sábado, 20 de abril de 2019

À CIDADE, DE MAILSON FURTADO


E a cidade, o que é? Para mim pode ser uma coisa, para o leitor, outra. Para um poeta, ainda outra e mais outra, dependendo de quem entrar na conversa. Cada olhar percebe a cidade de forma diferente. Muitas vezes é possível ver, na cidade, o que quase ninguém vê. Há, na cidade, o que se esconde e o que se dá aos olhos. E é assim que Marco Polo fala ao grande Kublai Khan das cidade que visitou, nas narrativas constituintes do livro As cidades invisíveis (1972), de Ítalo Calvino.

As cidades de Calvino têm nomes de mulheres. Cada uma de suas cidades possuem características que são apenas suas. Características que as tornam únicas, belas e invejáveis. A cidade é, na narrativa de Calvino, um símbolo que nos remete, como faz com o próprio autor, à reflexões, experiências e conjecturas. De todas as cidades constantes na referida narrativa, nos chama particular atenção a cidade de Tecla, que se constrói constantemente sem jamais se concluir, sendo esse seu projeto de existência.

Partimos das cidades invisíveis de Calvino, para apresentarmos uma breve análise da poesia que nos é apresentada pelo poeta Maílson Furtado (vencedor do Prêmio Jabuti de Poesia, de 2018) no seu À Cidade (2017). O livro está organizado em quatro partes, que podem ser compreendidas como quatro grandes poemas que se entrelaçam e dialogam em simbiose. A primeira parte chama-se “Presente” (p. 9 – 20), a segunda, “Pretérito” (p. 21 – 36), a terceira é denominada de “Pretérito mais-que-perfeito” (p. 37 – 50), enquanto a quarta parte chama-se “Futuro do pretérito” (p. 51 – 61). O livro traz um texto de Oswald Barroso (nas “orelhas”) e o posfácio “a cidade pelo “arquivo dos pés” (p. 63 – 69), de Décio Braúna. A última página do livro (p.70) traz os dados biobliográficos do autor.

A estrutura escolhida por Furtado para a organização do seu À Cidade conduz o leitor pelas ruas e pelo cotidiano de uma cidade que, assim como poderia ser Varjota, no interior do Ceará, poderia ser qualquer outra cidade (Campo Grande, Santa Cruz, Sinimbu...). Ao contrário do ocorre na narrativa de Calvino, a poesia de Maílson Furtado não parece tratar de nenhuma cidade invisível, mas de uma das muitas cidades observáveis no Brasil. Claro que a poesia em questão não trata das grades metrópoles, daquelas que engolem o ser humano e o cospe como se não fosse mais que uma bagaço, um nada. A poesia de Furtado, pelo contrário, deita olhos sobre as cidades que ainda acordam com o galo e dormem quando se apagam as luzes dos postes. A máxima “fale de sua aldeia”, de Tolstoi, é levada ao pé da letra pelo poeta cearense, quando traz para seus versos o velho rio Acaraú (“... e tudo vale para namorar o acaraú ...”), os meninos, os mosquitos, o quintal, os cachorros, as cacimbas, as cadeiras na calçada e todos os elementos que constituem a paisagem de uma pequena cidade de um interior qualquer, onde, como já havia dito Drummond, tudo passa devagar.

Os poemas que compõem a obra de Maílson Furtado são dedicados à cidade “e aos que nunca dedicarei nada”, dedicou o poeta. O uso dos tempos verbais como títulos de cada uma das quatro partes do livro servem como marcação da maneira como o tempo se dá na cidade, objeto da poesia do autor. Assim, “tudo sai”, “a noite vai”, “a noite adentra”, “o poste acende”, “noutro dia/vem outro sol”, “a cidade acorda”, “a manhã deságua”, “a vida segue”. 

E a cidade, o que é?

Maílson Furtado
A cidade é uma representação do abrigo, do abraço e do aconchego. Mas também pode ser a esfinge que, de forma diferente, observa o filho / morador e o viajante / forasteiro. Conhecê-la é também decifrá-la ou por ela ser devorado. O eu lírico da poesia de Maílson Furtado parece não correr o risco de ser engolido pela cidade, aparentando haver entre ambos uma certa cumplicidade. 

