terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

FRANCISCO CARVALHO: UM ENXADRISTA DA PALAVRA

O xadrez é um jogo que simula o conflito entre dois exércitos; cada qual representado por dezesseis peças que se movimentam sobre um tabuleiro de sessenta e quatro casas de duas cores alternadas. O enxadrista é, por sua vez, o jogador de xadrez.
Francisco Carvalho

Inúmeras semelhanças aproximam o xadrezista do poeta. Se o primeiro pode levar horas e horas até se decidir pela jogada ideal, o segundo também o faz na busca pela palavra perfeita. Lutar com palavras, diz Drummond, é a luta mais vã. E assim, o lutador/poeta luta mal rompe cada manhã. E, “longe do estéril turbilhão da rua”, o poeta escreve. “No aconchego do claustro, na paciência e no sossego”, “trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua”, como nos diz Bilac.

Certa vez perguntei ao poeta Francisco Carvalho como andava sua produção poética. E ele me respondeu: “continuo reescrevendo os mesmos poemas”. O que o poeta diz pode ser compreendido como a constante necessidade que todo grande poeta tem de, infinitamente, burilar sua poesia. Em um seminário, Rachel de Queiroz disse à platéia que ao acabar de escrever um livro e revisá-lo uma vez, não queria mais saber dele. A autora de O Memorial de Maria Moura sabia que se a obra fosse revisada outras vezes, já não seria aquela, mas outra.

Claros e escuros, os quadrados do tabuleiro do xadrez nos remetem ao claro enigma da poesia. Mulher experiente, a poesia não se entrega a qualquer um. É preciso saber tocá-la, amá-la, até convencê-la à completa entrega. Tarefa das mais delicadas, pois de início ela rejeitará, evitará e se esquivará até não mais resistir aos assédios do poeta. A conquista da palavra poética, no entanto, não se dá de forma definitiva. Ao enxadrista da palavra caberá a árdua missão de conquistar tal dama a cada novo dia, como se fosse a primeira vez. Assim, um grande poeta jamais deita seu rei. Ao contrário, reelabora estratégias e ousa novas jogadas para, no leito da poesia-mulher, recriar mundos, preencher solidões e reinventar vidas.


E é a maestria dos grandes poetas, que identificamos em Mortos não jogam xadrez e Haikalantos, obras de Francisco Carvalho, publicadas em 2008. Haikalantos é um neologismo que contempla a junção das palavras haicai (forma de poesia japonesa surgida no século XVI, composta de três versos, com cinco, sete e cinco sílabas) e acalanto ( cantiga de ninar): “A vida é um teorema/ o sonho começa e acaba/ nas entranhas do poema” e “A vida é um fardo/ para o bêbado/ ou para o bardo” e ainda: “Múmias de borboletas/ embalsamadas alçam vôo/ dentro das gavetas”.

Dividido em quatro partes, Mortos não jogam xadrez traz setenta e nove poemas, dedicados à memória de Blanchard Girão, Eduardo Campos, Gerardo Mello Mourão, João Clímaco Bezerra e Manoel de Oliveira Carvalho. Há, não se pode negar, um tom melancólico em quase todos os poemas. Embora o autor discorra acerca do amor, da memória, dos mitos, da realidade e da metapoesia; observa-se um maior destaque à Indesejada das gentes, Ela, a Moça Caetana, a Morte.

Ao dedicar o livro ao seu irmão e queridos amigos mortos, o poeta afirma: “A esses mortos recentes, uma palavra de saudade, nesta viagem sem volta à casa de areia da eternidade”. E assim, Ela passeia por vários poemas em Mortos não jogam xadrez, fazendo lembrar as palavras de Moreira Campos: “Antiquíssima, atual e eterna, com sua cara de máscara. Moldada em gesso? A consultar no pulso um relógio invisível”. Mas, conforme Ibsen, não se pode morrer na metade do quinto ato. “O amor é moeda falsa/ não vale o pulo de um gato/ mortos não jogam xadrez/ no meio do quinto ato”.

Em “Poema de aniversário”, o eu-lírico diz: “Estou numa faixa etária em que as pessoas costumam morrer” e “Aos oitenta anos não existem razões para uma pessoa ser otimista”. Mas afinal, o que é a morte? A morte, responde o poeta: “... é a esquina de uma rua chamada eternidade/ o leito seco de um rio que deságua nos túneis e embocaduras do mar”.

Exímio enxadrista na arte da palavra, Francisco Carvalho sabe muito bem como tratar do amor, da vida e da morte. Mas do que valem as palavras de um poeta no caótico mundo do “tudo pode”? Valem para cantar o amor ao ser amado. Valem para denunciar o terror “por mais que os versos sangrem”. Servem para “todas as filosofias que nos apunhalam pelas costas”. As palavras de um poeta servem para nos lembrar de que “sob o signo das eras, a vida é só uma para homens e feras”. E assim sendo, a poesia de Francisco Carvalho se mantém cada vez mais atual, mais viva e apurada.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

O CEARÁ DO GILMAR DE CARVALHO


Gilmar de Carvalho é desses pesquisadores que não se renderam ao canto de sereia da mesmice, ou seja, escolher um autor e pesquisá-lo eternamente, dizendo as mesmas coisas com palavras sempre novas. Ao contrário, Gilmar optou por caminhos outros. É reconhecidamente um grande autor. Seu livro Parabélum, escrito em 1970, mas só publicado em 1977, por exemplo, já era um romance pós-moderno bem antes de se discutir o advento do pós-moderno. A referida obra, até bem pouco tempo esgotada (meu exemplar é da primeira edição, autografado) tem se tornado uma referência para estudiosos da literatura brasileira, reeditado pelo Armazém da Cultura em 2011. Entre os estudos sobre esse trabalho, citamos Expectativas heroicas: mito, história e leitura em Parabélum, de Gilmar de Carvalho, de 2010. Trata-se de um relevante trabalho escrito pelo pesquisador Saulo Lemos, vencedor do Prêmio Braga Montenegro, da Secretaria de
Cultura do Estado do Ceará. Além dos trabalhos de ficção, Gilmar de Carvalho também produz muita coisa no campo acadêmico, propriamente dito, uma vez é Mestre em Comunicação Social (Metodista - SP) e Doutor em Comunicação Social e Semiótica (PUC - SP), tendo sido professor da Universidade Federal do
Ceará entre 1984 e 2010.

