sexta-feira, 20 de novembro de 2015

PARA VER O MAR

Antonio Conselheiro (1830 - 1897) profetizou: “o mar vai virar sertão, o sertão vai virar mar”. Enquanto as geleiras não derretem totalmente e o aquecimento global não transforma em realidade, de uma vez por todas, as palavras do velho beato; os governos e grande parcela da população mundial vão se esforçando para alcançar tal objetivo. Algumas cidades brasileiras, no entanto, ainda guardam estreitos laços com “as coisas do mar”. Entre tantas, Fortaleza se destaca pela beleza da sua costa, com um mar que a cada santo (ou profano) dia está a nos encher os olhos e coração.

É também verdade que muitos ignoram a riqueza que nos bate à porta. Quantas vezes saímos de casa simplesmente para ver o mar? Mas há de se dizer: é tudo tão caro. Tudo pela hora da morte. Mas, o mar. Ah, o mar! Dorival Caymmi sabia das coisas. Como sabia! E o mar, em Fortaleza, é bem ali. É bem perto. O mar nosso de cada dia ou de cada noite, se assim o preferirmos.

Mas Fortaleza, como diz o escritor Pedro Salgueiro, é “uma loirinha desmiolada pelo sol” (as reprimendas politicamente corretas acerca da referida expressão deverão ser encaminhadas diretamente ao Pedro Salgueiro, autor de Dos valores do inimigo, de 2005), carecendo, a nosso ver, se compreender, ressignificar, e se abrir para si mesma ao mesmo tempo em que se abre para o mundo. É claro que isso não é tão fácil, tendo em vista ainda sermos um povo pra lá de provinciano. Alguns artistas, no entanto, têm tentado romper esse ciclo de mediocridade e mesmice que assola nossa terrinha, banhada desde sempre por nossos “verdes mares bravios”. E é assim que, por vários cantos da cidade a qual alguns querem transformar em uma espécie de Dismaland de estacionamentos, binários e viadutos; temos tido a oportunidade de ver inúmeras intervenções artísticas a nos chamar a atenção para a necessidade e o direito do ser humano à arte. São frases, pinturas, grafites, instalações e colagens a nos alertar sobre a manutenção da beleza, da luta e da vida.

Uma dessas intervenções mais recentes ocorreu em um belo sábado, dia 25 de julho de 2015. Onde? Bem perto do mar. Com atenção, dava até pra ouvir Ednardo cantar “Longarinas” ou “Terral”, e Belchior entoar “Mucuripe”. Foi bem ali, lado a lado com o mar, do aterro da Praia de Iracema ao Mucuripe. Era a execução do “Para ver o mar”, projeto coletivo de artistas com o objetivo de atrair a atenção dos fortalezenses (mas não só deles) para a urgente necessidade da preservação das coisas e dos povos do mar. Na composição do coletivo, os artistas Narcélio Grud, Maíra Ortins e Diego de Santos. A programação do evento, conforme divulgada pela imprensa, constitui-se basicamente de cinco ações: A primeira, “Birutas”, a cargo do artista Narcélio Grud, resultou na obra “Afago a Leonilson”. 

A segunda ação, provavelmente o ponto alto do evento, também executada pelo mesmo Grud, culminou na pintura do Mara Hope, navio ancorado na Praia de Iracema desde 1984, e que já se revela e se mantém na memória do fortalezense como uma espécie de ícone da cidade. A terceira ação ficou por conta da artista visual Maíra Ortins, a qual montou uma instalação aquática com boias de sinalização para embarcações. 

As paredes da histórica Igreja São Pedro dos Pescadores foram utilizadas para a projeção de imagens (uma vídeo-instalação) do ir-e-vir das marés, ação também coordenada por Ortins. A quinta e última ação, denominou-se de “Poema 193” e ficou por conta de Diego de Santos, o qual ocupou com suas conchas prenhes de luz, o cemitério de embarcações do Mucuripe.

A proposta efetivada pelo coletivo de artistas resultou, como forma de registro e divulgação, em um livro intitulado Para ver o mar, publicado em 2015, pela Expressão Gráfica e Editora, de Fortaleza, tendo sido organizado por Maíra Ortins. Em “Para ver o/do mar”, texto integrante do referido trabalho, o professor Herbert Rolim, curador do projeto, nos chama atenção para o que Miwon Kwon (1997) denomina de site-oriented, ou seja, afirma ele:

(...) mais do que as obras de Maíra Ortins, Narcélio Grud e Diego de Santos, devemos ter em mente os espaços relacionais de encontros, institucionais de palestras e oficinas, virtuais de compartilhamento de ideias e opiniões, midiáticos de informação e registro, e impressos de leitura e reflexão (...). (ROLIM, 2015:35)

E é a partir do livro que temos em mãos que, comentamos o projeto “Para ver o mar”, não cabendo a nós nenhuma análise crítica em relação à qualidade, execução ou resultados das ações desenvolvidas durante o Projeto, o qual consideramos de extrema relevância; desejando que se mantenha como uma espécie de work in progress na agenda cultural da cidade.

