quarta-feira, 15 de agosto de 2018

BELCHIOR: A HISTÓRIA QUE A BIOGRAFIA NÃO VAI CONTAR, DE JORGE CLAUDIO DE ALMEIDA CABRAL


Quando Belchior desapareceu, uma mar de especulações começou a surgir a respeito das possíveis razões que teriam levado um dos principais autores da música brasileira a optar pelo autoexílio. Muito se disse, mas pouco ou quase nada foi explicado. As respostas para os questionamentos levantados jamais serão conhecidas, pois o principal nome envolvido já não está mais entre nós, e o que quer que venha a ser dito, será sempre discutível.

Belchior morreu no dia 29 de abril de 2017, deixando um vazio na cultura brasileira que dificilmente poderá ser preenchido por outro artista do mesmo nível intelectual, uma vez que Belchior era muito mais que um cantor/compositor. Belchior era, na verdade, um grande pensador, um filósofo, como pode ser constatado na qualidade da sua poética, preenchidas por temáticas de cunho existencialista, político e sociocultural. Se analisada apenas superficialmente, sua obra é um perfeito repositório da cultura ocidental, permeada por referências da literatura, do cinema, da música e da canção. Vista de forma mais íntima e aprofundada, sua poética abrange um anglo muito maior da percepção do humano.

A obra de Belchior, como já evidenciamos aqui, em outras postagens, já começa a ser estudada pela Academia, tal como vem ocorrendo com trabalhos que deitam olhos sobre a poética de Bob Dylan e Chico Buarque, entre outros. Dessa forma, todo e qualquer trabalho que venha a ser publicado sobre a obra do artista cearense será uma contribuição a mais para que se possa compreender o homem e a obra de, como ele mesmo dizia, um dos maiores nomes da música popular brasileira.

Nesse sentido, registramos a publicação do livro Belchior: a história que a biografia não vai contar, de Jorge Claudio de Almeida Cabral. Trata-se de uma edição do autor, publicada em Porto Alegre, no final ano de 2107. O livro de Cabral está organizado em vinte e quatro capítulos, sendo o primeiro intitulado “Primeira parte do último dia”, enquanto o segundo é “Quem era ele, entre eles?”. Os capítulos são curtos e escritos de maneira leve, como se o autor conversasse amistosamente com o leitor, falando sobre uma terceira pessoa, um amigo com que conviveu e de quem sente muita saudade. O trabalho traz fotos inéditas de Belchior, assim como QR CODES, que permitem ao leitor assistir imagens raras do artista no convívio com a família do autor. Explica-se: é que após aquela entrevista de Belchior a um canal brasileiro de televisão, durante a qual o cantor estava visivelmente incomodado e constrangido, Belchior, que já havia se afastado dos palcos e, consequentemente, da mídia, resolveu abandonar o país onde estava, o Uruguai, e voltar ao Brasil.

De volta ao país, o compositor cearense passou a perambular pelas ruas e por casas de amigos e, como aquela personagem de Tennessee Williams, a depender da ajuda de estranhos. Foi numa dessas situações que o advogado Jorge Cláudio de Almeida Cabral, fã do artista, o conheceu pessoalmente e o convidou a morar por um tempo na sua residência, primeiramente no seu sítio, situado na cidade de Guaíba, na localidade de Serrinha, a 60 km de Porto Alegre e, posteriormente, na sua casa em Porto Alegre. Assim sendo, enquanto o Brasil queria saber onde estava o autor de “Alucinação” naquele conturbado ano de 2013, sabemos agora que ele estava sendo muito bem cuidado e protegido pela família de Cabral.

São os detalhes dessa convivência que são contados em Belchior: a história que a biografia não vai contar (2017), de Jorge Claudio de Almeida Cabral.

Serviço:

jorgelivrobelchior@gmail.com 

terça-feira, 31 de julho de 2018

DE 1 TUDO, DE DERIBALDO SANTOS


A expressão “de um tudo” é bastante conhecida do povo brasileiro, significando a variedade e a miscelânea de coisas que conseguimos unir, independentemente, do local e da circunstância. Assim sendo, misturamos cores, frutas, estilos musicais, açaí com tapioca, chiclete com banana. Também misturamos escritas, leituras e literaturas. Essas misturas, guardadas as devidas proporções, das quais já nos falava Gilberto Freyre, nos encaminharam uma realidade cultural antropofágica que fincou suas raízes na cultura brasileira, como um todo, bem como na literatura, de maneira mais específica.

Dessa forma, a literatura brasileira acabou por assumir características que lhe são bastante peculiares, tornando-se assim, uma das mais bem elaboradas do mundo. Contudo, se nossa literatura ainda não se fez conhecer em outras paragens, deve ser devido ao descaso dos nossos sucessivos governantes, que insistem na manutenção do nosso eterno complexo de arlequim  de província, mergulhado numa subalternidade que nunca teve motivo de ser.

Mas nossos escritores saem para ver o mundo e, voltando, nos contam daquilo que viram, daquilo que os impactaram. Para tanto, alguns optam pelo romance, outras pelas narrativas breves, as imagens, o corpo, a cena. E de repente, aquilo que tanto nos pode parecer distante e alheio aos nossos olhos se transmuta em algo que nos é próximo, quase íntimo. E assim, percebemo-nos parte de um todo em consonância com o mundo, com o outro, com o de um tudo.