Nos últimos anos, percebemos que o autor em questão tem deixado o ficcionista "um tanto de lado" (o que será que há nas gavetas do Gilmar?), dando maior vazão ao exímio pesquisador da cultura cearense que também é. E assim sendo, entre seus inúmeros trabalhos estão, por exemplo, aqueles sobre Patativa do Assaré, referências indispensáveis para quem deseja mergulhar na poesia do grande poeta. No ano de 2002, veio a público seu livro Publicidade em cordel. No ano seguinte, Bonito pra chover - ensaios sobre a cultura cearense. No ano de 2008 foi a vez de vir a lume a obra Rangel Escultor - o artista que veio de Jardim, uma encantadora pesquisa sobre o escultor José Rangel (1895 - 1969), natural da cidade de Jardim, no sul do Ceará. Em 2011, Gilmar de Carvalho lança Xilogravura - doze escritos na madeira. Em 2013, é a vez de seus leitores serem presenteados com O Ceará do Ednardo. Isso para ficarmos em apenas alguns dos seus trabalhos.

O mais recente trabalho de Gilmar de Carvalho, O Ceará do Ednardo, é um canto de amor ao Ceará. A obra foi publicada pela Expressão Gráfica Editora, impressa em papel couchê fosco, com uma tiragem de apenas mil exemplares (logo vai se tornar raro), contando com apoio cultural da empresa de transportes Guanabara. Com fotos de Francisco Sousa e a leveza de um texto que mistura o acadêmico e o poético, Gilmar de Carvalho passeia pela cultura do Ceará, tomando como referência  as canções do cantor e compositor cearense, Ednardo. Para tanto, o autor tomou como referência nove discos de Ednardo. Conforme Carvalho (2013:88), são eles: Ednardo e o Pessoal do Ceará (1972), O Romance do Pavão Mysterioso (1974), Berro (1976), O Azul e o Encarnado (1977), Cauim (1978), Ednardo (1979), Ímã (1980), Massafeira (álbum duplo), de 1980 e Terra da Luz (1982).

Este livro comemora, afirma Gilmar de Carvalho, os quarenta anos de estreia em disco do compositor Ednardo. O foco, continua o autor, é a relação que ele estabeleceu entre as referências da cultura cearense e a recriação competente feita a partir desta matéria prima. Conforme bem afirma o autor, ao fazer a imersão neste universo sonoro e ao trabalhar os mitos da "cearensidade", Ednardo constrói uma obra que se afasta do folclore, mas mantém as "raízes" e se inscreve no contexto nacional, dialogando com uma visada cosmopolita. E assim sendo, Gilmar de Carvalho vai analisando os passos da cultura cearense, comentando-a a partir de trechos das canções do compositor, ou de outra forma, analisa trechos das canções de Ednardo, observando de que maneira o artista viu e recriou, em forma de poesia, fatos e acontecimentos da cultura cearense, brasileira e universal.

O livro não vem dividido em capítulos, mas em temas que vão desde os primeiros momentos de Ednardo ao se lançar como cantor, indo em busca da sua realização profissional, passando por temáticas relacionadas ao cordel, aos pastoris, aos reisados, aos repentes e aos "caretas" (ainda presentes no carnaval da cidade de Jardim, por exemplo). E é claro, que o autor não descuida de observar e registrar a relação do trabalho de Ednardo com os movimentos musicais ( o Pessoal do Ceará, a Massafeira), com a literatura ( a Padaria Espiritual, por exemplo), bem como a cor local e a identidade cultural da cidade de Fortaleza. Dessa forma, compreende-se que Ednardo não apenas identificou, mas registrou, colocando a cultura cearense frente a frente com uma diversidade que lhe é por demais peculiar.

Assim sendo, O Ceará do Ednardo é, tal qual escreveu Gilmar de Carvalho no meu exemplar, um Ceará de palavras, de imagens e de sons. Boa leitura!

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

CRÔNICAS DA ÁREA Q

Dias desses li o livro Lá nas Marinheiras e outras crônicas (2012), de Bruno Paulino. O livro contém vinte crônicas que tratam de tudo aquilo que uma crônica pode tratar (se é que existe algo que não possa ser tratado em uma crônica). Os textos de Bruno Paulino são de agradável leitura, embora ainda careçam de uma maturidade que o próprio autor ainda não possui. Embora ainda muito jovem, Paulino já demonstra determinação, vontade e empenho tão necessários àqueles que desejam palmilhar os caminhos da escrita. Suas crônicas, no entanto, não pecam pela imaturidade do autor e, a continuar produzindo, a escrita de Bruno Paulino avançará a passos largos em direção à maturidade literária que, deixemos claro, não está associada à idade; mas ao tempo, à experimentação e à prática; pois como aquele ourives do poema do Bilac, o escritor precisa escrever, escrever, escrever mais e escrever melhor. Ao escritor, menos inspiração, mais transpiração. Escrever, escrever e escrever! Melhor que publicar é escrever. Muitas vezes é preciso deixar que os textos dormitem em pastas, mesas e gavetas, para que possam apurar seu sabor e sua textura. Só assim, estarão prontos para serem sorvidos em toda sua essência.


