quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

IRACEMA: 150 ANOS

Todo bom leitor de literatura brasileira tem certa predileção por um ou outro trabalho de José de Alencar. Você pode até nem gostar. Pode até ser indiferente, mas isso não diminuirá a relevância da obra alencarina. Ao contrário, só depõe contra você enquanto leitor. Ouso dizer que, quem não gosta de José de Alencar, bom sujeito não é.

Brincadeiras à parte, não se pode compreender a dimensão da literatura produzida em língua portuguesa sem passar pela compreensão do que significa a obra de Alencar na constituição da nossa literatura, bem como da própria língua portuguesa que, para Alencar, seria, na verdade, a língua brasileira, uma vez que essa era a sua intenção, e pela qual foi duramente criticado.

Mas Alencar, como todo grande gênio, era um homem à frente do seu tempo. Ser um gênio, no entanto, não retira de ninguém a qualidade humana. Daí, o romancista ter se equivocado em determinadas questões relativas à escravidão, por exemplo, que, de forma alguma, o exime de responsabilidades. Alencar só viveu quarenta e oito anos. Durante sua maturidade como escritor e político viveu sob intenso bombardeio dos críticos e opositores. 

Quando da sua famosa querela com o Imperador, por exemplo, é Machado de Assis (1839 - 1908) quem sai em sua defesa, afirmando: “contra a conspiração da indiferença um aliado invencível: a conspiração da posteridade”. Admirador declarado de José de Alencar, Machado de Assis já registra aí que o autor cearense seria um clássico. Como o autor de Dom Casmurro (1899) não costumava errar, Alencar se fez clássico. E um clássico, em termos bem objetivos, é aquela obra literária que permanece na história por seu caráter universal e atemporal. 

Sua principal obra é, sem sombra de dúvidas, Iracema (1865). Não temo em dizer, inclusive, que, de uma forma ou outra, somos todos Iracemas, pois, de alguma maneira, guardamos parentescos e aproximações com essa obra que tem sido ao longo da História do Brasil (quando falo em História do Brasil, me refiro a todas as formas de manifestações culturais nacionais, ou seja, literatura, artes plásticas, música, arquitetura etc.) um mito em constante reestruturação, uma referência perene da cultura brasileira, assim como também o é a Carta, de Pero Vaz de Caminha, o Abaporu, da Tarsila do Amaral ou as Bachianas brasileiras, de Villa-Lobos.

Embora haja uma insistente e recorrente tentativa de se discutir a forma, a estrutura organizacional de Iracema, uma vez que alguns dizem ser, um romance, um poema ou uma lenda, como afirmara o próprio Alencar. Assim sendo, não nos deteremos nesse aspecto por considerarmos uma questão menor, quase desnecessária. Sigo, no entanto, Andrade Furtado, quando classificou Iracema, como um romance-poema (o maior poema em prosa da literatura brasileira), rico em tudo, especialmente em musicalidade. Como comprovação do que afirmo, não é preciso ir tão longe, bastando apenas atentarmos para a maneira como o romance-poema se inicia: "Verdes mares bravios de minha terra natal,onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba.Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros...". Dessa forma, reafirmo que, mais importante que a forma, é o conteúdo. É claro que uma obra-prima requer uma relação de simetria entre conteúdo e estrutura. E isso, não se pode negar, também foi alcançado por Alencar, ao elaborar Iracema, obra com a qual finca no coração da cultura brasileira, o livro fundador da literatura nacional.

 A palavra Iracema é um anagrama, ou seja, a partir de uma reordenação das suas letras,é possível se construir a palavra América, e é ingênuo querer acreditar que isso se dá por mera coincidência do acaso. Claro que não. Com Iracema, Alencar pretendia não apenas fundar as bases da literatura brasileira, mas também da literatura americana. Daí o novo mundo, a América, está embutida em Iracema e vice-versa, como forma de nascimento e simbiose. Note-se ainda que, ao unir as línguas nativas (representadas por Iracema) com a língua portuguesa (com Martim), Alencar, de uma tacada só, proporciona questionamentos acerca da multiculturalidade que, somente meio século depois, seriam sociologicamente levantados por Gilberto Freyre (1900 - 1987),  em seu livro Casa Grande & Senzala (1933).

