quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O CONTO DA AIA, DE MARGARET ATWOOD

O presidente dos Estados Unidos é morto a tiros. O Congresso é metralhado. Seria obra de fanáticos islâmicos? O exército declara estado de emergência. A Constituição é suspensa. Esse é o mote que desencadeia toda a narrativa que nos é apresentada por Margaret Atwood, na obra The handmaid’s tale, publicada no ano de 1985. O referido trabalho foi traduzido para o português brasileiro, como O conto da aia, por Ana Deiró, e publicado pela editora Rocco. Falamos aqui da edição de 2017. A obra é composta de quinze partes, contendo ao todo quarenta e seis capítulos, acrescida de uma última parte denominada de “Notas históricas”.

A narradora de O conto da aia é Offred, uma das servas da República de Gilead, antigamente conhecida como Estados Unidos da América. A palavra “Gilead” é mencionada inúmeras vezes na Bíblia, significando, por exemplo, “Monte do testemunho” (Gênesis 31:21). Trata-se de uma região montanhosa no leste da Jordânia. É também conhecida como “A terra de Gilead” (Números 32:1) ou apenas "Gilead" (Salmos 60:7; Gênesis 37:25). Nos Estados Unidos, é uma cidade no condado de Oxford, no Maine.

A referência religiosa se faz necessária, tendo em vista que a antiga democracia norte-americana agora deu lugar a um Estado teocrático, no qual as mulheres não possuem outra função a não ser procriar. Na República de Gilead, as mulheres não podem ler, escrever ou amar. Qualquer mínimo desvio de conduta pode ser punido com a morte. Os preceitos religiosos sobre os quais se pauta Gilead são aqueles do velho testamento. Às aias é permitido rezar e agradecer a Deus por não terem tido um destino pior. As aias não são sujeitos, mas objetos a mercê dos desejos e interesses do comandante, a quem devem servir cegamente. Sua principal função, como mulheres férteis, é manter relações sexuais com os comandantes e prover-lhes filhos. Caso não consigam, serão consideradas “Não mulheres” e, consequentemente, banidas para para as colônias de trabalhos forçados, juntamente com as homossexuais, as adúlteras, viúvas e feministas.

Como dito, Offred é um dos pertences da casa do comandante Fred. Offred pertence a Fred (of Fred = de Fred ). Ao contrário dos homens, das aias não se sabe os nomes. Assim, na narrativa de Atwood, vemos os direitos das mulheres, conquistados a duras penas, serem simplesmente banidos, quando um grupo de religiosos extremistas assume o poder no que agora é conhecido como República de Gilead, uma sociedade teocrática fundada nos valores tradicionais e na dominação das mulheres pelos homens.

Embora Margaret Atwood prefira classificar sua literatura como “ficção especulativa”, O conto da aia é, na verdade, uma narrativa distópica (distopia como oposto de utopia. Utopia no sentido elaborado por Thomas More e distopia no sentido defendido por John Stuart Mill), como muitas daquelas publicadas na década de quarenta. Entre tantas, A revolução dos bichos (1945) e  1984, publicado em 1949 por George Orwell (1903-1950). Esse tipo de romance acabou por ficar limitado à década de quarenta, tendo renascido, de forma mais efetiva, após o atentado de onze de setembro. Um dos grandes exemplos de romance distópico desse período é A Estrada (2006), de Cormac McCarthy, no qual o autor situa sua narrativa em um cenário pós-apocalíptico.

Margaret Atwood
O diferencial que é trazido por Margaret Atwood em O conto  da aia é a apresentação da mulher como figura central da narrativa, apresentando-a como um ser humano que tem sido explorado e oprimido ao longo de toda a história da humanidade, haja vista a figura da aia/serva perpassar a história das mais variadas culturas/sociedades que precederam a Modernidade. Um outro aspecto que também merece ser mencionado é a capacidade que tem o ser humano de oprimir seu semelhante sempre que isso lhe proporcione alguma forma de ganho. Na narrativa em questão, as aias são oprimidas e coagidas por mulheres ( no caso, as tias) que, teoricamente, deveriam estar unidas em defesa de todas. E aí lembramos Orwell, quando o narrador de A revolução dos bichos em dado momento diz: “alguns animais são iguais, mas uns são mais iguais que outros”. O romance de Atwood ganhou enorme destaque na atualidade, quando da eleição de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos da América, se declarando contra as minorias, misógino, autoritário, em constante flerte com atitudes antidemocráticas e manifestações fascistóides. Para alguns, a República de Gilead pode saltar das páginas de Atwood e se concretizar bem no coração da América a qualquer momento. Exagero? Sabe-se lá.
O que podemos firmar é que O conto da aia tornou-se uma das mais relevantes obras a retratar tão bem uma sociedade totalitária, sendo, além disso, uma das raras narrativas distópicas  a deitar olhos sobre as relações entre gênero e política. As questões levantadas por Atwood estão longe de se manterem no campo da ficção. Sua leitura e seu necessário debate coloca a literatura da autora canadense no contexto do que melhor tem sido produzido nesse começo de século XXI.
Diante de uma obra de ficção que é praticamente uma reprodução de uma sociedade real, um pedido passou a ser recorrente nas manifestações pró-democracia e anti-Trump: “Façam com que Margaret Atwood volte a ser ficção”! 

É preciso manter os olhos bem abertos, pois Gilead pode não estar tão longe quanto se pensa.



Assista: 


A Decadência de uma espécie (filme, 1990): https://www.youtube.com/watch?v=SWQ4xnyLy1U


The Handmaid's Tale (série): https://www.hulu.com/the-handmaids-tale



 Veja também:

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/21/eps/1511282293_560656.html



http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/77-capa/2002-margaret-atwood-de-quanto-o-real-supera-a-fic%C3%A7%C3%A3o.html



https://www.youtube.com/watch?time_continue=27&v=PPPxR3PcXkQ

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

A POESIA COMPLETA DE GILKA MACHADO

Gilka Machado
Gilka Machado (1893 – 1980) é dessa poetisas que andam pra frente sem a menor preocupação de carregar a tradição. E se assim o fazem é por não demonstrarem compromisso com a crítica comezinha, com a sociedade excludente e preconceituosa ou com o que quer que seja. O compromisso de poetas como Gilka Machado é com a Poesia apenas. Certamente que ao agir dessa forma, muitas portas se fecham. Muitos olhares se turvam. Mas, Gilka Machado era, como naquela canção de Oswaldo Montenegro, “como a água que desce a cachoeira e não pergunta se pode passar”.