             A crônica de Bruno Paulino é eivada da mais bela cor local. No seu texto, transitam livremente suas memórias de seres, coisas e lugares. E pelas linhas e entrelinhas do jovem cronista passam seu avô poeta, dona Carminha, Manuel Bandeira, Ariano Suassuna, Quintino Cunha e, obviamente, uma das grandes paixões do autor, o compositor Chico Buarque. Os textos do autor são ambientados em Quixeramobim, cidade natal do cronista, mas também de  Antonio Conselheiro e Fausto Nilo. Sombreados aqui e ali, pelo menos na memória do cronista, por frondosos pés de juazeiros e cajás. E quando já é noite, o vento Aracati surge, amenizando a “quentura medonha”, fazendo um bruto sucesso em Quixeramobim,aquela partezinha da chamada área Q. E se perguntarmos do que o cronista tem fome, arriscaria dizer que sua fome é de exteriorizar o que sente, o que vê, o que o entedia. E assim, como todo bom escritor, Bruno Paulino sente  vontade de escrever cada vez mais e, escrevendo cada vez mais, se inserirá no rol daqueles que sabem que o caminho, inclusive o da literatura, se faz mesmo é no caminhar.

                   E se para muitos a crônica nada mais é do que “a prima pobre” dos demais gêneros literários, para Antonio Candido é exatamente a “simplicidade” contida no seu fazer, que a enaltece como gênero. É o que afirma o crítico em seu texto A crônica ao rés-do-chão:

A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.
“Graças a Deus”, seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica mais perto de nós. E para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura, como dizem os quatro cronistas deste livro na linda introdução ao primeiro volume da série. Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.  (CANDIDO: 1992: 13)


E assim sendo, é com satisfação que a literatura brasileira recebe  A menina da chuva (2013), o segundo livro de Bruno Paulino. O livro traz vinte e oito crônicas em uma edição muito bem trabalhada, publicado sob o selo da editora Premius, com prefácio do escritor Diogo Fontenelle. No que concerne à temática das crônicas  da obra em questão, o autor se mantém fiel a alguns temas que lhe são por demais importantes. E assim sendo, é a sua Macondo-Quixeramobim que ocupa grande parte dos textos ali contidos. Pela pena do cronista se desenham e se transmutam o homem (p.25), a menina (p.17, p. 45), a chuva (p.17), a infância p.49), os livros (p.73), as madrugadas insones (p. 97), o amor (p.121) e a cidade (125), entre outras. A linguagem do autor é simples e fluida como se espera da linguagem constitutiva de uma crônica. E assim sendo, pelo texto de Bruno Paulino quase vemos a menina-mulher correr sob a chuva em um desvario alucinado de infância, a se banhar na praça da igreja Matriz com suas bicas de jacarés.

Na crônica Cativando livros, cativando pessoas (p.73), o cronista nos diz da sua sobrinha e sua relação com os livros. No caso,O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupery. E como uma madeleine proustiana, a crônica de Bruno Paulino me levou a lembrar que as pessoas que gostam de livros costumam comprá-los aos montes, quase no metro, no quilo. Onde vão colocá-los ou quando vão lê-los são questões nas quais não  pensam de imediato. O bom mesmo é ter o livro. Melhor ainda é poder cheirá-lo, sair com ele, passear, mostrá-lo aos amigos, amantes também de livros; esperando por aquele rápido momento em que a inveja surgirá em algum, quase imperceptível, gesto de mão, olhos ou bocas.
          
 Quem realmente gosta de livros, adora dá-los de presente, bem como recebê-los. Minha pessoa ainda não consegue vislumbrar, no entanto, a ação de dar um livro digital de presente a alguém. E, por enquanto, também não tenho interesse em recebê-los. Sabendo disso, alguns amigos continuam me presenteando com livros físicos. Se conseguirei ler todos os livros que ganho e compro antes de morrer? Sinceramente não tenho a menor preocupação em relação a isso. O que bem sei é que, de uma forma ou outra eles continuam chegando e, cada um ao seu jeito, vão se chegando aqui, se amontoando ali. E assim, vão ficando e fazendo parte da família. Concordo quando o cronista afirma ser necessário cativar livros, uma vez que livros cativam pessoas, gente, gentileza. Nessa pegada, quem sabe, como bem deseja o autor, não cativamos um mundo melhor?

A crônica é, então, uma forma de texto capaz de registrar o cotidiano em toda a sua capacidade de desvelar o que se esconde, bem como aquilo que se dá, deliberadamente, aos olhos. E se nos fosse cobrada uma possível definição para a crônica, optaríamos por aquela que nos oferece Jorge de Sá:


Na crônica, embora não haja a densidade do conto, existe a liberdade do cronista. Ele pode transmitir a aparência de superficialidade para desenvolver o seu tema, o que também acontece como se fosse “por acaso”. No entanto o escritor sabe que esse “acaso” não funciona na construção de um texto literário (e a crônica  também é literatura), pois o artista que deseje cumprir sua função primordial de antena do seu povo, captando tudo aquilo que nós outros  não estamos aparelhados para depreender, terá que explorar as potencialidades da língua, buscando uma construção frasal que provoque significações várias (mas não gratuitas ou ocasionais), descortinando para o público uma paisagem até então obscurecida ou ignorada por completo. (Sá, 1985: 09-10)


Atento aos meandros exigidos na feitura da crônica, Bruno Paulino tem demonstrado estar no caminho certo, no que diz respeito a ver o mundo com olhos de quem sente, de quem sofre e de quem ama; mostrando-se pronto para registrar a vida, sem ser necessário adormecer para que se possa acordar de um encanto, pois o encantamento consiste mesmo é nas acontecências do dia-a-dia, no estar vivo; atento a tudo aquilo que nos circunda, nos olha, nos sente, nos lê e, inevitavelmente, nos escreve e nos devora.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

PESSOAS COMUNS EM HEMINGWAY E CÉZANNE

Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, o mundo precisava de um novo redimensionamento. O homem já não era mais o mesmo. Novos caminhos eram mais que necessários. Assim, nos estados Unidos da América, Bob Dylan afirmava que os tempos estavam mudando. The times they are a-changing, dizia o músico. Seus versos já eram mais discutidos que os poemas de T.S.Eliot. No ritmo das mudanças, McLuhan era mais lido que Karl Marx e o consumo, esse grande deus hodierno, já surgia nas pinturas de Andy Warhol e Jean-Michel Basquiat.

