segunda-feira, 30 de abril de 2018

TEACHING MY MOTHER HOW TO GIVE BIRTH, DE WARSAN SHIRE

Ainda sem tradução para o português brasileiro Teaching my mother how to give birth (2011), de Warsan Shire, é uma das melhores produções poéticas dos últimos anos. Em tradução livre seria algo como “Ensinando minha mãe a dar a luz”. No caso da poesia desenvolvida por Shire, “dar a luz” implica não em ter um filho, em parir; mas abrir a cabeça e o coração para compreender coisas que foram negadas à seguidas gerações de mulheres. 

Teaching my mother how to give birth foi publicado no Reino Unido pela Flipped Eye Publishing, contendo vinte e um poemas. A frase que abre o livro é: “I have my mother’s mouth and my father’s eyes; on my face they are still together” (Tenho a boca da minha mãe e os olhos do meu pai, no meu rosto eles continuam juntos). 

A frase que inicia o trabalho também se constitui como uma das principais temáticas que perpassam toda a obra. Originários da Somália, os pais da poetisa acabam por se tornarem uma representação de todo o povo somali na poesia de Shire. Embora tenha sido criada na Inglaterra, Warsan Shire optou por trabalhar temáticas poéticas que, de uma forma ou de outra, estivessem ligadas aos seus parentes e amigos que ficaram na Somália.

Nesse sentido, percebe-se na sua poesia um compromisso em denunciar o resultado traumático que se abateu sobre seu povo, quando do final da guerra civil que brutalizou seu país. Em consequência, se deu a diáspora, com impacto devastador, principalmente sobre as mulheres. Por meio de seus versos, Warsan Shire consegue apontar o dedo para as contradições, os conflitos, os ditos e os não ditos da experiência diaspórica. Nesse contexto, Shire aborda assuntos como o amor, a diáspora, a ausência do homem na família, a violência sexual contra a mulher e os refugiados somalis,  bem como as relações entre mães e filhas.

Warsan Shire é uma daquela poetas que escreve não apenas a partir daquilo que sente ou vive, mas também das experiências de todos aqueles que a circundam. Nas suas próprias palavras: “... eu sou cada uma das pessoas sobre as quais escrevo...”.  Em termos gerais, a poesia de Warsan Shire pretende ser a voz daqueles que não são ouvidos, ou seja, os imigrantes, refugiados e outros grupos marginalizados.


Shire recorre à sua poesia como forma de se manter em conexão com sua terra natal, a Somália, onde, na verdade, ela nunca esteve. Para tanto, utiliza sua própria posição de imigrante. Dessa maneira, todos, parentes e amigos, acabam por se constituírem como matéria-prima da sua poesia.
Os poemas que compõem Teaching my mother how to give birth são: “What your mother told you after your father left”, “Your mother’s first kiss”, “Things we had lost in the summer”, “Maymuun’s mouth”, “Grandfather’s hands”, “Bone”, “Snow”, “Birds”, “Beauty”, “The kitchen”, “Fire”, “When we last saw your father”, “You were conceived”, “Trying to swim with God”, “Questions for Miriam”, “Conversations about home”, “Old spice”, “My foreign wife is dying and does not want to be touched”, “Ugly”, “Tea with our grandmothers” and “In love and in war”.
Warsan Shire


A poesia de Warsan Shire dialoga com a poesia de Rupi Kaur, assim como com a canção de Beyoncé, a qual declama alguns de seus poemas no seu álbum visual “Lemonade”. Warsan Shire, no entanto, não faz alarde, nem se deixa dominar pela vaidade, pois sua poesia é feita de silêncios. Silêncios que gritam e dilaceram os ouvidos daqueles que a leem.

domingo, 15 de abril de 2018

THE ORIGIN OF OTHERS, DE TONI MORRISON

Toni Morrison é uma das grandes romancistas dos últimos tempos, e o é não apenas pela qualidade literária que imprime aos seus textos ficcionais, mas também pelo impacto que seus textos de não ficção causam naqueles que acompanham seu trabalho, uma vez que seus textos estão sempre em consonância com o ser humano, principalmente o negro. Seu lugar de fala  é o momento histórico no qual está inserida.

Na primavera do ano de 2016, Toni Morrison foi convidada para proferir uma série de palestras na Universidade de Harvard. Juntas, essas palestras foram publicadas no ano seguinte pela editora da própria Harvard, constituindo um total de seis textos, livro este que ainda está sem tradução para o português brasileiro. O trabalho recebeu o nome de The origin of others (2017) e tem como prefaciador o escritor Ta-Nehisi Coates. Os textos que compõem o livro são: “Romancing slavery” (p. 1-18), “Being or becoming the stranger” (p. 19-40), “The color fetish” (p. 41-54), “Configurations of blackness” (p. 55-74), “Narrating the other” (p. 75-92) e “the foreigner’s home” (p. 93-112).