O livro, como já mencionado, é um registro impresso que deve nos servir como leitura e reflexão para ações futuras. Assim sendo, ele é responsável por trazer as impressões e os posicionamentos dos membros do coletivo acerca de ações de intervenção cultural, diálogos da arte com a cidade e com o povo, o projeto em si, bem como outros olhares que podem se dar tanto da terra para o mar, quanto do mar para a terra. Assim sendo, a apresentação do trabalho ficou por conta do fotógrafo Silas de Paula (p. 3-4). Na sequência, “Pensar imagens, pensando paisagens” (p. 7-11), de Maíra Ortins. 

Se uma das intenções do Projeto era prover uma maior aproximação da arte com o público e, logo, do público com a arte, nos chama a atenção o título do trabalho ter sido grafado formalmente como "Para ver o mar", quando, a nosso ver, poderia ter sido nomeado de "Pra ver o mar". Buscou-se uma interação entre povo e arte, mas o povo dificilmente se vê representado pelas exigências da língua culta. Isso, no entanto, é apenas uma observação ligada ao Discurso e à Sociolinguística, a qual não temos a intenção de aprofundar aqui.

 O texto mais amplo do livro (p. 17-35) ficou por conta do curador do Projeto, o artista e professor do IFCE, Herbert Rolim. Seu texto recebeu o nome de “Para ver o/do mar” que, apesar da exiguidade de espaço, nos presenteia com uma belíssima análise do que antecede e sustenta teoricamente o projeto do qual foi curador. Em poucas páginas, o autor de Arte anfíbia: o caso Otacílio de Azevedo (2009) e Salão de Abril: De casa para o mundo, do mundo para a casa (2010) situa e orienta o leitor acerca do contexto histórico-cultural no qual se insere a arte urbana, assim como sua relação com outros movimentos artísticos. Para tanto, sempre que necessário, Rolim recua e avança no tempo, tecendo sua análise recorrendo a referências mundiais, nacionais e locais; sem se descuidar de embasar teoricamente tudo aquilo que afirma.

O texto do arquiteto Lucas Razzoline ocupa as páginas 56, 57 e 58. Seu texto denomina-se “Artes e desastres: a cultura é inimiga da história?”. A pergunta proposta por Razzoline no título do seu trabalho se multiplica em inúmeras outras ao longo das três páginas que ocupa, forçando o leitor (artista ou não) a perceber a necessidade do constante questionamento na constituição da cultura contemporânea. Razzoline merecia mais espaço, tendo em vista a relevância e atualidade daquilo que iniciou como discussão. 

A crônica de Henrique Araújo fecha o livro com a leveza que se espera de uma boa crônica. Ressaltamos aqui a opinião do autor de que Fortaleza não é uma cidade plana, mas inclinada. Em seu texto “A cor do mar” (p.62-63), o cronista afirma que “é errado supor que Fortaleza é uma cidade plana. Fortaleza é inclinada, como um escorregador cujo pouso não é a terra, mas a água. Cidade-barco”.  Será?

Todos os textos do livro também estão “traduzidos” para o Inglês. Contudo, eis o ponto deficitário do trabalho, uma vez que as traduções para a língua inglesa contém erros grosseiros e primários. Sugere-se, assim, que as próximas edições desse trabalho tenham seus textos retraduzidos, e que a revisão para a língua inglesa seja devidamente refeita, para que se mantenha a boa qualidade dos textos, independentemente do idioma. No que diz respeito aos “anexos”, os dados biográficos e currículos de todos os membros do Projeto podem ser conferidos nas páginas 66 até 76. Os registros fotográficos das intervenções, por sua vez, ocupam as páginas 77-87.

Projetos como “Para ver o mar” são cada vez mais necessários, devendo fazer parte da agenda cultural das cidades, sejam elas pequenas ou grandes. Os entraves e dificuldades são sempre em maior número que “facilidades”, uma vez que há sempre algum sujeito mesquinho querendo impedir o homem de entrar em contato com o mar. Eles não sabem, no entanto, que desejam o impossível.

 Boa leitura!


Para saber mais:
http://www.paraveromar.wordpress.com
http://www.mairaortins.wordpress.com

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

RACHEL DE QUEIROZ E XOSÉ NEIRA VILAS: TERRAS, PALAVRAS E MAR

Rachel de Queiroz
Em tempos em que se discutem novas definições para o que até então temos compreendido pelo termo “fronteira”, a literatura tem atravessado mundos e feito travessias que acabam por aproximar aquilo que por muito tempo se acreditou distantes e inaproximáveis. Nesse ínterim, os estudos pós-coloniais contribuíram para que muitos autores, antes “limitados” a um determinado espaço geográfico-cultural, pudessem ser lidos e apreciados além das suas fronteiras. É claro que isso demandou muito tempo, empoderamentos e estudos, para que se percebesse que todo e qualquer cânone literário não é capaz de dar conta da diversidade de obras e autores existentes.