Na velha Londres, David Bowie encarnava Ziggy Stardust. Caído na Terra, esse ser vindo das estrelas era capaz de assistir, ao mesmo tempo, cinqüenta telas de TV. Tratava-se, é claro, de uma releitura de Argos. E nada melhor que Argos para representar uma época capaz de fazer sentir tudo ao mesmo tempo.
Ernest Hemingway

Essa forma semiótica de ver as coisas foi denominada por críticos literários como Ihab Hassan, Leslie Fieldler, Irving Howe e Harry Living, nos anos 50 e 60, como Pós-Modernismo. Termo esse que não deve, em hipótese alguma, ser usado como sinônimo de Pós-Modernidade, pois enquanto o termo Pós-Modernidade está relacionado aos estudos sociais, Pós-Modernismo relaciona-se aos estudos culturais. Assim sendo, no centro do que se convencionará chamar de Pós-Modernismo, surgirão termos relevantes como: metalingüística, metalinguagem, metaficção e intertextualidade, entre inúmeros outros.

A intertextualidade, compreendida como a relação, o diálogo de uma arte com outra, está relacionada aos recursos que um determinado autor utiliza com o intuito de enriquecer e diversificar seu próprio trabalho. Tal recurso pode ser identificado na obra de Ernest Hemingway, por exemplo. Para Earl Rovit e Gerry Brenner (1986), a narrativa do autor de O Velho e o Mar, pode ser compreendida como um perfeito repositório da cultura Ocidental. Dessa forma, e bem à sua maneira, o renovador da moderna prosa norte-americana traz para seus contos, por exemplo, temas como literatura, música, pintura e misticismo religioso, entre várias outras temáticas.

No que concerne à pintura, para ficarmos apenas em dessas temáticas, muitos estudiosos afirmam que a prosa hemingwayniana é fortemente influenciada pela arte de Goya. Contudo, acreditamos que, muito mais que Goya, a prosa do autor de Morte na Tarde é mais forte em intertextualidades com a pintura de Paul Cézanne, o pintor francês obcecado pela perfeição técnica. A obsessão de Cézanne é tomada à risca por Hemingway na feitura da sua narrativa.O próprio Hemingway afirma em Paris é uma festa, que muito de sua técnica foi aprendida quando das observações que fazia, num museu de paris, das pinturas de Cézanne.
Paul Cézanne

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty em A Prosa do Mundo, afirma: “Os atos de pintar e escrever são praticamente autônomos, pois seus únicos mestres são a natureza e a verdade”. Paul Cézanne, por sua vez, dizia que um bom pintor era aquele capaz de pintar inclusive odores. Hemingway era, podemos afirmar, capaz de escrever inclusive odores.

Paul Cézanne e Ernest Hemingway abordam, cada um ao seu modo, temas como natureza morta, paisagens e pessoas comuns. Se tomarmos como exemplo o conto Big Two Hearted River (O rio dos dois corações), não é difícil perceber o quanto da pintura de Cézanne espraia-se na prosa de Hemingway. No referido conto, do início ao fim, o narrador conduz o protagonista Nick, passo a passo, da mesma forma como um pintor escolhe e aplica suas tintas na concepção de uma tela. Assim, enquanto Nick caminha rumo ao grande rio, o narrador pinta, digo, descreve todo o cenário, como a emoldurar a narrativa.

A relação pintura/escritura ou Cézanne/Hemingway não se limita apenas ao conto citado, mas em várias outras obras do autor de O sol também se levanta. As pessoas comuns de O velho e o mar, por exemplo, bem como aquelas de A clean well-lighted place são tão comuns quanto os jogadores de carta, de Cézanne. Comparando-os, é possível observar como a dignidade, leitmotiv da prosa de Ernest Hemingway, delas emana em todas as suas letras, cores, idéias e odores.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O CHIAROSCURO DO DRAMA BECKETTIANO