Como um imenso e belo monstro a se metamorfosear dia e noite, a cidade move-se lentamente, mas também descansa. Do topo de uma colina imaginária, o eu lírico observa sua transmutação. Às vezes desce, caminha por suas ruas, por seu dorso, brinca com os meninos, se lacera, se desvirgina, mas a cidade não se define.

Jáder de Carvalho, José Alcides Pinto e Francisco Carvalho são poetas cearenses/universais que, entre outros, também foram telúricos e cantaram a cidade, suas cidades, em versos de alta qualidade poética . Contudo, depois de um longo período de estagnação, sem que aparecesse uma grande poesia em terras de Alencar, eis que surgem os versos de Maílson Furtado que, tal qual um Marco Polo, apresenta aos leitores a cidade transformada em poesia. Para concebê-la, no entanto, é necessário acompanhar a imaginação do poeta e tirar os pés do lugar-comum, pois “... a cidade é uma fotografia / que nunca é a mesma / uma hoje / outra amanhã...”, tal qual Tecla, de Calvino. À Cidade (2017), de Maílson Furtado já pode ser considerado um acontecimento poético no âmbito da literatura brasileira. Da cidade, dela mesma, não sei.


Maílson Furtado, acompanhado dos poetas Alan Mendonça, Bruno Paulino, Dércio Braúna e Renato Pessoa, participa do trabalho intitulado Cinco inscrições da mortalidade (2018). Maílson Furtado também é autor de Sortimento (2012), Conto a Conto (2013), e Versos Pingados, de 2014.









domingo, 14 de abril de 2019

TEMPOS DE CIGARRO SEM FILTRO, DE JOSÉ MASCHIO


São muitos os aspectos que contribuem para que uma obra literária se mantenha em consonância com seu tempo. Depois de escrita, a obra ganha pernas e anda. Sai para a vida tal qual o filho que não criamos para nós, mas para o mundo. Assim, cada obra está dentro de um contexto sócio-histórico e seu nível de compreensão dependerá das potencialidades interpretativas do leitor.

Tempos de cigarro sem filtro (2017), de José Maschio, publicado pela editora Kan, surge num contexto histórico bastante caro para a sociedade brasileira. No ano que antecedeu sua publicação, uma clara ruptura democrática se deu no país, seguindo praticamente o mesmo modus operandi que implantou a ditadura no Brasil de 1964. Os resultados do golpe de 2016 ainda resvalam na sociedade brasileira, com instituições travadas, autoritarismo, perseguições, ataques à imprensa e desprezo pelos direitos humanos. Ao caos estabelecido se juntaram elementos novos, como a pós-verdade e as chamadas fake News

Em resumo, os “tempos de cigarro sem filtro” ameaçam voltar. Os personagens, no entanto, são outros. Já não se tem o “gordo ministro a anunciar o milagre econômico brasileiro” e nem o” rosto sombrio e sério do general Carrascoazul anunciando medidas contra terríveis terroristas e comunistas”. Corpos já não são encontrados no rio Paranapanema, mas os opositores são constantemente ameaçados com a ponta da praia. Impunes. Insolentes. Juízes sabem.

O romance de José Maschio está organizado em 31 capítulos e conta com uma breve apresentação (nas orelhas) de Luiz Taques. A linguagem é fluida e o texto, seguindo o estilo jornalístico, é constituído de períodos curtos. Dessa forma, o autor coloca em sua escritura a brevidade e a rapidez da comunicação, comuns aos tempos da repressão. O uso que Maschio faz da linguagem nos permite perceber aproximações com os grandes mestres da narrativa curta, como Ernest Hemingway, Dalton Trevisan e João Antonio. 

