domingo, 20 de maio de 2018

POR QUE ÉTICA É MAIS IMPORTANTE DO QUE RELIGIÃO, POR DALAI LAMA


Ao longo de 35 anos, o jornalista Franz Alt encontrou o Dalai Lama umas trinta vezes. Desses encontros, resultaram quinze entrevistas para a televisão. O livro Por que ética é mais importante do que religião (2018) traz parte dessas entrevistas. O livro em questão está publicado pela editora Harper Collins, com tradução de Carolina Caires Coelho.

O livro é constituído do prefácio “Não tenho inimigos”, de Franz Alt (p.9-12), seguido do texto “Um apelo do Dalai Lama para a ética secular e para a paz” (p. 13-19). A parte central do livro, constituída pelas respostas do Dalai Lama às perguntas de Alt, se estende das página 23 até a página 134 e recebe o nome de “Educando o coração: Uma conversa com sua santidade, o Dalai Lama. Na sequência, o livro se completa com “A história do Dalai Lama” (p.135-140), “O Dalai Lama: Uma vida em datas (p.141-143). 

Façamos três observações: primeiramente, embora Franz Alt apareça como coautor na capa do livro, seu nome não está registrado na ficha catalográfica. A segunda observação é que o sumário indica que a partir da página 144 o livro traria um texto intitulado  “Sobre o coautor Franz Alt”. Contudo, não se tem esse texto no livro (pelo menos na minha edição). O que há na página 144 são apenas os dados da equipe de publicação. A terceira observação é: o livro traz como título original An appeal to the world. Contudo, na ficha catalográfica lê-se: Tradução de: An appeal by the Dalai Lama to the World.

São, ao todo, vinte e oito perguntas claras, diretas e objetivas, respondidas de forma clara, direta e objetiva. Todas as perguntas são antecedidas pela explicação daquilo que trata a questão, iniciando-se sempre com a palavra “sobre”. Por exemplo: “Sobre o presidente Trump” (p.23-25).

Nas suas respostas, o Dalai Lama diz o óbvio, ou seja, Ética é mais importante do que religião, o que poderia soar estranho por ser ele um líder religioso. Contudo, o Dalai Lama (Dalai Lama significa “oceano de sabedoria”) não é um religioso fundamentalista, conseguindo  perceber o fracasso das religiões que pouco ou quase nada mudaram ao longo dos séculos, insistindo no isolamento e na separação pelo radicalismo, desconsiderando que o mais importante é a aproximação de todos os seres humanos em comunhão com o planeta.

Sobre essa questão, o próprio Dalai Lama diz:

Eu acredito que os seres humanos possam sobreviver sem a religião, mas não sem valores, não sem ética. A diferença entre a ética e a religião é como a diferença entre a água e o chá. A ética com base na religião e nos valores interiores é mais como água. o chá é feito praticamente só de água, mas tem outros ingredientes – folhas de chá, temperos, talvez um pouco de açúcar e, pelo menos no Tibete, uma pitada de sal – e isso o torna mais substancial, mais duradouro, algo que desejamos beber todos os dias. Mas independentemente de como o chá é preparado, seu principal ingrediente é sempre a água. Podemos viver sem o chá, mas não sem a água. da mesma maneira, nascemos sem a religião, mas não sem a necessidade básica por compaixão – e não sem a necessidade fundamental por água. (DALAI LAMA, 2018, P.14)

As respostas do Dalai Lama são sempre pautadas por exemplos de vida. Assim, ao longo de toda a entrevista, o líder espiritual tibetano recorre a maiêutica como forma de se fazer compreender da maneira mais clara possível. Ao discorrer sobre a urgente necessidade do ser humano se livrar dos seus pesos mentais, como estresse, medo, ansiedade e frustração, Dalai Lama defende que precisamos de um nível mais profundo de pensamento, que ele chama de mindfulness.

Mindfulness, palavra que a tradutora preferiu manter no original inglês em todo o texto, significa “atenção plena” ou “consciência plena” e refere-se a um estado mental por meio do qual o indivíduo consegue manter controle sobre o seu poder de concentração, contribuindo para que as atividades que precisam ser realizadas se deem de maneira leve e profícua.

Embora a chamada meditação mindfulness tenha caído no gosto das grandes empresas, como forma de manter seus funcionários leves e aptos a resolver qualquer desafio, suas origens remontam às práticas medievais de meditação, tendo entre seus mais antigos praticantes, os budistas. Atualmente, a mindfulness é estudada por vários ramos da medicina e da psicologia, alcançando resultados bastante consideráveis.