Samuel Beckett
Samuel Beckett disse certa vez, que preferia a França em guerra à Irlanda em paz. Essa forte relação do autor com França talvez sirva para justificar o motivo que levou o escritor irlandês a escrever quase toda sua obra, primeiramente em francês. Muitos são os motivos, que contribuem para que um escritor opte por escrever em uma língua, que não a sua. Isso se dá, na maioria das vezes, por questões político-ideológicas ou ainda quando aquele escritor é membro de uma comunidade linguística pequena. Contudo, não era esse o caso do autor em questão, uma vez que este não era, nesse sentido, um exilado, conforme lembra Martin Esslin (1968). Perguntado certa vez sobre o motivo que o levara a escrever primeiramente em francês, Beckett respondeu: “Parce qu’em français c’est plus facile d’ecrire sans style”. Com isso, Martin Esslin compreende que, ao escrever na sua própria língua, o escritor corre o risco de se deixar levar pela liberdade que esta permite. Ao contrário, escrevendo em outra língua, este mesmo escritor seria forçado a exigir de si mesmo uma maior disciplina, objetivando dizer o que pretende com o máximo de clareza e economia de expressão. E se assim o é, acreditamos, como Esslin, que os objetivos de Beckett foram alcançados. Observando-se os principais trabalhos do autor irlandês tem-se a constatação de uma maior preocupação
por parte dele com a forma, sem, no entanto se descuidar do conteúdo. O drama beckettiano é pleno de tormentos, angústias e fantasias. Os seres humanos postos nas tragicomédias (ou seriam comitragédias?) beckettianas estão absortos em suas desequilibradas ilusões e fantasias, forçados a vivenciar o sofrimento até o máximo dos seus limites. Aos leitores de plantão, aconselha-se, no entanto, não
perder tempo tentando descobrir, compreender, explicar ou demonstrar o que, conforme Steiner (1990), esse “Mestre da nuance e do crepúsculo” quer dizer. Qualquer tentativa de se chegar a uma interpretação clara e certa, por exemplo, do estabelecimento da identidade de Godot através de uma análise crítica seria tão tola, afirma Martin Esslin, quanto tentar descobrir contornos definidos escondidos por trás do chiaroscuro de uma tela de Rembrandt pelo simples método de se raspar a tinta. Uma obra, sabemos, sempre quer dizer muito mais do que acreditamos ela possa dizer. Obras como a de Samuel Beckett estão preocupadas em transmitir, reforça Esslin, o senso de mistério, perturbação e ansiedade do autor quando confrontado com a condição humana, bem como o seu desespero diante de sua incapacidade de encontrar um sentido na existência. E é exatamente a condição humana (Beckett a chama de “condição desumana”) e a busca por um sentido na existência, que constituem o cerne da obra do autor em análise. Suas obras Esperando Godot (1952), Fim de Partida (1957) e Dias Felizes (1961), por exemplo, servem como referência para a compreensão do que afirmamos até aqui. Vejamos um pouco sobre Esperando Godot.
Era agosto de 1942. Paris estava ocupada pelas forças alemãs. A brutalidade, a prisão de alguns amigos da Resistência e o declarado anti-semitismo do regime invasor contribuíram para que Beckett abandonasse Paris, indo trabalhar como agricultor em Vaucluse, sul da França. Somente com a libertação de Paris, em 1945, é que Beckett retorna ao seu apartamento nos limites de Montparnasse, Paris. Nos cinco anos que se seguiram, o autor trabalhou incansavelmente, escrevendo algumas de suas peças mais importantes: Eleutheria, Esperando Godot e Fim de Partida. Escreve a trilogia Molloy, Malone Morre e O Inominável. Escreve ainda Mercier et Camier e Textos para Nada. De toda a obra beckettiana, Esperando Godot é, certamente, a mais conhecida e a mais encenada. Escrita em francês, Esperando Godot (Em attendant Godot) teria sido escrita no ano de 1949. De início foi rejeitada pelo mercado editorial, que ainda não possuía as ferramentas necessárias para compreender, embora possuísse ignorância suficiente para recusar grande parte da obra produzida no período. Vários empresários do meio artístico desprezaram Esperando Godot por, segundo eles, não possuir qualidade dramática. Em tempos de guerra, acreditamos, não é aconselhado atirar no próprio pé como fizeram aqueles senhores. Roger Blin, ator próximo a Jean Genet e Jean Cocteau, assumiu o risco e, sob sua direção (Blin fez o papel de Pozzo), Esperando Godot estreou no palco do Théatre de Babylone, no Boulevard Raspail, tornando-se um dos maiores sucessos do teatro do pós-guerra. Embora não tenhamos dados que possam comprovar, das quatrocentas apresentações feitas no Théatre de Babylone até os nossos dias, Esperando o Godot já deve ter sido traduzida e montada em diferentes idiomas e lugares,  se não em todo o mundo. Conforme Fábio de Souza Andrade, no prefácio à edição brasileira da obra, Godot já foi encenada por internos no interior de um presídio, em Sarajevo dividida e sitiada, com atores de várias etnias; durante o apharteid, só com negros atuando e também com um elenco composto apenas por mulheres, bem como encenações dirigidas pelo próprio Beckett. Assim, concordamos com Andrade quando este afirma que já não esperamos por Godot. É ele quem vem ao nosso encontro. Godot, afirma o autor de Beckett: O Silêncio Possível (2001), é o ausente que ganhou vida própria, deixando rastros por toda parte. Mas o que há em Esperando Godot, se sabemos nada haver em Esperando Godot?  
Conforme Martin Esslin (1968), Esperando Godot não conta uma história; explora uma situação estática. “Não acontece nada, ninguém vem, ninguém vai, é horrível”. A situação estática apontada pelo autor de O Teatro do Absurdo (1968) consiste em uma das inovações trazidas por Beckett ao teatro modernista. Se no chamado teatro convencional a ação é o que motiva o espetáculo, em Beckett é a imobilidade. E é assim que em Fim de Partida (1957), Ham and Clov, Nagg e Nell dividem um abrigo que, ao mesmo tempo, lhes é lar e confinamento. Ham está preso a uma cadeira. Nagg e Nell, seus pais, estão limitados, cada um, ao seu camburão de lixo. Suas limitações também são físicas, pois não possuem membros completos; mas apenas cotos. Em Dias Felizes (1961), Winnie e Willie dividem o palco. Enquanto Willie tem certa “mobilidade”, Winnie aparece enterrada até a cintura. O grau de imobilidade de
Winnie aumenta no segundo ato, quando estará enterrada até o pescoço.
Em Esperando Godot também não é diferente. O lugar é ermo. À beira de uma estrada, no meio do nada. Perto de uma árvore, Vladimir e Estragon, dois vagabundos esperam Godot. Ao final do primeiro ato, um menino entra em cena e avisa que o Sr. Godot não virá, mas certamente estará lá amanhã para o encontro marcado com os dois clowns. O segundo ato termina da mesma forma, com as mesmas falas. Neste caso, ditas em ordem inversa. Esslin (1968) lembra, que a sequência dos acontecimentos e o diálogo diferem em cada ato. De cada vez Vladimir e Estragon encontram outro par de personagens, Pozzo e Lucky, senhor e escravo, em diferentes circunstâncias. Em cada ato, reforça Esslin, os dois vagabundos tentam o suicídio e fracassam, por razões diversas. Tais variações, no entanto, servem apenas para enfatizar o fato de que essencialmente tudo se resume sempre à mesma coisa: a espera. Vladimir e Estragon são duplos, como os vários outros duplos de Beckett. Mas também podem ser muitos. Impossível não vê-los e não lembrarmos, por exemplo, Laurel e Hardy, o Gordo e o Magro. Ou vê-los nas figuras dos dois ladrões crucificados com Cristo. Para outros, também podem ser representações das figuras de Caim e Abel. Sobre as relações de Godot com a Bíblia protestante e o cristianismo, vejamos o que observa Harold Bloom (1995):


“... Godot é obcecado pela Bíblia protestante: Caim e Cristo pairam por perto, mas Godot não é mais Deus que o pavoroso Pozzo. Seu nome é arbitrário e sem sentido, qualquer que seja a origem, em Balzac (a quem Beckett detestava) ou na vida do próprio Beckett. Quanto ao cristianismo e Esperando Godot, Beckett foi brutalmente definitivo: “O cristianismo é uma mitologia com a qual estou perfeitamente familiarizado, e por isso a uso.” ( BLOOM, 1995:475)