E eis que trinta e sete anos após a sua morte, sua poesia está de volta às prateleiras das boas livrarias (virtuais e físicas) de um país que levará pelo menos setenta e seis anos, para equiparar o nível de leitura da nossas crianças com o nível das crianças de mesma idade de países sérios. Para aqueles que conseguiram furar esse cerco de proposital atraso, a chegada da poesia de Machado é uma dádiva, um acontecimento. Gilka Machado em muito pouco se diferencia da maioria do povo brasileiro. Por ser uma mulher negra dada a escrever poesia erótica teve que enfrentar o machismo, o racismo e o preconceito de classe que sempre pautou os comportamentos mais mesquinhos do povo brasileiro. Mas Gilka Machado não se rendeu, como não se rendem aqueles que nascem como o sol no quintal, como diria Belchior.

A poesia completa de Gilka Machado foi organizada por Jamyle Rkain e publicada pelo selo Demônio Negro, de São Paulo, em 2017. Sobre Gilka Machado, na apresentação do livro, Rkain afirma:
(...) Não bastou ser pioneira da poesia erótica (quiçá da literatura em geral) no Brasil. Gilka também foi um dos nomes mais importantes da política, por ter fundado – junto a Bertha Lutz – o primeiro partido político para mulheres e por ter sido uma das vozes mais importantes na luta da mulher brasileira pelo voto.
Toda a trajetória  de Gilka é inspiradora. Seu papel na liberação da mulher faz dela uma das feministas mais evidentes do país, embora não assumisse o feminismo para si. A melhor forma de homenagear uma poeta e uma mulher como ela é permitir que mais pessoas conheçam sua obra. (RKAIN, 2017:5)



O livro organizado por Jamyle Rkain contém 431 páginas, contendo “notas autobiográficas” (p. 14 – 17), as quais foram escritas pela própria Gilka Machado, texto  publicado originalmente em Poesias Completas, da Editora Cátedra, em 1978. Na sequência, tem-se o prefácio, na verdade, um riquíssimo estudo acerca da obra da poeta (p. 18 – 49), escrito pela professora Maria Lúcia Dal Farra, da Universidade Federal de Sergipe. A partir daí surgem os livros de Gilka Machado, obedecendo a ordem em que foram publicados. Assim, tem-se: Cristais partidos, Estados de alma, Mulher nua, Meu glorioso pecado, Sublimação, Velha poesia. A orelha do livro é assinada por Heloisa Buarque de Hollanda.


A obra traz ainda “notas críticas” (p. 425 – 431), ou seja, breves textos de especialistas  acerca da obra de Gilka Machado. Constância Lima Duarte, da UFMG, por exemplo, diz:

Como tantas escritoras  das primeiras décadas do século XX, também Gilka Machado permaneceu à margem da história literária brasileira, apesar de inúmeros livros e da militância que empreendeu pelo sufrágio. Seus poemas, que falavam em desejo, opressão das mulheres, e denunciavam o machismo, foram insistentemente combatidos pelos escritores modernistas, inclusive Mário de Andrade. Ainda assim, em 1933, foi eleita “a maior poetisa do Brasil” pelos leitores da Revista O Malho. E, em 1979, recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Gilka Machado continua aguardando o reconhecimento da Literatura Brasileira por sua inestimável contribuição à literatura de autoria feminina. (DUARTE, 2017: 425)

Quando a Academia Brasileira de Letras abriu espaço para mulheres, Jorge Amado defendeu a candidatura de Gilka Machado. A  poetisa, no entanto, não demonstrou interesse, recusando a proposta. No texto que escreveu para a edição de Poesias Completas, de 1978, a poetisa diz:

(...) Sonhei ser útil à humanidade. Não consegui, mas fiz versos. Estou convicta de que a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor. (MACHADO, 2017:17)


A poesia de Gilka Machado está de volta às livrarias. Curiosamente, a poetisa retorna muito tempo depois e se depara com uma sociedade ainda mais preconceituosa e excludente do que aquela na qual viveu e sofreu os horrores da ignorância, da humilhação e da estupidez humana. Mais atual do que nunca, a poesia de Gilka Machado, por sua qualidade literária, se manteve como um clássico da literatura em língua portuguesa. Já a mediocridade e a mesquinhez tupiniquim se mantiveram por serem o que são. E somente por isso.

Boa leitura!






quinta-feira, 30 de novembro de 2017

GUS E EU, DE KEITH RICHARDS


Algumas crianças tiveram a sorte de crescer no convívio com seus avós, o que costuma fazer uma enorme diferença na sua formação enquanto seres humanos. Como seria bom se todas as crianças pudessem desfrutar desse tipo saudável de convivência! A realidade, contudo, não permite tal dádiva a todos, infelizmente. O músico Keith Richards, que é cantor, compositor e membro fundador dos Rolling Stones teve essa sorte.

Desde a mais tenra idade, Richards esteve bastante próximo de Theodore Augustus Dupree, seu avô, que para o menino Keith era simplesmente o Gus. Mas Gus não era “apenas um avô” e nem de longe imaginaria que seu neto se tornaria uma lenda do Rock. Contudo, foi o velho Gus quem presenteou Keith com o seu primeiro violão, dando o pontapé para que Keith, ao lado de Jagger, fundassem a maior banda de Rock de todos os tempos, os Rolling Stones.

Quem nos conta essa história é o próprio Keith Richards, no seu livro infanto-juvenil intitulado Gus and Me, publicado no ano de 2014 e ilustrado por sua filha Theodora Richards, a qual se chama Theodora em homenagem ao seu bisavô. A obra foi traduzida para o português brasileiro por Alexandre Raposo e publicado pelo selo Globinho, da Editora Globo, no ano de 2015. Gus e Eu foi escrito por Keith Richards, com Barnaby Harris e Bill Shapiro. Na edição em língua inglesa, o livro vem com um CD no qual Richard lê a história. A editora responsável pela publicação de Gus and Me, a Little, Brown Books For Young Readers é a mesma que, no ano de 2010, publicou a biografia Life, de Keith Richards, sucesso de vendas.