Xosé Neira Vilas
Por muito tempo seria impensável a existência de um cânone que não contemplasse autores outros que não Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe etc. Mulheres, negros, gays, latinos e outras minorias? Nem pensar. O cânone era necessariamente masculino, branco e europeu. Contudo, os deslocamentos sociais e as narrativas resultantes das diásporas e das novas compreensões culturais e políticas empurraram o mundo literário para fora da sua zona de conforto. Se antes o sertão, por exemplo, era apenas uma definição para  algo “local”; da noite para o dia ele se tornou mundial, não cabendo mais, para qualquer que seja o autor ou a obra, a definição de local ou regional. Tudo o que é produzido hoje está, de uma forma ou de outra, arraigado (ou conectado) no âmago do universal.

O advento da literatura comparada contribuiu em muito para a aproximação das diversas formas de arte. Se no inicio a literatura comparada era, como afirma Tânia Carvalhal (1992), uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas, com o passar do tempo percebeu-se que o bojo dos “estudos literários comparados” era muito mais amplo, tendo-se não apenas a literatura como objeto de análise, mas a literatura e suas relações com outras formas de arte.

Cleudene Aragão
 No Brasil, no entanto, o que tem sido mais recorrente é a análise comparativa entre duas (ou mais) obras literarias, observando o que essas obras trazem em comum entre si ou ainda naquilo que as distancia. Assim, nos chama especial atenção o trabalho escrito pela professora Cleudene de Oliveira Aragão, quando coloca em análise os trabalhos da escritora cearense Rachel de Queiroz (1910 - 2003), lado a lado com as obras do ficcionista galego Xosé Neira Vilas.

Vencedor do Prêmio Osmundo Pontes de Literatura, de 2011, o ensaio Rachel de Queiroz e Xosé Neira Vilas: Vidas feitas de terras e palavras (2012) é um bom exemplo daquilo que pode a literatura comparada. 

Ao discorrer sobre o trabalho de Aragão, Angela Gutiérrez afirma:

Em seu ensaio, construído dentro do melhor uso da teoria e dos instrumentos dos estudos de literatura comparada, a pesquisadora cearense analisa, a partir do delineamento das duas entidades geográficas e culturais – Hispania e Terra Brasilis -, as semelhanças possíveis e as diferenças complementares entre as nações literárias dos dois ficcionistas, representadas pela imagem do quebra-cabeça Brasil, formado por suas regiões distintas, entre elas, o Nordeste de Rachel; e do mosaico Espanha, composto por diferentes comunidades lingüísticas desse país, entre elas, a Galícia de Xosé. (GUTIÉRREZ apud ARAGÃO, 2012: 12)


A respeito do seu trabalho, Aragão afirma:

Rachel de Queiroz e Xosé Neira Vilas, no conjunto de suas obras, brindam-nos com inúmeras possibilidades de análise. Um estudo comparativo de sua produção literária revela grandes pontos de encontro entre as culturas de que são incontestáveis transmissores, permitindo-nos, através dessa comparação, conhecer melhor tanto o Ceará, a Galícia, quanto outras terras (...). (ARAGÃO, 2012:23)

O trabalho de Aragão (2012), por meio dos fabuladores, sejam eles sedentários, migrantes ou artífices, objetiva uma aproximação das obras O Quinze (1930) e Dôra Doralina (1975), de Rachel de Queiroz, com Memorias Dun Neno Labrego (1961) e Querido Tomás (1980), de Xosé Neira Vilas. E assim sendo, de forma magistral, a ensaísta transforma o Atlântico em uma ponte a unir o Ceará e a Galícia por meio de uma literatura que é  toda ela feita de terras e palavras.

O livro se organiza, então, em três grandes capítulos. O primeiro denomina-se de “testemunhas de seu tempo e de seu povo: a cearense Rachel de Queiroz e o Galego Xosé Neira Vilas” (p. 25 – 97), enquanto o segundo chama-se “Vidas feitas de terra e palavra: O Quinze e Memorias Dun Neno Labrego (p.99 – 153). O capitulo terceiro, por sua vez, denomina-se de “Vidas feitas de terra, mar e palavra (p. 155 – 199). O trabalho ainda é enriquecido com imagens dos autores e reprodução das capas das obras analisadas (p. 237 – 241).

Para aqueles interessados nos estudos de literatura comparada ou nos trabalhos de um dos dois autores (de lá ou de cá), o atlântico não constitui mais obstáculo para a apreensão das suas literaturas, uma vez que o ensaio de Cleudene Aragão possibilitou essa desejada aproximação. No mais, é mergulhar no texto e comemorar a eliminação de mais uma fronteira.