Como seja, os clochards de Beckett caracterizam a incessante busca do eu, perdido (ou seria escondido, recluso?) no mais íntimo de cada um de nós, homens angustiados a esperar, esperar, esperar... 

sábado, 8 de fevereiro de 2014

OS ACANGAPEBAS: NARRATIVAS TOPOFÍLICAS


Das mais variadas formas de narrativas, confesso ser apaixonado, primeiramente pela crônica e, em seguida, pelo conto. Embora a "prima pobre" seja minha grande paixão, o conto se revela ao meu ser como um dos mais belos amantes. E o que é mesmo que mais me atrai no conto? É sua capacidade de dizer tudo o que se pretende com a maior economia possível de palavras. Ora, se não é Tchekhov quem nos diz que se uma determinada  arma não será usada no decorrer da narrativa, por qual razão mantê-la na história?

É claro, porém, que nem todo contista consegue colocar em prática a ideia de Poe (1809-1849), quando discorre sobre a necessidade que dever existir entre o tamanho do conto e a reação que ele consegue causar em quem o lê. Eis a famosa  "unidade de efeito" defendida pelo autor norte-americano. Para ele, a obra precisava ser dosada, para que a excitação provocada pela leitura perdurasse por um determinado espaço de tempo. Dessa forma, se o texto fosse muito longo, o efeito (a excitação) seria diluído. A unidade de efeito seria alcançada, então, quando de uma só assentada, nós, leitores, dessemos conta daquilo a que se propôs o autor. 

Não podemos afirmar que o ponto de vista de Allan Poe não proceda. Contudo, tendo em vista a correria para o nada do nosso dia-a-dia, torna-se quase impossível lermos o que quer que seja duma assentada só, quando dificilmente temos tempo para sequer sentar. Pela teoria proposta pelo contista, O Alienista, de Machado de Assis, jamais seria um conto, como não o é, mas uma novela. E, nem de longe, podemos reproduzir e aceitar a proposição de Mário de Andrade, quando diz que "um conto é aquilo que o autor chama de conto". Mas o conto, e aí concordamos com Cortázar, está para a fotografia assim como o romance está para o cinema. O conto é o instante, narrado com o maior poder de objetividade, sem a necessidade de "floreios" de qualquer espécie. É o que conseguimos perceber nas narrativas contidas em Os Acangapebas (2012), livro de contos do escritor Raymundo Netto.

Raymundo Netto se insere na leva dos autores recentemente surgidos no Ceará. Raymundo Netto incursiona com considerada desenvoltura pela literatura infanto-juvenil, pelo romance e pelo conto. Estaria ele também flertando com a poesia? É bem provável que sim! Vencedor de inúmeros prêmios e figura de extrema relevância na Cultura da cidade de Fortaleza, o referido escritor brindou a todos, em 2012, com as narrativas contidas no seu Os Acangapebas. O livro saiu pelo selo Fundo de Quintal e traz trinta e nove contos, sendo vencedor do Edital de Incentivo à Literatura da Secretária de Cultura de Fortaleza, de 2007 e do Prêmio Osmundo Pontes de Literatura da Academia Cearense de Letras, de 2011. E você, caro leitor, pode estar se perguntando  que diabos significa "acangapebas". Pois bem, para poupar-nos o trabalho de sairmos à caça de tal significado; na abertura da obra, o próprio autor já nos instrui, dizendo tratar-se de um termo oriundo do Tupi-Guarani, sendo, acangapeba  o mesmo que cabeça-chata. De acanga, cabeça; peba, peva, chata. Trata-se, é óbvio, de uma clara alusão a alcunha pela qual são tratados os cearenses mundo afora. Isso, no entanto, não implica em uma geografia, na acepção própria da palavra, seja ela feita de gente, de terra ou de palavras. Longe disso! O que se tem, na verdade, é uma espécie de topofilia, tal qual nos propõe Yi-Fu Tuan, ancorada nas percepções, atitudes e valores do homem cotidiano na sua lida diária com o meio ambiente, com a vida, com as coisas, com a comunicação ou com a ausência dela.

A epígrafe que abre o livro é de Dante Alighieri, contida na Divina Comédia,e diz: "lasciate ogni speranza, voi ch'entrate". Abandonai todas as esperanças, vós que entrais (tradução nossa). A escolha feita pelo contista não foi à toa. Compreendemos que sua mensagem é deixar claro que leitor deverá começar sua leitura de coração aberto, sem o pré-conceito que costuma se ter frente à uma obra nova. Quando diz para entrarmos na leitura sem esperanças, infere-se que não há receitas prontas para a feitura da literatura, cabendo ao leitor descobrir os caminhos propostos pelos imbricamentos da teia narrativa, sendo perfeitamente possível um estranhamento em qualquer um dos sentidos existentes. E assim sendo, a contística de Raymundo Netto discorre sobre o amor, a vida e a morte por meio de uma simbologia que nos remete à mitologia daltoniana. Se por um lado Dalton Trevisan construiu toda uma simbologia que serve de arcabouço para sua literatura, Raymundo Netto parece trilhar caminho semelhante. Dessa forma, o narrador de Os Acangapebas visita espaços-lugares que são tão nossos, enquanto cabeças-chatas que somos. A cidade, O circo (p.102) e A bodega (116), por exemplo. E Vassourando (p.111), bem que poderia se chamar "barrendo". É perceptível a tentativa do autor em fazer com que seu texto dialogue com outras obras, outros autores e outras ideias. Como não lembrar, por exemplo, de Moreira Campos (1914-1994) em Portas fechadas (p.51) ou ainda de Pedro Salgueiro, em Cabelos azuis (p.62)? Ao propor tal aproximação, extremamente profícua, ao nosso ver, Raymundo Netto demonstra estar em dia com as mais novas formas de ver, de sentir e registrar o mundo.

