terça-feira, 30 de junho de 2015

A MEMÓRIA DE TODOS NÓS

Eric Nepomuceno é um dos nossos autores mais relevantes. Produz ficção, não ficção, e tem traduzido para o português, grandes autores de língua espanhola, tais como Gabriel Garcia Márquez, Julio Cortázar, Eduardo Galeano e Juan Rulfo; entre vários outros. Seu mais recente trabalho é o livro A memória de todos nós (2015), publicado pela editora Record. Trata-se de um trabalho de fôlego, que discorre sobre as sangrentas ditaduras que, por anos, assolaram a América Latina.
Nas palavras do próprio autor:




Este livro conta histórias passadas na Argentina, no Chile e no Uruguai. Não são histórias únicas, singulares. Ao contrário: fazem parte do vasto e perverso inventário das atrocidades padecidas pelos povos das nossas comarcas ao longo de décadas de infâmia.

Os personagens escolhidos – a uruguaia Macarena Gelman, a chilena Marcia Scantlebury, os argentinos Estela de Carlotto, Adolfo Pérez Esquivel e Juan Cabandié – são representativos de uma crença de ferro: a que diz que uma democracia só se consolida quando alcança o império da verdade, da memória e da justiça. Quando se reconhece que ocultar ou deformar o passado é uma forma segura de comprometer o presente e condenar o futuro. (NEPOMUCENO, 2015:51)

Muito recentemente tem-se visto na imprensa algumas manifestações pedindo a volta dos militares ao poder, no Brasil, como se os vinte anos de ditadura impostos à ao povo brasileiro fosse algo para se lembrar com o mínimo de orgulho que seja. O curioso nisso tudo, é que muitos daqueles que financiaram e apoiaram o golpe de 1964 ainda estão por aí saudosos das trevas que se abateram sobre esse país. O mais triste, no entanto, é vermos muitos jovens defendendo tamanha monstruosidade. Nesse contexto, o livro de Eric Nepomuceno, além de atual, mostra-se como uma forma de registro para, a partir da sua leitura, se renegue qualquer forma de justificativa de regimes de exceção, seja no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo.

O título A memória de todos nós parece ter sido criado a partir daquilo que sugere o documento publicado pela Secretaria Especial da Presidência da República, no ano de 2007, quando se discutiam as primeiras ideias sobre o que viria a ser a Comissão Nacional da Verdade. O trabalho se chamou Direito à Memória e à Verdade, e trazia a lume os trabalhos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. À época, Paulo Vannuchi era o titular da secretaria. Trata-se, como afirma Nepomuceno, de um trabalho imprescindível para o resgate do direito de todos nós à memória.

O caráter didático do trabalho de Eric Nepomuceno é outro ponto a se observar, uma vez que a maneira escolhida pelo autor para narrar os acontecimentos é bastante leve e acessível, apesar do assunto que trata. Dessa forma, todas as partes do livro se entrelaçam, tendo como fator de inter-relação as memórias de cada um dos personagens citados. Assim sendo, a primeira parte do livro, denominada de “A memória de todos nós” (pp. 7 – 47) constitui-se de um percurso histórico a partir do golpe que derrubou o governo constitucional do presidente Jacobo Árbenz Guzmán (1913 – 1971), na Guatemala, em 1954, até o final dos anos oitenta; quando a democracia começa a voltar ao continente latino-americano.

Sobre essa questão, convém reproduzirmos o que a afirma o texto na orelha esquerda da obra em questão:
Entre 1954 e 1990, a América Latina viveu um longo e tenebroso período. Começo com o golpe de Estado que derrubou o então presidente constitucional da Guatemala, Jacobo Árbenz, e, pouco depois, o que pôs no poder o general Alfredo Stroessner no Paraguai. No ano seguinte, caiu o presidente constitucional da Argentina, o general Juan Domingo Perón. A vez do Brasil chegaria em 1964. A do Chile e do Uruguai, em 1973. E a noite escura desabou.

Nesse turbilhão, houve um momento – 1976 – em que na América do Sul só havia dois governos constitucionais legítimos, os da Venezuela e da Colômbia. Todos os outros viviam ditaduras que sequestravam, torturavam, baniam e exilavam quem se lhes opunha, fosse de armas na mão ou com atos e palavras.