Através dos seis ensaios que compõem The origin of others (A origem dos outros, em tradução livre), Morrison reflete sobre temas que são recorrentes em seus romances e ensaios, mas que não são motivo de preocupação apenas para ela, uma vez que são assuntos que dizem respeito a todos os seres humanos: raça, medo, fronteiras, diásporas, bem como o desejo de pertencimento. Assim sendo, algumas questões são postas pelo texto da autora norte-americana: o que é e por qual razão a raça importa?, Como construímos o outro?, Por qual razão a presença do outro nos assusta? Na tentativa de apontar possíveis respostas para essas perguntas, Toni Morrison recorre não apenas à sua memória, mas também à História, à política e, especialmente, à literatura, analisando obras de autores como Harriet Beecher Stowe, Ernest Hemingway, William Faulkner e Flannery O’Connor entre inúmeros outros. Além disso, a autora toma como exemplos o processo de construção de alguns dos seus romances, como Amada (1987), Paraíso (1997) e Compaixão (2008), por exemplo.


Ao se tomar o racimo como exemplo é possível afirmar que a literatura assume papel relevante no que diz respeito às questões de raça, na América, tanto de forma positiva quanto negativa. Em The origin of others (2017), Toni Morrison escreve sobre os esforços literários do século XIX, que tentavam romancear a escravidão, contrastando esses escritos com a realidade observada no racismo científico de Samuel Cartwright, assim como  nos diários do dono de escravos Thomas Thistlewood. Para tanto, Morrison se detém sobre as configurações da negritude e as noções de pureza racial, bem como nas formas de como a literatura utiliza a cor da pele para revelar caráter ou conduzir narrativas. Toni Morrison aborda ainda questões que dizem respeito ao processo de globalização, assim como às diásporas em curso constante. 

O prefácio de Ta-Nehisi Coates é uma obra de arte à parte. Toni Morrison recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1993. É, sem sombra de dúvidas, uma das autoras mais importantes da literatura universal de todos os tempos.

domingo, 8 de abril de 2018

DICIONÁRIO DE LÍNGUAS IMAGINÁRIAS, DE OLAVO AMARAL


Dicionário de línguas imaginárias, de Olavo Amaral foi uma das grandes publicações do ano de 2017. Trata-se de um belíssimo livro de contos, publicado pela editora Alfaguara, no qual todos os contos são conectados, de uma forma ou outra, pela comunicação. Antes do Dicionário de línguas imaginárias, Amaral já havia publicado Estática (2006) e Correnteza e escombros (2012).

Embora publique pouco, não se pode afirmar que Olavo Amaral seja um amador na arte da narrativa curta, muito pelo contrário. A qualidade literária demonstrada na concepção dos contos que constituem a obra em questão diz muito do respeito e da atenção que o autor dedica ao seu fazer literário. Talvez por isso, o escritor tenha optado por trabalhar a comunicação como elemento central das contos que apresenta, pois discorrer literariamente sobre o ato de comunicar, em época de exacerbado uso de redes sociais, parece-nos tão  relevante quanto pontual e urgente.

Em tempos líquidos, basta um clique para que nos conectemos ao outro lado do mundo. Mais um clique e lá estamos nós, caminhando pelo Louvre... Outro clique e trocamos meia dúzia de palavras com fulano ou beltrano. Retuitamos e curtirmos de tudo um pouco. Somos exímios ativistas da palavra. De frente pra tela, mas de costas para a realidade, quase nem percebemos o fechamento das fronteiras, o descaso pelo próximo, a intolerância que insiste em avançar a olhos vistos. De uma hora para a outra, a palavra parece fugir das nossas bocas. Temos dificuldades para comunicar. Somos reféns da nossa própria solidão comunicativa. Será que a liquidez da nossa era nos obriga a esquecer as línguas que aprendemos?

É sobre algumas dessas questões e muitas outras, que Olavo Amaral discorre nos dez contos que compõem a obra Dicionário de línguas imaginárias. Os contos são: “Uok phlau” (p. 11-17), “Travessia” (p. 18-25), “Mixtape” (p. 26-42), “Quarto à beira d’água” (p. 43-51), “Icebrgs” (p. 52-63), “Choeung Ek” (p. 64-68), “O ano em que nos tornamos ciborgues” (p. 69-83), “Esquecendo Valdés” (p. 84-97), “Última balsa” (p. 98-111) e “Estepe” (p. 112-125). Assim sendo, através das suas narrativas, Amaral conduz o leitor por caminhos que só podem ser percorridos tomando a linguagem como condutora dos meandros da condição humana, sob clara influência do texto de Jorge Luis Borges. Nos contos de Amaral, os jardins se bifurcam, a dificuldade da comunicação mostra-se, em certos casos, como uma torre/biblioteca de babel, de difícil decifração, pois se as línguas são imaginárias, os seres também o são.
Olavo Amaral

Um dos contos mais impactantes do presente trabalho é “Travessia”, no qual pessoas de etnias e línguas diferentes dividem o mesmo porão de um barco. Seriam refugiados, tentando fugir da miséria e da opressão que se abate sobre aqueles a quem resta muito pouco ou quase nada. Como os predadores não lhes podem arrancar a alma e a língua, isso é tudo lhes resta. Antes uma dádiva, a língua agora é praticamente uma maldição, incapaz de comunicar, dizer das dores, das fomes e dos desejos. O que uniria, aparta. São estranhos de si mesmos. Teria sido a partir daí, que começamos a nos tornar ciborgues?

É claro que o Dicionário de línguas imaginárias, de Olavo Amaral, não é um dicionário. Assim como o Dicionário de lugares imaginários (2003), de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi também não o é. Mas quem se importa? Ás vezes o leitor precisa se refugiar em lugares que não existem de verdade, falando línguas que também não existem de verdade. Tudo isso, graças a escritores que existem de verdade.