 Gus e Eu tem como subtítulo “a história do meu avô e do meu primeiro violão”. O livro se inicia com uma descrição da casa de Gus pelos olhos do menino Keith, que a vê tomada de muitos instrumentos e bolos. “Theodore Augustus Dupree sabia tocar piano, violino, soprar saxofone e dedilhar violão”. O avô de Richards havia sido, entre outras coisas, líder de uma banda de baile. Para o pequeno Keith, no entanto, Theodore Augustus Dupree era apenas seu avô, o Gus.

Estar com Gus era tudo que Keith queria. Juntos, caminhavam pelas ruas da cidade, cantarolando e assobiando velhas canções. Algumas vezes eram acompanhados pelo Sr. Thompson Wooft, o cão de Gus. Certo dia, Gus levou Keith até uma loja de instrumentos musicais, de todos os tipos. Keith era um menino em uma loja de doces, fascinado por tudo que via, como os violinos que pendiam do teto, amarrados por fios, bem como pelas cornetas pregadas nas paredes. Na volta para casa, Gus presenteou o neto com o violão, menino dos olhos de Keith. Nascia uma lenda!



O livro é bastante simples, porém extremamente encantador. Além das ilustrações de Theodora, a obra traz algumas fotos, gentilmente cedidas pela família Richards. O lendário guitarrista dos Rolling Stones tem cinco filhos e cinco netos. Ainda hoje, toda vez que entra no palco, diz: “obrigado, vovô. Obrigado, Gus!”. Nós, leitores, também temos muito a agradecer ao bom e velho Gus por ter dado aquele bendito violão ao seu neto, o que certamente contribuiu para que ele produzisse sua obra universal e eterna, encantando meio mundo por mais de cinquenta anos. Obrigado, Gus! Obrigado, Richards!

sábado, 18 de novembro de 2017

AS CARTAS DE VIRGINIA WOOLF E LYTTON STRACHEY

Entre os anos de 1906 e 1931 os escritores Virginia Woolf (1882-1941)  e Lytton Strachey (1880-1932) mantiveram uma rica correspondência, por meio da qual muitos dos assuntos que viriam a tomar palco no século XX foram discutidos. Assim como as biografias escritas por Strachey e toda a obra de Woolf , a epistolografia dos dois autores se constitui em um vasto manancial para todos aqueles interessados na leitura dos seus trabalhos bem como para aqueles que desejam se aprofundar, enquanto pesquisadores, nos meandros das discussões que se deram no alvorecer do Modernismo.
A correspondência  de Woolf e Strachey foi reunida e publicada postumamente no livro Virginia Woolf & Lytton Strachey - Letters, de 1956, a partir da coleção de cartas constituinte do acervo Frances Hooper Papers on Virginia Woolf (FHP), o qual está sob a guarda da  Smith College, nos Estados Unidos. Conforme dissertação de mestrado da pesquisadora Geórgia G. B. Cavalcante Carvalho, as missivas foram doadas a Smith College por uma ex-aluna, contando, ao todo, cento e quarenta cartas que foram trocadas entre Woolf e Strachey durante os anos de 1906 e 1931. Na publicação de 1956, no entanto, constam apenas cento e cinco cartas. As demais não foram incluídas, uma vez que os editores, Leonard Woolf e James Strachey, não as consideraram relevantes por serem, nas palavras deles, apenas “notas, cartões postais e telegramas contendo um pouco mais do que convites para o chá ou avisos da chegada de trens”.
A troca de cartas entre os dois autores se inicia, aponta a pesquisadora, no ano de 1906, quando, após a morte do seu irmão Thoby Stephen, Virginia Woolf (ainda Virginia Stephen) convida Lytton Strachey e diversos amigos de Thoby, da Universidade de Cambridge, para uma visita e, provavelmente um chá, em memória de Thoby. De um convite inicial bastante formal, a amizade entre os dois se tornará algo muito próximo, podendo se dizer, inclusive, de confidências e cumplicidades.
A dissertação intitulada Uma tradução comentada de uma seleção de cartas de Virginia Woolf e Lytton Strachey (2017) foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução – POET, da Universidade Federal do Ceará (é a primeira vez que as cartas da referida dissertação são traduzidas para o português brasileiro) e se constitui desde já, como de suma importância para os estudos acerca das cartas de Woolf e Strachey, uma vez que os dois referidos autores se situam historicamente na passagem do século XIX para o século XX, contemplando com seus olhares atentos muitas das mudanças socioculturais que determinariam os rumos das artes, especificamente da literatura, no decorrer de todo o século XX.  
Por meio da correspondência de Woolf e Strachey é possível se ter uma visão das questões políticas, sociais e culturais da Inglaterra do final do século XIX, por intermédio das discussões que eram levadas a cabo nas reuniões do Círculo de Bloomsbury, o qual se iniciou com o objetivo de se discutir economia, filosofia, arte, política e estética, entre inúmeros outros assuntos. Entre seus membros, estava John Maynard Keynes e E. M. Foster, por exemplo. O Círculo de Bloomsbury, conforme Cavalcante Carvalho (2017) compartilhava não apenas valores importantes para seus membros, mas uma preocupação com o prazer estético. Era heterogêneo em suas artes, engajamento político e realizações, mas era homogêneo ao representar e discutir o novo estilo de arte produzido no período.

Lytton Strachey e Virginia Woolf
Ao lermos as cartas de Woolf e Strachey, além de se ter um apanhado bastante amplo das mudanças (literatura, psicanálise, economia etc.) que dominaram o século XX, percebe-se também uma Virginia Woolf que pouco se nota em outros trabalhos. Trata-se da Virginia Woolf que não perde a oportunidade de destilar ironia e sarcasmo acerca de determinados elementos que lhe eram, de alguma forma, próximos. Por essa razão, algumas das cartas constantes do volume de 1956, do qual tratamos aqui, acabaram por serem “mutiladas’, quando faziam referências a pessoas que ainda estivessem vivas ou que, mesmo mortas, poderiam facilmente ser identificadas. Assim sendo, no lugar do nome dessas pessoas ou de suas descrições, os editores optaram por deixar apenas um espaço preenchido por um traço. Dessa forma, para se ter acesso aos nomes das pessoas que são “desconstruídas” por Virginia Woolf e Lytton Strachey nas cartas de 1956, faz-se necessário recorrer a um outro trabalho. No caso, The Letters of Virginia Woolf, Volume I  (1888 – 1912), editado por Nigel Jackson, ainda sem tradução para o português brasileiro.