A partir se 1983, a democracia começou a voltar, primeiro na Argentina, depois no Uruguai e em seguida no Brasil. Em 1990, seria a vez do Chile. E desde então o continente latino-americano vive tempos democráticos, enfrentando o difícil e doloroso processo de encarar seu passado obscuro. (NEPOMUCENO, 2015)


Na página 50, o autor explica que o livro em questão foi escrito com o apoio da FLACSO – Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, como parte do projeto Pensar o Brasil: ciclo de debates Direitos Humanos, Justiça e Memória. Na sequência (pp. 51- 52), explica sobre a organização do livro e informa que o mesmo não contém histórias de brasileiros, mas traz um breve texto de Leonardo Boff. Essa parte do livro (pp. 53 – 59) chama-se “Brasil: a memória é subversiva”. “Argentina: o presente é fruto do passado” ocupa, por sua vez, as páginas 61 até 79. Na sequência, tem-se “Chile: um museu contra o esquecimento” (pp. 81 – 104); “Uruguai: a outra margem do horror” (pp. 105 – 125); “Argentina: a vida recuperada” (pp. 127 – 155) e, concluindo o livro, “Argentina: a dor maior” (pp. 157 – 188).


Eric Nepomuceno



O foco central de A memória de todos nós são as ações da chamada Operação Condor que, orquestrada pelos aparelhos repressivos das ditaduras instauradas na Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai; tinha por objetivo roubar os bebês de militantes presas, executar suas mães e doar seus filhos para serem criados por militares. “Para o regime dos generais na Argentina, os filhos dos sequestrados deveriam, necessariamente, perder usa identidade, desconhecer sua história, sua origem. O regime considerava que as ideias de seus pais podiam ser hereditárias. Portanto, era preciso cortar qualquer vínculo familiar”.

A memória de todos nós (2015) é um trabalho bastante oportuno, uma vez que discute a necessidade urgente de manter viva, sempre viva, a memória, para que, como afirma Leonardo Boff, ninguém esqueça, para que nunca mais aconteça.




 Eric Nepomuceno fala sobre seu livro: http://globotv.globo.com/globo-news/globo-news-literatura/v/literatura-eric-nepomuceno-lanca-livro-sobre-ditaduras-latino-americanas/4102344/ 


Outras leituras de Eric Nepomuceno:

1.    Coisas do mundo (1994)
2.    A palavra nunca (1997)
3.    Quarta-feira (1998)
4.    O massacre (2007)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

CRÔNICAS ABSURDAS DE SEGUNDA

As segundas-feiras costumam ser dias horríveis para muitas pessoas. Principalmente para aquelas que adorariam que os domingos fossem mais longos e que o fim da noite jamais chegasse. Entre essas pessoas talvez esteja a figura do cronista de jornal, aquele que deve estar com seu texto prontinho para que, já no café da manhã da segunda-feira, o leitor possa se deleitar com as noticias trazidas pelo jornal. É claro que me refiro aqui, especificamente, àqueles leitores que ainda não abandonaram de todo sua relação com o folhetim impresso, não desconsiderando que o mesmo ocorre com o leitor que lê o jornal em outro tipo de suporte. Esse, assim como eu, provavelmente lê o que lhe interessa já na noite anterior.

O leitor, certamente, não sabe das peripécias e malabarismo que o cronista às vezes precisa fazer para entregar seu texto, mesmo em tempos de Internet. E, convenhamos, o leitor não dá a mínima pra isso. O cronista que se vire, pois para o leitor, é o resultado final que realmente interessa. Mas o jornal. Ah! O jornal! Houve um tempo em que o jornal que trazia a crônica de hoje, estaria embrulhando peixe amanhã. Os tempos mudaram e, hoje, poucas são as pessoas que comeriam peixe embrulhado em jornal. Mas para onde vai o jornal que carrega aquela crônica que levou um bom tempo para ser escrita? Vai para os confins da rede e, provavelmente, para as nuvens. E, como se diz no interior, a nuvem é bem aí!

Raymundo Netto
Como nem todo mundo acessa a web e nem sabe o que é essa tal de nuvem, é sempre bom registrar o que se escreve naquele negócio chamado livro. E é exatamente isso que fez o escritor Raymundo Netto ao publicar uma seleção das crônicas que, entre os anos de 2007 e 2010, escreveu para o jornal O Povo. Conforme o próprio autor: “A maior parte dessas crônicas se desenvolvem a partir de “encontros” com escritores e personalidades cearenses vivos ou mortos – em literatura isso não faz muita diferença -, em um exercício intertextual, contextualizados com acontecimentos na cidade de Fortaleza, palco que serve de frigideira para a maioria dessa omelete”.