No que diz respeito à presença recorrente de símbolos nas narrativas d'Os Acangapebas, há um mundo deles à espera de decifração. O gato, por exemplo surge em três contos (p.21, p.31 e p.54); a mulher, em dois (p.31, p.34). Há ainda o sótão (p.16), o estandarte (p.80), o espelho (p.83) e o relógio (p.90), entre muitos outros. O próprio termo acancapeba, que dá nome ao livro, é eivado de uma imensa gama de possibilidades de compreensão. Contudo, cabe ao leitor não se limitar àquilo que apenas se mostra, pois, como bem afirma Fernando Pessoa: "tudo que vemos é outra coisa". Assim sendo, cabe a esse leitor mergulhar e descobrir a imensidão do iceberg de interpretações possíveis nas narrativas topofílicas contidas em Os Acangapebas. 

E assim, leitura feita, tal qual acangapebas, vamos nos chegando às janelas da literatura de Raymundo Netto. Através da sua maneira de contar histórias, assistimos à novela, pedimos um cafezinho e quase nos vemos escorados nas portas dos bares e dos cabarezinhos desse mundo de meu Deus. E dessa forma, a leitura d'Os Acangapebas de Raymundo Netto é como aquele amanhecer capaz de despertar os passarinhos adormecidos nas nossas mentes em pífanos alegres, no cheiro quente do cuscuz e do café, proporcionando mais luz, como nos diz Goethe, para que não terminemos nossos dias a tiquetaquear a vida de forma mecânica e quase absurda.

RAYMUNDO NETTO É:


Escritor, designer, quadrinhista e produtor cultural. Autor do romance "Um Conto no Passado: cadeiras na calçada", ganhador do I Edital de Incentivo às Artes da SECULT/CE (2005), da "Cronologia Comentada de Juvenal Galeno" (Secult, 2010) e dos infantojuvenis "A Bola da Vez" (2008), "A Casa de Todos e de Ninguém" (2009), "Os Tributos e a Cidade" (2011) e "Boto Cinza Cor de Chuva" (2013), todos pelas Edições Demócrito Rocha. É cronista convidado do Caderno Vida & Arte do jornal O POVO desde 2007. Foi coeditor das revistas "CAOS Portátil" e da "Para Mamíferos". Mantém o blogue AlmanaCULTURA. Foi Coordenador de Políticas do Livro e de Acervos da SECULT, responsável pela coordenação editorial das suas coleções, membro do Conselho Curador da IX Bienal Internacional do Livro do Ceará, redator e elaborador do Prêmio Literário para Autor Cearense e um dos coordenadores da I Feira do Livro do Ceará em Cabo Verde. Autor de "Os Acangapebas", coletânea de contos, ganhadora do Prêmio Osmundo Pontes da Academia Cearense de Letras (2011) e do Edital de Literatura da SecultFOR (2007). Recebeu a Medalha Boticário Ferreira em 2012, pelos serviços prestados à Cultura Cearense. Atualmente é editor adjunto das Edições Demócrito Rocha. 





quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A EPISTOLOGRAFIA DE ELIZABETH BISHOP

A poeta Elizabeth Bishop (1911-1979) aportou no Brasil, em santos, no ano de 1951. Ao deitar seus olhos norte-americanos sobre o país, certamente a autora não se sentiu brasileira, morena como cada um dos nativos com os quais passaria a estar vez ou outra. o olhar da autora em questão estava então prenhe de um compreensível estranhamento, mas desde o início também estava prenhe do olhar estrangeiro, vertical, superior, da mulher norte-americana branca, culta, formada em medicina e dada aos prazeres das viagens mundo afora. 


Vivendo por quase duas décadas no Brasil, a autora produziu uma vasta correspondência que cobre as décadas de 50 e 60. Através desses escritos, é possível perceber o olhar estrangeiro, o estranhamento dos hábitos brasileiros, o governo dúbio de Vargas, bem como as transformações socioeconômicas fomentadas por Juscelino Kubitschek. Nesse sentido, as missivas de Bishop são reveladoras do comportamento tacanho da elite local. Dessa forma, a poetisa discorre sobre os mais variados assuntos, enfatizando a natureza, os imigrantes e as favelas, por exemplo. A maior parte da correspondência de Elizabeth Bishop está publicada nas coletâneas One Art (1994), Uma Arte: as cartas de Elizabeth Bishop (1995) e Words in Air: The complete correspondence between Elizabeth Bishop and Robert Lowell (2008). As cartas de Bishop com Lowell foram editadas por Thomas Travisano e Saskia Hamilton, ainda sem tradução para o português. As cartas da edição norte-americana de One Art, por sua vez, foram selecionadas e organizadas por Robert Giroux. A edição nacional de One Arte, de 1995, teve suas cartas selecionadas por Carlos Eduardo Lins e Silva e João Moreira Sales, publicada pela Companhia das Letras e traduzida por Paulo Henriques Britto.
Através da correspondência de Elizabeth Bishop é possível perceber a visão da autora sobre o modo de viver no Rio de Janeiro, bem como nas outras cidades pelas quais a poetisa passou e morou enquanto esteve no Brasil. Pelos olhos e pela pena de "dona Elizabetchy" passa toda a sorte de problemas vividos pela população brasileira. Problemas esses que vão dos mais simples aos mais complexos e que, comuns nas décadas de 50 e 60, ainda assombram o povo brasileiro geração após geração. Tratam-se de problemas culturais, políticos, educacionais e socioeconômicos, entre inúmeros outros.

Além dos problemas mencionados, as cartas de Bishop também abordam com bastante recorrência o cotidiano da própria escritora, no que concerne às suas questões pessoais, à sua produção literária e aos seus amigos e pessoas próximas.Deslocada geograficamente, mas sempre a procura de um porto, a correspondência de Elizabeth Bishop dialoga com a sua poesia, quando a poeta não se põe no centro dos acontecimentos, mas à margem, no papel de  espectadora privilegiada.