Os estudos sobre epistolografia continuam avançando no âmbito das universidades brasileiras, assumindo um lugar que, por muito tempo lhe foi negado. Nesse sentido, pesquisas que se detenham sobre as cartas e os diários de Virginia Woolf, bem como outros textos compreendidos como “escrita de si” são de extrema relevância. As cartas de Virginia Woolf e Lytton Strachey são, assim, um importante ponto de partida para investigações desse tipo, pois nos permitem uma apreensão e uma compreensão da identidade cultural modernista por intermédio das discussões que são feitas pelos missivistas em questão.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

LITERATURA E CINEMA: ALGUMAS REFLEXÕES

Houve um tempo em que se pensava que as artes não poderiam “conversar” entre si, devendo cada uma permanecer em seu espaço delimitado. Aqueles que defendiam tal estado de coisas não conseguiam perceber que há muito de uma arte em outra arte, sendo bastante saudável que elas interajam sempre que possível. Vítimas dessa desnecessária polêmica, a literatura e o cinema acabaram por romper as correntes do atraso, passando a caminhar cada vez mais juntas, assim como também já o fazem a literatura e a música, a música e as artes plásticas, as artes plásticas e a dança...

Partindo desse princípio, o livro Literatura e cinema: algumas reflexões (2017) proporciona a discussão acerca de algumas visões contemporâneas no que diz respeito a aproximação (ou seria a simbiose?) entre literatura e cinema a partir de sete artigos escritos por pesquisadores das duas áreas. Assim sendo, Bruna Belmont de Oliveira discorre sobre “Cinema e poesia: apontamento sobre um encontro”. Jamile Pequeno Soares escreve “Faces para a criatura de Frankenstein: o que os filmes fazem que o romance não pode fazer (e vice-versa)”. A discussão acerca de “A representação da violência na literatura e no cinema” foi o assunto sobre o qual escreveu Francisco Romário Nunes, que também ficou responsável por escrever a Introdução, abordando a adaptação fílmica como prática cultural.

Juliana Goldfarb de Oliveira, por sua vez, escreveu “Um outro olhar para A história do olho”, enquanto Maria Bevenuta Sales de Andrade e Charles Albuquerque Ponte discorreram sobre as “Especificidades do verbal e do visual: duas narrativas de Estômago. “Da literatura ao cinema: a narrativa poética em O conto  da princesa Kaguya” foi analisado por Francisca Lailsa Ribeiro Pinto. Maria Graciele de Lima se deteve “Sobre versos que costuram El cuerpo de Cristo: quando a carne e a alma estão desterradas”.

O livro em questão foi organizado por Jamile Pequeno Soares e Maria Graciele de Lima, tendo sido publicado pela editora Queima-Bucha, de Mossoró, em 2017. O trabalho contém ao todo 111 páginas e conta com a apresentação “Tão longe, tão perto” (que nos remete automaticamente ao filme de mesmo nome, de Wim Wenders, de 1993), feita por Cícera Graciele Cajazeiras. Na sequência, tem-se a Introdução (p. 9-18) feita por Romário Nunes, pesquisador das relações entre literatura e cinema, tendo desenvolvido pesquisas a partir das adaptações da obra de Cormac McCarthy para o cinema. 

Os sete artigos que compõem a coletânea, assim como todo e qualquer artigo, não se propõem encerrar as discussões sobre literatura e cinema, o que seria, obviamente, impossível. O objetivo desse tipo de trabalho é trazer à tona, por intermédio de novos olhares, outras apreensões acerca de assuntos muitas vezes exaustivamente debatidos. Isso, contudo, não consiste em nenhuma forma de problema, uma vez que umas das funções do pesquisador é continuamente levantar questionamentos e fazer conjecturas, estando sempre pronto e aberto às possíveis refutações.

Os artigos constituintes do livro Literatura e cinema: algumas reflexões dialogam entre si seja pela temática geral que os une, bem como pela base teórica  recorrente na maioria deles. Contudo, ao  lermos os artigos, deixamos de saber qual é a compreensão de literatura e cinema sob o ponto de vista do oriental, por exemplo, uma vez que as bases teóricas são quase todas ocidentais. Isso também não é um problema, mas é sempre produtivo quando buscamos a compreensão do mesmo pelos olhos do outro. E aqui registro uma pergunta: a transposição de um texto literário para a tela deve ser compreendida como uma adaptação, uma tradução ou uma narrativa simplesmente?

Literatura e cinema: algumas reflexões não pretende, como já dissemos, encerrar algo que não se pode encerrar. E, como posto no próprio título do trabalho, tratam-se apenas de “algumas reflexões”. Reflexões tais que gerarão outras reflexões e mais outras, fazendo com que esse excelente trabalho de pesquisa alcance seu objetivo proposto. As escolhas das obras analisadas foram bastante acertadas, com obras clássicas e modernas investigadas em consonância com questões que são muito caras aos nossos tempos de liquidez. Sobre a consciência das relações que se dão entre texto / leitor / espectador, convém observar o que afirma Nunes, quando diz que: “as narrativas construídas a partir do encontro entre literatura e cinema avançam na contemporaneidade. Isso demonstra que esse contato não esgotou as possibilidades de envolver o leitor/espectador na interação com as histórias” (pp.16-17). O texto introdutório do professor Nunes é assertivo, quando reforça que:

(...) a ideia de intertextualidade levantada por Julia Kristeva e por uma série de outros autores atesta o caráter plural da literatura, por exemplo, e concebe o processo de produtividade da obra literária como uma rede de sentidos que interpela, a partir de múltiplas tradições, a presença de um texto em outro. Essa relação nem sempre indica harmonia, mas também produz tensão, subversão, mutação, entre outras formas de contatos. (NUNES: 2017, p. 9)

Ao colocar em análise as relações intertextuais entre literatura e cinema, das quais trata Nunes, o pesquisador precisar ficar atento às exigências da abordagem que será feita, tendo em vista que ao propor uma investigação de um obra literária transposta para o cinema, um mundo de proposições teóricas se descortina. Em outras palavras, o pesquisador deverá estar atento às idiossincrasias e epistemologias (epistemologia no sentido utilizado por Boaventura de Sousa Santos, 2010) culturais que adaptações como as tratadas no presente livro, requerem.