A proposta do mestre tibetano objetiva, assim, a nosso ver, a utilização da mindfulness, primeiramente, em nível pessoal para, depois, ser aplicada em nível global, uma vez que nenhuma mudança exterior poderá se dar se não acontecer, primeiramente, uma mudança interior. Devemos, diz o Dalai Lama, nos esforçar para mudar a nós mesmos. Para que isso ocorra tal qual pretendido pelo monge budista, é preciso compreender que “... Agora, a ética global secular é mais importante do que as religiões clássicas. Precisamos de uma ética global que possa aceitar tanto os crentes quanto os não crentes, incluindo os ateus” (DALAI LAMA, p.41). O verdadeiro inimigo, afirma o Dalai Lama, está dentro de nós, não fora.

Dalai Lama e Franz Alt
E assim sendo, em uma época marcada pela marginalização do próximo, pelo levantamento de muros e fechamento de fronteiras, bem como pela exclusão do outro, a leitura de Por que ética é mais importante do que religião (2018) surge como um chamado capaz de nos levar a refletir sobre a nossa função no planeta Terra e nossa relação com o outro. O Dalai Lama está sempre pronto a dizer, geralmente sorrindo, como o fazem os grandes sábios, as coisas mais complexas da maneira mais simples.

Quem tiver ouvidos para ouvir.....

Boa leitura!


sábado, 5 de maio de 2018

O CÂNONE AMERICANO: O ESPÍRITO CRIATIVO E A GRANDE LITERATURA, DE HAROLD BLOOM


Harold Bloom é, sem dúvida, um dos mais prolíficos críticos literários do século XX. Sua contribuição aos estudos literários pode ser medida a partir de trabalhos como O cânone ocidental (1994), Shakespeare: the invention of the human (1998). Hamlet: poema ilimitado (2004) e Onde encontrar a sabedoria? (2004). Mas para quem achava que o crítico norte-americano havia parado sua produção, foi surpreendido pelo seu mais recente trabalho, intitulado O cânone americano: o espírito criativo e a grande literatura, publicado nos Estados Unidos em 2015, tendo sido publicado no Brasil em 2017. O referido trabalho saiu pela editora Objetiva, com tradução de Denise Bottmann.

Em O cânone americano: o espírito criativo e a grande literatura (2017), Bloom deita olhos sobre doze dos maiores autores da literatura norte-americana, apresentando-os em duplas. Assim sendo, os ensaios põem lado a lado, em diálogo, as obras de Walt Whitman e Herman Melville, Ralph Waldo Emerson e Emily Dickinson, Nathaniel Hawthorne e Henry James, Wallace Stevens e T.S. Eliot, Mark Twain e Robert Frost, William Faulkner e Hart Crane.

Como toda seleção e todo cânone versam sobre opções pessoais de escolhas, a seleção de Bloom está sujeita a questionamentos. Contudo, nenhum crítico seria capaz de dar conta do infindável número de obras literárias capazes de conversarem entre si, sendo, inevitavelmente, necessária uma seleção que, naturalmente, se mostra de caráter pessoal.

Na referida obra, Harold Bloom recorre ao termo grego “demo”, que, para os filósofos gregos, era um ser superior, posto entre o humano e o divino. O autor de Abaixo as verdades sagradas (2012) recorre ao referido termo para se referir àqueles escritores que, segundo ele, são dotados de extrema sensibilidade, ou seja, são detentores de um demo interior, responsável por gerar seu  poder poético. Compreende-se que o termo demo não implica em nenhuma questão de religiosidade ou fé, uma vez que, dos autores analisados, nenhum deles acreditava em Deus ou deuses. O que os aproxima, na verdade, é a relação que mantém com o sublime e com o demo, enquanto poder criador, tornando-os diferentes de outros autores. Para Bloom, Os doze autores selecionados “concentram aquela proliferação da consciência pela qual continuamos a viver e a encontrar nosso sentido na existência”.


Harold Bloom 
O tradicionalismo crítico no qual Harold Bloom foi forjado e se orgulha de permanecer não o permite, no entanto, inserir em suas obras autores que não sejam aqueles pertencentes a um cânone dominante, ou seja, um cânone majoritariamente branco, hétero, com autores oriundos de país hegemônicos, como se somente esses autores tivessem o demo e nada mais restasse de sublime aos outros. A crítica de Bloom ignora o que se dá fora do eixo Europa-América do Norte, limitando-se, na maioria das vezes, aos mesmos autores. Nas suas obras são raras as mulheres (em O cânone americano, tem-se apenas Emily Dickinson, a qual também está no Cânone Ocidental ao lado de Virginia Woolf), assim como representantes de outras minorias e autores de países periféricos, ignorando as contribuições à Crítica proporcionadas pelo advento dos Estudos Culturais, por exemplo.

Embora a crítica praticada por Harold Bloom se mostre engessada e carente de atualização, não constitui por essa razão, impedimento para que o leitor se delicie com as análises que o autor desenvolve em seu trabalho. Aqui, especificamente, O cânone americano: o espírito criativo e a grande literatura (2017), de leitura indispensável.