É por intermédio da vida do personagem Ruço (não Russo), que o narrador reconstrói um dos períodos mais violentos da vida nacional. Por sua narrativa, passam a selvageria do Estado contra aqueles que considera inimigos, a perseguição, a dor, a tortura, a perda, a morte. No período no qual a narrativa de Maschio se insere, lê-se Sete Palmos de Terra e um Caixão, de Josué de Castro. Na atual conjuntura, lê-se o “guru da Virgínia” e outras absurdetes (ou seriam “olavetes”?). Os desavisados  e mal intencionados falam, mesmo sem ter lido Michael Young, em meritocracia. Em “tempos de cigarro sem filtro” reina a ignorância. Sobre isso, lê-se:


A ignorância é a mãe de todas as misérias e mazelas do mundo. O pai tinha dito isso. Lembrava Ruço. E sentiu-se ignorante. Queria entender essa miséria toda, a contrastar com a beleza de cartão postal da cidade, mas não atinava uma explicação satisfatória. No Sul meninos branquelos, como ele tinha sido na infância, eram engraxates. Nos pardieiros, e Ruço já se enturmara, as prostitutas eram loiras, brancas (...), mas o que incomodava Ruço eram as meninas. À noite, elas apareciam pelos bares do centro, crianças ainda, loirinhas, lindas. A mendigar moedas e oferecer sexo barato (...). (MASCHIO, 2017:95)


O romance de José Maschio, registre-se, é ficção. Não é um romance-reportagem, nem muito menos um ensaio de sociologia. Tempos de cigarro sem filtro é ficção e o autor não pode ser "culpado" se aquilo que conta guarda semelhanças com nomes, pessoas ou acontecimentos reais. Qualquer aproximação é mera coincidência. Na narrativa, há um delegado que “prende e arrebenta” e que sonha com Brasília. “Era meticuloso. Não podia deixar brechas (...). Visitou o juiz. Judiciário sabujo. Pediu. Não pediu, mandou. Mandava como delegado. Imagina como deputado eleito?” (p.99). A ficção, prezado leitor, tem dessas coisas!

José Maschio
Em Tempos de cigarro sem filtro (2017), Ruço nada mais é do que uma pequena peça na grande “máquina de triturar carnes” do Sistema. Impedido de viver dignamente, “o máximo que Ruço sentia era rancor. Estava abraçado ao seu rancor” (p.122). Em João Antonio é Abraçado ao meu rancor, de 1986. Ruço, sabemos pelo narrador, era “afinado na arte de chutar tampinhas”. E eis mais um intertexto: "Afinação da arte de chutar tampinhas", conto de João Antonio do livro Malagueta, Perus e Bacanaço (1963).


Como dito, o livro de José Maschio foi publicado no ano de 2017, mas poderia ter sido publicado ontem. Os tempos de cigarro sem filtro que acreditávamos terem ido para sempre, ameaçam voltar com toda sua brutalidade. E já nos apavora, como diz a canção, “ver emergir o monstro da lagoa”. Neste contexto, muitos já se sentem como o personagem Polska, exilados dentro de seu próprio país. 

De atualidade surpreendente, a narrativa de José Maschio é leitura indispensável para se compreender aquilo que primeiro se dá como tragédia, mas que depois vem como farsa. 

quinta-feira, 11 de abril de 2019

MINEIRINHO, POR CLARICE LISPECTOR




É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irre­dutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”.Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.
Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça.
A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, espe­rando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta tran­cada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.
clispector assinatura
Fonte: http://www.ip.usp.br/portal/  , do livro: Para não esquecer. São Paulo: Ática, 1979 –  e também em  A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964

domingo, 7 de abril de 2019

Cancioneiro Belchior, de José Gomes Neto


Organizado por José Gomes Neto, começa a circular no mercado o livro Cancioneiro Belchior (s/d), que tem como objetivo principal o estabelecimento de todas as letras escritas pelo poeta cearense. É claro, como tem sido dito por muitos estudiosos, a obra do compositor Belchior não cabe no conceito de “letra”, constituindo-se, na verdade, de poesia de raro esplendor. No entanto, não é esse o objetivo do referido Cancioneiro, mas colocar num só lugar, como dito, todas as letras produzidas pelo autor de “Como os nossos pais”.