Embora todos os autores tenham conseguido manter esse foco, considero que entre todos os artigos constituintes do livro Literatura e cinema: algumas reflexões (2017), muito me agradaram os artigos “Faces para a criatura de Frankenstein: o que os filmes fazem que o romance não pode fazer (e vice-versa)”, de Jamile Pequeno Soares, “A representação da violência na literatura e no cinema”, de Francisco Romário Nunes, “Um outro olhar para A História do olho”, de Juliana Goldfarb de Oliveira e “Da literatura para o cinema: a narrativa poética em O conto da princesa Kaguya”, de Francisca Laílsa Ribeiro Pinto. Tratam-se de escolhas meramente pessoais desse resenhista e, portanto, questionáveis.

Em termos gerais, o trabalho que vem a público por intermédio da editora Queima-Bucha é de inestimável valor para todos aqueles  que se dedicam a pesquisar as relações entre literatura, cinema e outros sistemas, vindo portanto, contribuir para uma discussão que se amplia cada vez mais. E que cada vez mais se faz necessária.

Que venha o próximo!

terça-feira, 31 de outubro de 2017

REVIRANDO MEU GUARDA ROUPA E OUTROS LIVROS INFANTIS

Ao contrário do que muita gente pensa, escrever para criança é uma das tarefas mais delicadas a qual um escritor possa se entregar. As exigências são inúmeras e, nenhuma delas, compreende como obrigação que aquele que escreva para a pivetada deva ser pai, mãe, tio ou outro parente qualquer devotado a fazer a criançada feliz. Certamente que se essa aproximação existe, muito melhor para o escritor(a), pois terá certa facilidade em transpor para o papel algo que conhece de perto.

O que um autor de histórias infantis precisa, na verdade, é ter muita imaginação, criatividade e tentar pensar como uma criança. Se sua infância contribuiu para que ele, o autor, tenha vivenciado aventuras em perigosas florestas, corridas de carros com perseguições, fugas inimagináveis de ilhas repletas de piratas, viagens no tempo ou coisas tão interessantes quanto, ai já se tem meio caminho andado. Agora, passar tudo isso para o papel já são outros quinhentos, pois produzir literatura infantil é uma atividade de alto risco, tendo em vista que o cliente é extremamente exigente. Triste do autor de histórias infantis que achar que pode, com meia dúzia de palavras, ludibriar o coração e a mente de uma criança.

A literatura infantil, no Brasil, é devedora de respeito e eterno agradecimento a pelo menos dois grandes mestres: Ziraldo e Mauricio de Sousa. É claro que entre Flicts, Menino maluquinho e Turma da Mônica, muita água já rolou por debaixo da ponte das histórias infantis produzidas no país. Mesmo assim, esses trabalhos continuam como referências clássicas, encantando uma geração após a outra. E o que fizeram Ziraldo e Mauricio de Sousa para alcançar esse estágio? Os dois grandes autores aprenderam como encantar o coração de uma criança, passando a contar histórias que fazem com que o pequeno leitor acesse mundos diferentes sem precisar sair do sofá.

Na Inglaterra tem outro mágico encantador de crianças que, tal qual Ziraldo e Mauricio de Sousa, sabe muito bem como hipnotizar uma criança, contando uma bela história. Neil Gaiman é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores contadores de histórias da atualidade. Suas histórias (como a Menina iluminada, por exemplo), aliadas aos traços dos profissionais com quem tem trabalhado, formam a mais perfeita tradução do que deva ser a constituição de uma história infantil. Mas, voltando ao hemisfério sul, percebemos uma nova geração de autores que em praticamente nada deixam a dever aos grandes mestres das histórias infantis.

Da Argentina, por exemplo, e já devidamente traduzido para o português brasileiro e ditado pela SUR Livro, tem-se a “Coleção Antiprincesas”, que traz um proposta diferenciada ao transformar em história infantil a biografia de grandes nomes da História. Dessa forma, de maneira bastante didática, a criança pode entrar em contato com a história de vida de Júlio Cortázar, Violeta Parra, Clarice Lispector e Frida Kahlo, por exemplo. As histórias são, como já se diz na capa dos livros, “para meninos e meninas”. Um bom exemplo do que afirmamos, é o livro Frida Kahlo para meninos e meninas (2015), com história de Nadia Fink e ilustrações de Pitu Saá.


Do Brasil, gostaria de chamar a atenção para o trabalho de André Neves, especificamente uma história maravilhosa chamada Lino, de 2010, com reimpressão em 2013. Em Lino, Neves é ao mesmo tempo o autor do texto e das ilustrações. O referido trabalho foi publicado pela editora Callis, passando a compor a Coleção Itaú de livros infantis. Trata-se da história de amizade entre o porco Lino e a coelha Lua. Sem mais spoilers para o momento. A história de André Neves é mágica pura!

De leitura imperdível, chamo a atenção para Revirando meu guarda roupa (2017), de Fernanda de Façanha. O trabalho foi publicado pela editora Caminhar e foi ilustrado por Eduardo Azevedo. A história que Fernanda conta parte daquelas coisas que todos nós guardamos em algum cantinho das nossas memórias, como as brincadeiras vivenciadas na infância, quando arriscamos nossos primeiros voos.

A autora afirma que “amigos são como tesouros. Eles estão gravados nas roupas e são lembrados no coração de quem viveu intensamente esses momentos de descobertas, desafios e aprendizagem”. Por aí, temos uma ideia de como se dará a narrativa. Saber e viver é o lema, nos diz a autora.