A ideia de Raymundo Netto em escrever suas crônicas a partir de “encontros” com escritores e personalidades vivos ou mortos da cena fortalezense, faz com que o leitor, juntamente com o narrador, revisite a Fortaleza, essa cidade que tanto assombra quanto seduz. Essa mesma cidade quase engolida pelos milhares de buracos que invadem suas ruas, devido a incompetência de seus gestores e pelo seu povo entregue à própria sorte. A cidade vista pelos olhos (verdes?) de Raymundo Netto é a “prima pobre” da Paris vista pelos olhos miúdos de Woody Allen, em seu filme Meia-noite em Paris (2011). E aqui tomo a liberdade de apontar uma aproximação da obra de Netto com a de Allen, no que concerne a uma observável exaltação do passado em relação ao presente. Sobre a comédia romântica de Allen, observemos uma das sinopses disponibilizadas na Internet:

Gil (Owen Wilson) é um escritor e roteirista americano que vai com a noiva Inez e a família dela à Paris, cidade que idolatra. Ele realiza vários passeios noturnos e sozinho, quando descobre que, surpreendentemente, ao badalar da meia-noite, é transportado para a Paris de 1920, época e lugar que considera os melhores de todos. Nessas "viagens", Gil vai a várias festas onde conhece inúmeros intelectuais e artistas que admira e que frequentavam a cidade-luz naquela época. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Ernest Hemingway, Salvador Dali dentre outros. Até que tenta acabar o seu romance com Inez, pois se apaixonou por Adriana (Marion Cotillard), uma bela moça do passado, e é forçado a confrontar a ilusão de que uma vida diferente (a "época de ouro" francesa) é melhor do que a atualidade.

O narrador de Raymundo Netto seria o nosso Gil, um flâneur a caminhar com atenção pelos mais inusitados espaços da cidade. Nas caminhadas, o narrador encontra e conversa com Rachel de Queiroz, Francisco Carvalho (Que poeta maravilhoso!), Ana Miranda e Mário Gomes; entre inúmeros outros. O resultado dessas conversas e andanças é o livro Crônicas absurdas de segunda (2015), uma vez que o referido cronista escrevia para o jornal exatamente às segundas. Trata-se de uma belíssima edição, publicada pelas edições Demócrito Rocha, composta de trinta e nove crônicas, sendo três inéditas. Há três textos introdutórios, sendo “Crônicas absurdas”, de Ana Miranda, “Crônicas”, de Sânzio de Azevedo e “Duas palavras”, do próprio Raymundo Netto explicando a origem, a construção e os resultados do projeto que acabou por gerar a obra em questão. O livro traz ainda um “posfácio” escrito por Pedro salgueiro, denominado de “Um dândi pós-moderno”, além da biografia do autor, bem como as referências bibliográficas.

A lexia “absurda”, no título da obra de Raymundo Netto, acaba por nos remeter ao Mito de Sísifo - Ensaio sobre o absurdo (1941), de Albert Camus (1913 -1960); bem como ao teatro do absurdo, de Samuel Beckett (1906 – 1989); especificamente sua peça Esperando Godot, de 1952. Embora sejam “absurdos” diferentes, as crônicas de Raymundo Netto acabam por dialogar entre si e com o outro, quando, de uma forma ou outra, discorrem sobre a própria condição humana, tal qual ocorre em Camus e Beckett. A série de crônicas que Netto aqui apresenta, afirma Ana Miranda, tem uma linha mestra, ou seja, é uma agenda de encontros com fantasmas. De repente o cronista se depara com algum autor de livros que ele mesmo leu, e não esqueceu. Os seus fantasmas literários tomam corpo e vida, conversam, zombam, tresvariam, surpreendem e nos fazem rir, mas às vezes de olhos marejados. Há algo mais humano, pergunto, e ao mesmo tempo mais absurdo?

Sobre o narrador de Crônicas absurdas de segunda (2015), Ana Miranda diz:

O narrador me faz lembrar um senhor de chapéu coco e fraque, muito elegante, cortês. Entusiasmado e fervoroso, vaga pelas ruas a olhar tudo e conversar com quem aparece ali. Gosta de conversa. Um narrador carregado de sentimentos, uma afetividade à flor da pele, e um pouquinho de malícia. Fala num tom de certo gracejo inocente, aproveitando todos os momentos para chistes e improvisos. É quase o mesmo narrador do primeiro livro de Netto, Um conto do passado: cadeiras na calçada, romance preciso e admirável, com jeito de crônica, no qual, enquanto se passa uma história de amor, a cidade vai se mostrando e se transformando.

O “se mostrar” e o “se transformar” da cidade, observados pela autora de Semíramis (2014), no romance de Raymundo Netto, também é facilmente identificável na sua crônica. Essa transformação que se dá com a cidade, também se dá com seus habitantes-personagens em uma espécie de simbiose. E assim também o é na relação da personagem de Owen Wilson com a Paris dos anos 20, no Meia-noite em Paris.

Revisitar Fortaleza é sempre um convite irrecusável. Mais uma vez, e com bastante esmero, o escritor Raymundo Netto nos lança o convite a partir das suas Crônicas absurdas de segunda (a nosso ver, crônicas de primeira), tomando ruas, abrindo portas e apresentando gente. 
Que a cidade nos seja tão leve quanto uma crônica 'absurda', de Raymundo Netto!