Há muitos trabalhos como esse no mercado editorial brasileiro, como os de Lou Reed e Bob Dylan, por exemplo, publicados pela Companhia das Letras. Mas ainda não tínhamos nenhum sobre a poética de Belchior. Dessa forma,  Cancioneiro Belchior vem  preencher uma lacuna acerca da obra de um dos maiores nomes da Música Popular Brasileira – MPB.  Livros como o de Gomes Neto se inserem na linha de trabalhos como Like a Rolling Stone: Bob Dylan na encruzilhada, de Greil Marcus, Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção, de David Margolick ou ainda A love supreme: the story of John Coltrane’s signature album, de Ashley Kahn. Algumas dessas obras deitam olhos sobre a análise interpretativa de algumas composições, o que não é o caso de um cancioneiro que, conforme sua definição, é uma coleção de canções ou poesias de um determinado tempo ou autor.




O trabalho que agora é entregue ao público leitor começou a ser gestado ainda nos idos de 1980. Sobre esse começo, convém observarmos o que diz nos diz o organizador.


Já no início de 1980 começamos a pensar na realização do  projeto. Belchior trataria de enviar-me as letras, que deveriam ser digitadas e “trabalhadas” em  meus momentos de folga acadêmica. Sempre que tivesse espaço na apertada agenda de shows, Belchior viria a Floripa para discutirmos e estabelecermos a versão definitiva de cada letra. Às vezes, quando em férias ou durante as longas greves universitárias, conseguia acompanha-lo em suas viagens, adiantando a tarefa conjunta. (GOMES NETO, s/d:47)


O Cancioneiro Belchior está organizado em três blocos, a saber: Canções de estrada, Noutras estradas e A voz nas estradas. No primeiro bloco foram agrupadas as composições divulgadas em obras autorais, os chamados “discos de carreira”, sejam elas compostas ou não em parceria. O segundo bloco, por sua vez, contém as canções escritas por Belchior e parceiros, que, conforme, Gomes Neto, gravaram em seus respectivos discos de carreira. No último bloco, tem-se as composições que Belchior fez para trilha sonora de peça teatral, assim como os trabalhos realizados com obras poéticas, como a de Carlos Drummond de Andrade (As várias caras de Drummond) e a de Cruz e Sousa (Belchior canta Cruz e Sousa). José Gomes Neto registra que a análise exaustiva e minuciosa de cada texto foi realizada por ele e por Belchior, tendo começado no início de 1980 e se estendido até 2005, com pequenos ou grandes intervalos ditados pela agenda dos dois. O Cancioneiro Belchior conta ainda com um Índice Discográfico e um Índice Alfabético das composições, a que se associa o verso inicial delas. O índice geral do livro segue a seguinte ordem: Índice alfabético das letras (p.7-16), Índice discográfico (p.17-26), Apresentação (texto de Jorge Mello, parceiro e amigo de Belchior, p.27-40), Introdução (p.41-68), Canções da estrada (p.69-230), Noutras estradas (p.231-258), A voz das estradas (p.259-282).

José Gomes Neto, respeitando os direitos dos herdeiros de Belchior, não incluiu no referido Cancioneiro, embora, segundo ele, fosse vontade de Belchior, algumas letras originais do poeta, tendo em vista pertencerem ao espólio que tramita na justiça. Gomes Neto mantém essas letras sob sua guarda. Além dessas, não constam do referido Cancioneiro, devido a questões legais, algumas poucas letras inéditas feitas em coautoria com Belchior, sejam elas traduções ou versões.

O Cancioneiro Belchior é, desde já, referência indispensável para todos aqueles que se dedicam a estudar a obra poética de Belchior, bem como para aqueles que ouvem suas canções, amam e mudam as coisas.

José Gomes Neto é também autor de A sagração da matéria e Opivm de vidro. Atualmente prepara em livro a correspondência que manteve com Belchior, por mais de 40 anos.