A miscigenação cultural apresentada por Alencar, na maioria dos seus romances indianistas, fez com que muitos dos seus críticos o acusassem de ter se apropriado das ideias literárias de outros autores. Do francês François-René de Chateaubriand (1768 - 1848), por exemplo, o qual havia escrito a novela Atala (1801), que  tem como enredo, a história de Atala, filha de um europeu e uma índia que se envenena para não ceder ao desejado amor de Chactas, uma vez que prometera à mãe moribunda, morrer virgem. Outros, por sua vez,  viam em seus trabalhos da fase indianista, aproximações com os trabalhos do escritor norte-americano, James Fenimore Cooper (1789 – 1851), especificamente sua obra mais conhecida, O último dos moicanos, de 1726. Contudo, se José de Alencar recorre à figura dos nativos e, através da sua narrativa, aponta para uma separação intelectual do Brasil em relação a Portugal, Cooper vê, nos índios peles vermelhas, a possibilidade de liberação intelectual dos Estados Unidos em relação à Inglaterra. Seja como for, os dois nomes representativos do Indianismo nas Américas são Alencar, no Brasil, e Cooper, nos Estados Unidos. Dessa forma, falar em plágio ou apropriação é para lá de descabido.

Disse anteriormente que não se deve insistir em discussões acerca da forma, mas no conteúdo de Iracema. Digo isso, pois, assim como Jorge Luis Borges (1899 - 1986), vejo o livro como um instrumento diferente de todos os outros já criados pelo homem. 

Era o ano de 1978, quando Jorge Luis Borges foi convidado a proferir cinco palestras na Universidade de Belgano, na Argentina. Na ocasião, o autor falou sobre cinco temas pelos quais sempre teve grande paixão: o livro, a imortalidade, Emanuel Swendenborg, Edgar Allan Poe e o tempo. Essas palestras resultaram no livro Cinco visões pessoais, publicado no Brasil no ano de 2002. 

Sobre o livro, afirma Borges:

“Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação”. (BORGES, 2002:13)

 E continua ele:

“Se lemos um livro antigo é como se lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito e nós. Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode conter muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não como um tipo de respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria”. (BORGES, 2002:20) 


Dessas falas de Jorge Luis Borges ressalto o trecho que diz: “o livro é uma extensão da memória e da imaginação”. E retomo Iracema, para perguntar o quanto da “índia dos lábios de mel” se mantém na nossa memória, individual ou coletiva, todas aquelas vezes que ouvimos o nome de José de Alencar, caminhamos pelo calçadão da Praia de Iracema ou simplesmente pelos atos de estar ou viver em Fortaleza, terra defortes ventos, sol intenso e verdes mares bravios.  Mas o livro, nos lembra o escritor argentino, também é uma extensão da imaginação. E assim sendo, Iracema é um “prato cheio” (Umberto Eco chama esse meu “prato cheio” de obra aberta) para que se possa imaginar o ambiente social no qual a índia tabajara  estava inserida, sua função social na tribo, a beleza do seu corpo, seu caráter, sua identidade feminina, bem como da sua capacidade de se deslocar da serra do Ipu até o mar de Fortaleza. Nestes termos, Iracema é um desses livros sagrados, divinos, propiciadores da alegria, da felicidade, da sabedoria e do deleite.Iracema faz 150 anos, mas nem parece.


Leia também:

1. ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS. Alencar 100 depois. Fortaleza: ACL, 1977.

2. _____________________________.José de Alencar e Euclides da Cunha. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.

3.BORGES, jorge Luis. Cinco visões pessoais. Trad. Maria Rosinda Ramos da Silva. Brasília:editora Universidade de Brasília, 2002.

4. NETO, Lira. O inimigo do rei: uma biografia de José de Alencar, ou, a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava Dom Pedro II e acabou inventando o Brasil. São Paulo: Globo, 2006.