Os livros e autores que apresentamos aqui, nessa brevíssima resenha, não constituem nem um milésimo do que se produz de literatura infantil mundo afora. E nem é essa nossa pretensão. São, na verdade, apenas algumas das nossas leituras nesse campo. Ficam aqui, então, as dicas da boa literatura infantil que tem sido produzida por aí.

Grande abraço!

terça-feira, 17 de outubro de 2017

PAPE SATÀN ALEPPE: CRÔNICAS DE UMA SOCIEDADE LÍQUIDA, DE UMBERTO ECO

Umberto Eco (1932 – 2016) é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores autores do século XX e, na mudança para o século XXI, manteve sua posição entre os grandes. Autores magistrais, como Eco, costumam se “aventurar” facilmente pelos mais variados campos do conhecimento, tanto na produção de textos de ficção quanto de não ficção. Basta darmos uma olhadinha básica na produção do autor de O nome da rosa (1980), para constatarmos a variedade da sua produção. Os homens, como sabemos, morrem. Contudo, suas obras permanecem.   Eco é desses.

Falamos aqui sobre a obra póstuma de Umberto Eco, especificamente do livro Pape Satàn Aleppe: cronache di uma societá liquida, o qual foi publicado originalmente no ano de 2016, na Itália, pela editora La nave di Teseo, tendo sido traduzido para o português brasileiro por Eliana Aguiar e publicado pela editora Record no ano de 2017, com o título Pape Satàn Aleppe – crônicas de uma sociedade líquida. O referido livro e mais o Come viaggiare com um salmone (“Como viajar com um salmão”, ainda sem tradução para o português brasileiro) chegaram às livrarias uma semana após a morte do autor.

Além da incontestável qualidade do texto de Eco, já nos chama de início a atenção o título que o autor escolheu para batizar seu trabalho. A primeira parte do título é uma reprodução da frase que é dita por Plutão ao notar a entrada do poeta Dante Alighieri e Virgílio no quarto círculo do inferno, registrado na Divina Comédia (Inferno, VII, I). Na introdução do livro Pape Satàn Aleppe, Umberto Eco ressalta que, embora muitos pesquisadores tenham tentado encontrar um sentido para a frase dita por Plutão, concluiu-se que não há nenhum sentido preciso para ela, contribuindo apenas para uma confusão de ideias. A outra parte do título,  por sua vez, é uma alusão à ideia de modernidade ou sociedade “líquida” desenvolvida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017). A união dessas duas expressões serviram muito bem ao tipo de texto, a crônica, assim como a profusão de temáticas abordadas por Eco ao longo do referido trabalho. Diz ele: “Achei, portanto, oportuno usá-las como título desta coletânea que, menos por culpa minha do que por culpa dos tempos, é desconexa, vai do galo ao asno - como diriam os franceses -  e reflete a natureza líquida destes quinze anos” (Eco, 2017, p.8).

Os quinze anos aos quais Eco se refere é uma alusão ao período no qual estão compreendidas as crônicas constantes de Pape Satàn Aleppe. São crônicas que foram selecionadas pelo autor, a partir daquelas que foram publicadas por ele na coluna La Bustina di Minerva, na revista L’Espresso, a qual começou a ser publicada ainda no ano de 1985. Algumas das crônicas desse período já tinham aparecido no seu Segundo diário mínimo, de 1992. Outras compuseram o livro La Bustina di Minerva, que cobriu as crônicas publicadas até o início do ano 2000. Outros textos também foram publicados em A passo di gambero, de 2006. Assim, pelos cálculos do próprio Eco, entre 2000 e 2015, calculando 26 Bustinas por ano, ele teria escrito aproximadamente quatrocentas crônicas, o que o levou a considerar a publicação da qual tratamos aqui.

O livro se inicia com uma crônica denominada de “a sociedade líquida”, na qual Eco discorre sobre as ideias de Bauman acerca daquilo que caracteriza uma sociedade líquida. No parágrafo final da crônica, Eco pergunta: “Existe um modo de sobreviver à liquidez?”. Responde ele: “Existe e é justamente perceber que vivemos numa sociedade líquida que, para ser compreendida e talvez superada, exige novos instrumentos. Mas o problema é que a política e grande parte da intelligentsia ainda não entenderam o alcance do fenômeno”. E conclui: “Por ora, Bauman continua a ser uma “vox clamantis in deserto”.

No que diz respeito à maneira como o  livro está estruturado, tem-se catorze blocos contendo, cada um, números variados de crônicas. Assim sendo, o primeiro bloco chama-se “A passo de caranguejo” (p.13) e contém cinco crônicas. Na sequência, tem-se: “Ser vistos” (p.27, seis crônicas), “Os velhos e os jovens” (p.43, onze crônicas), “On-line” (p.69, catorze crônicas), “Sobre celulares” (p.101, cinco crônicas), “Sobre as conspirações” (p.115, seis crônicas), “Sobre os mass media”(p. 131, vinte e cinco crônicas), “Várias formas de racismo” (p. 185, quinze crônicas), “Sobre o ódio e a morte” (p.221, quatro crônicas), “Entre religião e filosofia” (p.231, vinte crônicas), “A boa educação” (p.275, nove crônicas), “Sobre livros e outras coisas mais” (p.297, dezenove crônicas), “A quarta Roma” (p.339, dezoito crônicas), “Da estupidez à loucura” (p.379, dezoito crônicas).

Cada uma das crônicas constituintes da obra em questão trata, na maioria das vezes, de assuntos que costumam, por serem de característica fugaz, ser tratados por cronistas e estampadas em um cantinho qualquer dos jornais que ainda resistem ao completo desaparecimento. A crônica, na sua simplicidade e agudeza, tantas vezes considerada a "prima pobre da literatura", se apresenta como gênero ideal para a exposição não apenas do efêmero, mas do permanente, sendo espaço tanto para o popular quanto para o erudito. Em síntese, a crônica é capaz de abrigar todo e qualquer tipo de questionamento, expondo-o de maneira direta, clara, leve e objetiva. Consciente dessa questão, Umberto Eco discorre em Pape satàn aleppe: crônicas de uma sociedade líquida, sobre temáticas que tratam, por exemplo, da questão política da Itália sob o governo de Berlusconi, dos imigrantes que batem à porta da Europa, de Harry Potter, da religião, da "síndrome da selfie", do ser humano escravizado pelo aparelho de celular, dos programas estúpidos da televisão, de livros, e dos relacionamentos humanos, entre inúmeros outros assuntos recorrentes na sociedade líquida. 

