista as dificuldades de comunicação, escolheram a carta como forma de contato. Embora os assuntos tratados nas cartas fossem os mais variados, com o tempo a carta se torna a principal forma de relatar os acontecimentos nas chamadas missões. Era através dela, da missiva, que todos deveriam compartilhar seus sucessos e suas dificuldades. Uma vez tratar-se a carta de um verdadeiro relatório, recebeu oficialmente o nome de Relação.

As narrativas produzidas sobre o Brasil colonial são caracterizadas por discorrerem sempre sobre os mesmo aspectos, ou seja, os hábitos dos nativos, as riquezas naturais, a fauna e a flora. E assim sendo, os documentos produzidos pelos jesuítas que por terras cearenses estiveram não fogem a regra. Entre eles, podemos citar a Relação do Maranhão, do padre Luiz Figueira e a Relação da Missão da Serra de Ibiapaba, cuja autoria, embora sem comprovação, seja atribuída ao padre Antonio Vieira.
Relação da Ibiapaba (pág. 1)
Existem duas versões conhecidas da Relação da Missão da Serra de Ibiapaba: a versão da Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (www.institutodoceara.org.br) e a versão publicada em livro, no ano de 2006, pela editora portuguesa Almedina, com o nome de A Missão de Ibiapaba. A edição da Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, do Instituto, constitui-se de cinquenta e três páginas impressas, numeradas do número oitenta e seis ao número cento e trinta e oito, disponíveis no tomo XVIII da referida Revista. Os assuntos a serem abordados ao longo do documento são previamente apresentados, uma vez que o corpo da Relação traz dezessete subdivisões, indicando cada um dos assuntos a serem tratados. O texto de Padre Antonio Vieira se inicia com a seguinte observação, posta logo abaixo do título do documento: “primeiros Missionários da Companhia de Jesus que no Brazil passarão por terra ao Maranhão: seus trabalhos. Morre na empreza o venerável padre Francisco pinto, e outros” (p.86). Tendo em vista os negócios entre a Igreja Católica e a coroa portuguesa, não é com bons olhos que nosso narrador vê a presença dos holandeses em território nacional, bem como sua relação como os nativos tabajaras. Mas não eram apenas os holandeses a ocupar terras nordestinas. A gênese da formação do povo brasileiro, a miscigenação, algo que só bem mais tarde seria observado por Gilberto Freyre, já era devidamente notada por Vieira, o qual mais uma vez não vê com bons olhos a tal miscigenação. Deduz-se que, para ele, toda essa presença estrangeira em nada contribuía para a efetivação dos objetivos da Companhia em terras nordestinas. Eis o que afirma o religioso:

... eram verdadeiramente aquellas aldeãs uma composição infernal ou mistura abominável de todas as seitas e de todos os vícios, formada de rebeldes, traidores, ladrões, homicidas, adúlteros, judêos, hereges, gentios, atheus, e tudo isto debaixo de nome de Christãos, e das obrigações de Catholicos. (VIEIRA, 1904:94).

Certamente que o posicionamento do Padre Antonio Vieira não é apenas seu, mas de toda uma Europa sedenta por conquistar cada vez mais espaço e de uma Igreja descobridora das benesses advindas das conquistas. Assim sendo, a história do Ceará e a cultura daí surgida estão impregnadas pelos resquícios da ambição eurocêntrica, a derrama do sangue nativo e a imposição de uma fé que nem de longe era a desejada. Embora não se justifique, o povo nativo cearense não foi o único “bárbaro” a sofrer tal violação. Por toda a América Latina, muitos povos foram invadidos, violados, extirpados de suas famílias e expropriados de seus bens e, muitas vezes exterminados em nome de uma cultura que não desejavam para si e em nome de uma fé que não era a sua. Documentos como a Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, se lidos detidamente, dizem muito dessa dominação histórico-léxico-cultural a qual o povo cearense especificamente, e o povo latino-americano, genericamente, esteve submetido.
Além dos aspectos históricos e culturais, a Relação da Missão da Serra da Ibiapaba também possibilita o estudo da língua sob suas mais variadas vertentes. Que sejam: a fonética, a morfologia, a sintaxe e o léxico. Em relação ao documento mais antigo, a versão da editora Almedina mantém o mesmo texto e dá textualmente ao padre Antonio Vieira a autoria do documento. Convém ressaltar que o documento original não traz a assinatura do referido religioso. Excetuando-se esse detalhe, a edição se notabiliza por trazer um valioso prefácio de autoria de Eduardo Lourenço e um posfácio não menos relevante, assinado por João Viegas.

          Chegado ao século XXI o homem ainda luta para conseguir ter seus direitos respeitados; seja no que diz respeito à sua liberdade individual, à liberdade de expressão ou à assunção da sua identidade. Isso, contudo, não tem se mostrado tão simples assim. A civilização do espetáculo tal qual analisada por Vargas Llosa (2013), mas já anunciada como sociedade do espetáculo, por Guy Debord (1967) tem causado intrigante interferência naquilo que se convencionou chamar de cultura. Se o conceito de cultura estava ligado ao ato de cultivar, como bem nos lembra Raymond Williams (2007), não nos parece mais ser bem assim. Instaurou-se, na verdade, uma cultura do efêmero, do descartável, que acaba por impedir que se perceba o que é realmente relevante para a constituição de um estado que se pretenda nação, ou seja, de um povo que se pretenda cidadão.

Padre Antonio Vieira
Analisando por essa ótica, percebe-se que um documento como a Relação da Missão da Serra de Ibiapaba é de relevante importância para a compreensão da gênese do povo cearense, por possibilitar seu estudo através de diferentes áreas do conhecimento. É, certamente, objeto para a Linguística, a História, a Historiografia, a Etnografia e a Filologia; somente para citarmos algumas áreas.
Ao longo dessa breve resenha, tentamos fazer algumas considerações acerca do referido documento, mas cientes da impossibilidade de abarcá-lo como um todo, tendo em vista sua amplitude. A Relação da Missão da Serra de Ibiapaba é um documento proporcionador de aberturas para inúmeros estudos que contemplem a língua, a linguagem, o discurso, a história, a cultura, bem como suas múltiplas acepções, ações, atividades, ressignificações e usos. 



Sobre Padre Vieira na Ibiapaba:

 http://www.opovo.com.br/app/colunas/anamiranda/2012/07/28/noticiasanamiranda,2886802/padre-vieira-na-ibiapaba.shtml