Elizabeth Bishop escreveu milhares de cartas ao longo de toda sua vida. A edição americana das suas cartas cobre um período que vai de 1928 até 1979. Na edição brasileira, no entanto, a carta mais antiga é de 1934. Para Bishop, escrever cartas era algo quase obsessivo, não se limitando a autora a escrevê-las , mas dedicando muito de seu tempo a ler as cartas dos outros. Na introdução à edição brasileira, Robert Giroux diz: "Elizabeth Bishop afirmou que uma vez, estando hospedada na fazenda de sua amiga Jane Dewey, uma física nuclear, escreveu quarenta cartas num único dia...". Sobre o ato de escrever cartas, é a própria Bishop, citada por Giroux, na mesma introdução, que afirma em carta a amiga Ilse Barker: "Tenho pena das pessoas que não conseguem escrever cartas. Mas desconfio também que eu e você, Ilse, adoramos escrever cartas porque é como trabalhar sem estar de fato trabalhando".

A epistolografia da autora norte-americana pode ser vista como um grande mosaico de relevante importância para a compreensão do período vivido pela autora de uma das mais importantes obras do século XX. E nesse arcabouço, a produção epistolográfica de Elizabeth Bishop tem muito a contribuir com os estudos sobre o mundo em geral, e sobre o Brasil, em específico.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

EIS O LIVRO DE MARTA, CARO LEITOR, ACEITAS?

 Em épocas de livros eletrônicos, nunca se publicou tanto no Brasil. Parece contraditório, uma vez que em cada cinco brasileiros, um é analfabeto funcional, constituindo 20,3% da população. Ou seja, com menos de quatro anos de estudo. Observadas as qualidades daquilo que se publica e daquilo que se lê; aí sim, o buraco é bem mais embaixo. Mas Rodrigo Marques é homem conhecedor do caminho das letras, sabendo trilhar como poucos os meandros não apenas da poesia, mas do romance, do cordel e do conto. Premiado várias vezes, Marques surge no universo da literatura brasileira a partir do lançamento de Fazendinha (2007). Muito bem recebido pela crítica especializada, Fazendinha se mostrou como um oásis em meio ao deserto das inutilidades “poéticas” publicadas aos borbotões. Novamente premiado em concurso literário, Rodrigo Marques traz agora a lume sua mais recente publicação: O Livro de Marta.
Sem preocupação com quantidade, o pequeno grande livro de Rodrigo Marques contém uns trinta poemas dos bons. Todos eles tendo Marta como leitmotiv. Mas afinal, quem é Marta? Isso o autor não confessa nem sob tortura. Mas o crítico, assim como a mulher, em tudo se mete. E eis que encontra Marta em tudo quanto é situação, cores e tons. Descobrimos, assim, que a linha (ou seria a vida?) de Marta é afiada, passada em esmeril, tal qual a faca só lâmina de João Cabral de Melo Neto, a navegar pelos rústicos mares sem abismos, pois abissal já o é a própria Marta. E não importa se Pablo Neruda nada escreveu para Marta. Marta não dá a mínima para tudo isso. Ao contrário, se deleita com uma taça do melhor dos vinhos, enquanto seu vestido se esvai e seu cheiro escapa do corpo. Quanto ao eu lírico esse se banha e escorre pelo ralo, sem direito a uma segunda chance. E é uma pena, que não consigamos ver o piercing de Marta brilhar na sua curva mais escura, embora o saibamos lá. Mas pelas palavras do poeta, quase sentimos seu gosto metalizado em nossas bocas e imaginamos Marta fazendo as unhas no salão mais caro. Mas afinal, quem é Marta? Uma passista de carnaval, um quadrúpede ou a mulher que bebe no bar ao lado do salão mais caro, enquanto a cada um de seus goles o chão afunda mais um pouco?
Ela é a Marta do poeta, como Aurélia e Lucíola o são de José. Como Beatrice o é de Dante, como Ofélia o é de Shakespeare, Heloísa de Abelardo, Isabeau de Navarre; assim como Isolda não é de Tristão, nem muito menos Guinevere de Lancelot. Marta é assim, essa incógnita, essa esfinge, esse enigma nada claro. Mas o livro não é de ninguém senão dela, que é citada pelo menos umas trinta vezes ao longo da obra, e é para ela que o livro é dedicado. Marta contém em si toda essa gama de desejos, insultos e tédios. Mas o tédio, diz-nos o poeta, já não é mais sinônimo de amor. Assim, só resta rasgar aqueles velhos trinta bilhetes escritos, mas jamais enviados à Marta. O mais importante agora é continuar a escrever bilhetes outros, novos. Bilhetes não têm corpos, suor, porta ou aspas, adverte-nos o poeta. Bilhetes são apenas ritmos de letras, continua. Mas para que constituir provas contra si?  A incapacidade de decifrar Marta pode ser fatal, pois nunca sabemos o outro lado da moldura. A diferença entre o que se esconde e o que se dá aos olhos. Assim sendo, corremos o ritmo, a estrada portátil, no mesmo espaço em que Marta prolonga o corpo ou liberta a lycra enrugada, travestindo-se em cada mulher da rua, dos sonhos, da academia, dos desejos (in)contidos, da praia, parada no semáforo ou a gemer na cama, a uivar na mata, enquanto seus olhos bombardeiam horizontes plenos de hesitação e desejo.
A chegada de O Livro de Marta ao mercado editorial vem apenas reforçar o que a crítica já sabia a respeito da qualidade literária das obras de Rodrigo Marques. Prenhe de poesia da melhor qualidade e eivada de apurado rigor literário, o poeta oferece sua obra a analise e ao deleite daqueles que ainda não perderam a capacidade de sonhar e de se deixarem envolver por uma literatura de refinada espécie. A literatura, sabemos, não muda o mundo, mas muda as pessoas. E se O Livro de Marta nada mudar no mundo, que fique a intenção provocadora do poeta de instigar a Marta que cada um de nós, homem ou mulher, mantém encalacrada nos mais recônditos escaninhos da nossa compleição humana.

Eis O Livro de Marta, caro leitor, aceitas?