Ao optar por tratar das questões do nosso tempo por intermédio do gênero crônica, Eco foi bastante assertivo, tendo em vista que a crônica, na sua essência, é aquele texto de caráter efêmero capaz de tecer como matéria de sua constituição, desde os assuntos mais simples e, aparentemente desinteressantes e banais até as mais aprofundadas reflexões político-existenciais. Ao ter feito tal opção, até mesmo por ser essa a exigência das Bustinas, Eco conseguiu atrair como leitores para seus textos, não apenas aqueles já conhecedores de outros trabalhos seus, mas novos e diferentes leitores capazes de, pela leveza do gênero  crônica, se aproximar de discussões de cunho político, religioso e cultural apresentadas pelo autor por meio de suas convidativas crônicas.


A obra de Umberto Eco ainda vai reverberar por muito tempo, uma vez que é ampla e diversa, sendo capaz de atrair a atenção de todos aqueles leitores interessados em tentar entender o outro, a vida, o mundo. Assim sendo, para aqueles que pretendem se iniciar na literatura de Umberto Eco, começar pelas crônicas de Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida é uma boa maneira de iniciação. Para aqueles que já o conhecem de outros textos, não se decepcionarão com o que ali está posto, pois as crônicas de Pape Satàn Aleppe nos ensinam "como viajar com Umberto eco", uma vez que lá há Umberto Eco para todos os gostos. 

Somente os grandes mestres alcançam tal feito. 

Boa leitura!

sábado, 15 de julho de 2017

O MESTRE E MARGARIDA, DE MIKHAIL BULGÁKOV

Saber contar uma boa história é uma das características que torna um escritor magistral. Nesse quesito, poderíamos elencar milhares de autores e, certamente, entre eles, estariam inúmeros russos. As traduções da literatura russa para o português brasileiro eram feitas a partir dos textos em francês, o que acabava por se perder muita coisa. Hoje elas já são feitas diretamente do russo, o que ajuda bastante no aumento da qualidade dos textos traduzidos. É o caso do romance O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov (1891 – 1940), publicado no ano de 2009, pela editora Alfaguara/Objetiva. Nesse caso, a tradução, diretamente do russo, ficou a critério de Zoia Prestes, tendo sido revisada por Graziela Schneider e Irineu Franco Perpetuo.

Em O mestre e Margarida, Bulgákov nada deixa a dever aos grandes mestres russos da narrativa. A história, ou melhor, as histórias que são contadas no decorrer do romance são resultado da arquitetura de uma narrativa que traz em si toda uma constelação de elementos característicos da mais pura prosa moderna.

A história trata de um personagem pra lá de conhecido, o próprio diabo,  e é ambientada na Moscou comunista dos anos de 1930, em pleno regime stalinista de perseguições, desaparecimentos e mortes. Na comitiva de satanás, recém-chegado a Moscou, há uma feiticeira, um homem com monóculo rachado e um gato negro de proporções fora do comum. A chegada do “ coisa ruim” começa a provocar uma sucessão de acontecimentos pra lá de suspeitos. Algumas pessoas começam a ser traídas pelos seus próprios instintos, desejos e ambições. Outras enlouquecem, adoecem, somem ou morrem. É primavera em Moscou!

De forma extremamente original, Bulgákov traça um panorama político-cultural da sociedade russa submetida à mão de ferro de Stalin, na qual a liberdade escasseia e a população come, desculpe o trocadilho, o pão que o diabo amassou. Bulgákov viu tudo isso de muito perto, o que o deixou bastante insatisfeito. Sua crescente insatisfação, explicitada por meio de sua obra, acabou por transformá-lo em inimigo do Estado, passando a sofrer toda sorte de censura e perseguição.

Bulgákov era contista, dramaturgo e romancista. Entre seus trabalhos tem-se: Os dias dos Turbin (1926), A debandada (1927)e Molière (1936); entre inúmeros outros. A perseguição a qual foi submetido o obrigou a escrever, secretamente,  aquela que viria a ser a sua obra máxima: O mestre e Margarida, publicada primeiramente em forma de fascículos, pela revista soviética Moskva,  entre novembro de 1966 e janeiro de 1967. Note-se que o autor já havia morrido no ano de 1940, mas a censura imposta à sua pessoa e à sua obra não permitiu que o livro viesse à tona mais cedo.

Mikhail Bulgákov
Mikhail Bulgákov levou aproximadamente dez anos para concluir O mestre e Margarida. Costuma-se dizer que ele teria inclusive queimado sua versão inicial. O que se sabe, porém, é que poucos eram aqueles que sabiam da obra que estava sendo gestada. Se descoberto, o regime stalinista certamente o teria condenado à morte. Mas como diz o próprio diabo no livro em questão: “Manuscritos não ardem”. E assim, depois de ter escapado de arder no fogo, O mestre e Margarida teve suas últimas revisões ditadas pelo autor à sua esposa, o que o possibilitou de chegar ao nossos dias e ser considerado uma das obras literárias mais importantes do século XX.

Na constituição de seu romance, Bulgákov lança mãos dos recursos da sátira, como forma de denunciar a vida sob o regime stalinista. Woland, o diabo, é temido por todos. Um mínimo gesto seu é o suficiente para que um homem seja decapitado, considerado insano e, logo, perca sua liberdade. Na Moscou de Woland, a cultura e as arte  são uma ameaça. A literatura, um crime de lesa pátria. Os artistas, subversivos. O amor, proibido. O séquito do demônio não tem aparente controle. Não teme ninguém, a não ser o mestre.

Como obra aberta, muitas são as leituras que podem ser feitas a partir da obra O mestre e Margarida. No decorrer da narrativa, diversos são as temáticas trazidas à tona. Entre tantas: o bem, o mal, a bondade, o amor, a liberdade e a covardia. A maestria de Bulgákov se mostra de várias maneiras, como na construção de um romance dentro do romance; assim como na criação de diálogos e imagens, quando se contrapõem personagens como Jesus, Pôncio Pilatos e o diabo, ou quando são colocadas lado a lado as cidades de Moscou e Jerusalém.

