segunda-feira, 30 de maio de 2016

A ARTE DO DESCASO: A HISTÓRIA DO MAIOR ROUBO A MUSEU DO BRASIL

O Brasil é um país singular. As coisas que teimam em acontecer por aqui quase já não causam mais espanto. Talvez ainda causem alguma surpresa para uma meia-dúzia de incautos apenas, do tipo que acredita piamente em tudo aquilo que passa nos "jornais nacionais" da vida. Para esses, a vida não passa de uma telenovela tosca, representada pelos mesmos velhos atores, reproduzindo sempre a mesma atuação, embora os personagens sejam outros. E se falta criticidade, também falta talento. E assim, a mediocridade, a ignorância, a alienação e o descaso correm soltos Brasil afora.

Falar sobre o descaso, no Brasil, é tarefa para lá de árdua, uma vez que basta apenas escolher a área (saúde, educação e cultura; por exemplo), para que um infinito leque de opções se descortine aos nossos lassos olhos. Um exemplo disso é o caso do qual trata a jornalista Cristina Tardáguila no seu livro A arte do descaso (2016), publicado pela editora Intrínseca. 

No referido trabalho, a autora fala sobre o roubo ao Museu da Chácara do Céu, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Era o dia 24 de fevereiro de 2006, quando alguns ladrões invadiram o museu e roubaram, nada mais, nada menos que cinco obras de arte: foram um Dalí, um Matisse, dois Picassos e um Monet. Na época, conforme a autora, o valor dos quadros roubados ultrapassava os dez milhões de dólares. Foi o maior roubo de arte do Brasil e o oitavo do mundo. 

Em qualquer outro lugar do mundo, não apenas o tempo teria fechado, mas também as rodovias, fronteiras, portos e aeroportos. Uma boa investigada nos ricos colecionadores e marchands talvez tivesse surtido algum efeito, tendo em vista que com o salário de miséria que se paga à maioria da população, não me parece que fosse alguém do povo o interessado em bancar um roubo desse nível apenas para se dar ao luxo de ter, por exemplo, um Monet pendurado na parede da sala. 

Tudo isso poderia ter sido feito, mas era carnaval. Da tumba, o mecenas Raymundo Ottoni de Castro Maya (1894 - 1968) que, no ano de 1972, transformara sua chácara/casa/mansão em museu, até que tentou espernear, reclamar; mas não havia ninguém interessado em ouvir suas lamúrias. Era carnaval. O tradicional bloco das Carmelitas já arrastava multidões pelas ruas do bairro. Picasso, Monet, Dalí e Matisse sumiram ao som do samba. 

Naquele dia, foram levados da casa-museu de Castro Maya um óleo sobre tela de Monet, pintado na década de 1880, denominado de Marine (Marinha), um óleo de Matisse, pintado provavelmente em 1905, chamado de Le jardim du Luxembourg (O jardim de Luxemburgo) e Les deux balcons (As duas varandas), pintado no ano de 1929, por Salvador Dalí. Além desses, foram levados La danse ( A dança), um óleo sobre tela, de Pablo Picasso, de 1956, e o livro de gravuras Toros (Touros), contendo quinze pranchas (na ocasião, apenas doze  estavam no livro. As outras três estavam sendo restauradas) de ilustrações do pintor catalão.


Em termos bem gerais, essa é a história do maior roubo a museu do Brasil, contada com riqueza de detalhes por Cristina Tardáguila. O trabalho é o resultado de uma detida investigação jornalística empreendida pela autora, objetivando mostrar como se deu o roubo no Museu da Chácara do Céu, bem como o consequente desenrolar das investigações que, por razões não tão claras, não levaram a lugar nenhum. 

O livro, como está dito na página 183, "em vez de Thriller policial sobre a recuperação de cinco pinturas roubadas de um museu carioca em pleno carnaval, havia se transformado numa espécie de manifesto". Nesse sentido, tomamos a liberdade de discordar da autora quanto ao uso dos termos "thriller" e "manifesto" aplicados à narrativa em questão. Tendo em vista a maneira utilizada para compor a história do roubo, no que diz respeito à forma e conteúdo, o trabalho está longe de ser um thriller ou um manifesto (sugiro uma pesquisa acerca do que define os dois gêneros), cabendo melhor, dessa forma, a definição de romance-reportagem, o que, a nosso ver, não diminui em absolutamente nada o caráter de denúncia e a qualidade da narrativa de A arte do descaso, unindo em um mesmo trabalho o jornalismo e a literatura.

A arte do descaso está organizado em 11 (onze) capítulos. Para denominar os capítulos, a autora recorre às frases ditas pelas pessoas que, de uma forma ou outra, são peças que compõem a história. Para intitular o primeiro capítulo, por exemplo, Tardáguila utiliza-se da frase dita por um dos ladrões ao anunciar o roubo: "A gente só quer os quadros". Além dos capítulos, há ainda um epílogo, no qual a autora afirma que "ainda há tempo" e, se caso houver empenho e interesse das autoridades, é possível encontrar e devolver tais obras ao convívio do público. 
Cristina Tardáguila

A obra traz ainda imagens do Museu da Chácara do Céu (p.39-40), Marine (p.41), Le jardim du Luxembourg (42), Les deux balcons (p.43) e La danse (p.44). A página 45 traz uma imagem de molduras queimadas com referências que podem indicar tratarem-se das molduras das telas de Monet, Picasso e Dalí. 

Se ainda há tempo, como diz a autora no epílogo do seu trabalho, esse tempo se esvai. E em muito, muito breve, essas obras só existirão na parede ou na memória de uns poucos privilegiados.