Woland, o diabo, seria uma representação de Stálin? Seu séquito aterrorizador seria sua polícia política? Não temos como afirmar isso. O máximo que podemos dizer, e nisso Jesus e o diabo concordam conosco, é que não existe nem o bem nem o mal, pois nada é absoluto. E, das fraquezas humanas, a pior é a covardia. 




E se numa primavera qualquer, lhe chegarem e disserem algo como: “Please, allow me to introduce myself/I’m a man of wealth and taste...”. Sugiro que você não dê atenção, pois pode ser aquela “parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente faz o bem”. Em caso de dúvida, como está dito no primeiro capítulo do romance de Bulgákov: “Nunca falem com estranhos”.

sábado, 1 de julho de 2017

CEM ANOS D'OS BRUZUNDANGAS, DE LIMA BARRETO

Lima Barreto (1881 – 1922) está de volta! Na verdade, Lima Barreto sempre esteve por aqui, com seu olhar arguto, sua pena leve e suas palavras feito faca, pra lá de amoladas. Lima Barreto é daqueles homens geniais que, por estarem muito adiante do seu tempo, precisam que se passe muito tempo para que se reconheça sua genialidade.

O autor de Triste fim de Policarpo Quaresma (1911) morreu aos 41 anos de idade. No pouco espaço de tempo que viveu, Barreto escreveu muitas das grandes obras da literatura brasileira, entre crônicas, contos e romances. Na maioria delas a ironia, assim como em Machado de Assis, é um dos recursos mais presentes. Muito se diz que enquanto Lima Barreto só tinha olhos para o subúrbio e para seus moradores excluídos, Machado só tinha olhos para a elite e para os bem-nascidos.

O fato é que não se pode compreender o Brasil pelo viés da literatura, sem compreender as obras de Machado de Assis e Lima Barreto, uma vez que elas não se afastam mas, pelo contrário, se complementam exatamente por inexistir em uma aquilo que abunda na outra. Enquanto Lima Barreto morria, começava a surgir a parte mais madura da obra de Machado de Assis, o que nos deixa a pergunta: o que ainda teria produzido Lima Barreto se tivesse vivido tanto quanto viveu Machado de Assis?

Seja como for, Lima Barreto partiu. De onde quer que esteja gargalha desbragadamente ao perceber que a boa e velha República dos Estados Unidos da Bruzundanga continua do mesmo jeito que era no início da Primeira República, ou seja, os negros e os pobres continuam excluídos e tratados como cidadãos de terceira classe, exilados nos subúrbios e periferias. O próprio negro bruzundanguense, como se sabe, não se reconhece como tal. Os ricos posam de intelectuais e são, na maioria, uma farsa. Montados em suas pilhas de títulos, os acadêmicos, por sua vez, não conseguem enxergar um palmo à frente do nariz. São, na verdade, falsas criaturas pensantes. Ignorantes, corruptos e canalhas são os políticos da Bruzundanga. 

Era o ano de 1917, provavelmente necessitado de uma grana, Lima Barreto vendeu os direitos do livro Os Bruzundangas ao editor Jacintho Ribeiro dos Santos. O livro, no entanto, só seria publicado postumamente, no ano da morte do seu autor, em 1922. Trata-se de uma obra satírica que, segundo Alfredo Bosi (1994) teria inspiração nas Cartas Persas, de Montesquieu. A ironia e a sátira são recursos que podem muito bem se voltarem contra o autor, caso ele não saiba como domá-las. A mestria para tanto pode ser observada em Machado de Assis, Lima Barreto, Oscar Wilde e Jonathan Swift; entre poucos.

Em 2017, Os Bruzundangas completam 100 (cem anos) e mostra-se mais atual do que nunca. O visionário Lima Barreto acertou em cheio, quando apostou no nada que dominaria a Bruzundanga. Alguns leitores insistem em ver semelhanças entre a Bruzundanga e o Brasil. Como trata-se de uma obra aberta é possível que existam tais aproximações, sim. Contudo, cabe a cada leitor tirar suas próprias conclusões.

Lima Barreto
O livro de Lima Barreto é composto de um capítulo especial denominado de “Os Samoiedas”, vinte crônicas e outro capítulo intitulado “notas soltas” constituído de outras pequenas crônicas. Cada umas das crônicas da obra em questão trata de um aspecto diferente da sociedade da Bruzundanga. Ao seu modo, o autor reproduz praticamente o estilo observado nos relatos e tratados que eram produzidos pelos viajantes e colonizadores que aportaram no Brasil antes e depois do achamento, quando se dedicavam a descrever os hábitos e costumes dos nativos, suas riquezas; bem como as belezas da terra.

Assim sendo, Lima Barreto discorre a sociedade naquilo que melhor a constitui: a nobreza da Bruzundanga, a política, a educação, as eleições, a saúde, a religião e os heróis; entre outros aspectos. De políticos corruptos e ladrões a desvios de verbas públicas e do descaso do Estado para com os mais pobres; Lima Barreto trata de tudo em uma linguagem bastante simples, como é característica de sua obra; direta, objetiva e engraçada.

E assim rimos da republiqueta da Bruzundanga e nos amarguramos por ser ela tão parecida com a nossa própria republiqueta de bananas. A leitura de Lima Barreto é sempre necessária, pois nos diz muito daquilo que realmente nos acostumamos a ser. 

Os Bruzundangas continua bastante atual. Sua leitura é indispensável para os dias estranhos que vivemos. Que a leitura lhe seja leve!

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De e sobre Lima Barreto:


BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

LIMA BARRETO. Diário do hospício; O cemitério dos vivos. Org. e notas: Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

______________. Os Bruzundangas. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2004.

______________. Contos completos de Lima Barreto. Org. e introdução de Lilian Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

______________. Toda Crônica: Lima Barreto. Apresentação e notas de Beatriz Resende; Organização Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir, 2004 (2 vol.).


SCHWARCZ, Lilian Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

SOARES, José Wellington Dias. Lima Barreto: entre a ficção e a história. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007.