Foi provavelmente imbuído desse sentido, que o escritor Deribaldo Santos conseguiu capturar, por meio do seu texto, as inúmeras partes constituintes do ser humano, não importando onde esse ser humano vá, onde quer que ele esteja. Destarte, algumas das observações de Santos resultaram no livro intitulado De 1 tudo (2018), publicado pela editora Corsário. Trata-se de um livro que tem “de um tudo”, ou quase: metade do livro (12 textos, que vão da p.7 até a p. 49) são relatos de uma viagem que o autor fez ao Velho Mundo. E embora algumas vezes o autor trate seu texto como se um diário fosse, na verdade não o é, podendo ser melhor classificado como  “relatos de viagem” ou “crônicas de viagem”. Há, na verdade, uma mistura de gênero no texto que nos apresenta o autor. Daí o título do livro cair como uma luva para as narrativas que se apresentam. 

O título em si, por sua vez, já é um verdadeiro poema concreto: De 1 tudo. A segunda parte do livro, denominada de “O vento mudou...” (que vai da p.51 até a p. 85) é composta por sete textos. Nesse caso, reconhecemos esses textos como crônicas, uma vez que abordam o cotidiano, o tempo, assim como as observações do narrador a respeito do ambiente que o circunda.  Seja qual for a terminologia que possa ser usada para classificar os textos de Deribaldo Santos, em nada alteram a concepção poético-narrativa da sua obra, eivada de um humanismo simples e leve, que apenas os olhos maduros de um bom observador são capazes de colher.
Deribaldo Santos

O início do livro registra latitude e longitude 40º 24’ N/ 3º 42’ 2’’ W (p. 7). Ao nos encaminharmos para o seu final, somo avisados que o vento mudou, e tem-se, agora, latitude e longitude 03º 43’ 02’’ S/38º 32’ 35’’ W (os entendedores entenderão!). o livro é ilustrado com fotografias do autor, parentes e amigos. Ao final De 1 tudo, tem-se o texto “Ode à leitura: prefácios, posfácios, fortuna crítica: distúrbios ou devaneios” (p. 86-877), do poeta-editor Mardônio França. Lá, França discorre sobre o trabalho de Deribaldo Santos, dizendo que “ A literatura é feita por pessoas, sejam incríveis ou menores no ato de fazer o pão de cada dia”.

A abertura possibilitada pela narrativa de Deribaldo Santos a aproxima da literatura que tem sido produzida no país, permitindo ao leitor variadas interpretações. Trata-se de um texto que oscila entre o erudito e o popular, aproximando-se, por vezes, das narrativas dos cronistas de viagem, da poesia em prosa de base alencarina, bem como da narrativa do safado (sincero?) Bukowski. 


De leitura indispensável, De 1 tudo está rodando por aí, e o alcançará, caro leitor, não importando os braços e abraços das latitudes e  longitudes que te abrigam. Boa leitura!


domingo, 15 de julho de 2018

SOCIEDADE DO CANSAÇO, DE BYUNG-CHUL HAN


Toda sociedade, por ser composta pelos mais variados elementos do humano, apresenta uma ampla diversidade de comportamentos, costumes e viveres. Todo período histórico, por sua vez, incide sobre os elementos constituintes das sociedades. Como  cada um desses elementos irá reagir aos impactos desse tempo histórico consiste quase sempre numa incógnita. Byung-Chul Han,  já na abertura da primeira parte do seu livro Sociedade do cansaço (2017) diz: “Cada época possuiu suas enfermidades fundamentais. Desse modo, temos uma época bacteriológica, que chegou ao seu fim com a descoberta dos antibióticos”. É assim que o autor abre o capítulo primeiro, denominado de “A violência neuronal”.

O trabalho está organizado em sete partes, a saber: “A violência neuronal” (p. 7-21), “Além da sociedade disciplinar” (p. 23-30), “O tédio profundo” (p. 31-37), “Vita activa” (p. 40-50), “Pedagogia do ver” (p. 51-58), “O caso Bartleby” (p. 59-68) e “Sociedade do cansaço” (p. 70-78). Há ainda os nexos: “Sociedade do esgotamento” (p.79-109) e “Tempo de celebração – a festa numa época sem celebração” (p. 109 – 128).

Byung-Chul Han é um filósofo contemporâneo que tem se dedicado a pesquisar a sociedade atual. Entre seus trabalhos mais reconhecidos estão Sociedade da transparência, Agonia de Eros e Topologia da Violência. Todos esses trabalhos foram publicados no Brasil, no ano de 2017, pela editora Vozes. Se Guy Debord já havia se debruçado sobre a Sociedade do Espetáculo (1967) e Mario Vargas Llosa, posteriormente, discorrera sobre aquilo que chama de Civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura (2012), eis que Byung-Chul Han resolveu deitar olhos sobre a sociedade que tem sido marcada pela presença do cansaço.

Dessa forma, a síndrome de Burnout tem se tornado algoz de homens e mulheres que vivem sob a pressão do desempenho. Para o filósofo, a síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo, mas antes a alma consumida. E assim sendo, assiste-se à expansão de doenças como a depressão, resultante, muitas vezes, das imposições, pressões e proibições impostas pela sociedade disciplinar. Para Han, o que torna o ser humano contemporâneo doente, na realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho. A depressão, continua ele, é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade. Reflete aquela humanidade que está em guerra consigo mesma, ou seja:

O sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim, não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. É  nisso que ele se distingue do sujeito de obediência. A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autoreferencialidade gera uma liberdade geral uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal. (HAN, 2017, P. 29-30)


Byung-Chul Han

O ser humano contemporâneo é, ao mesmo tempo, agressor e vítima de uma situação que não apenas a sociedade, mas ele mesmo impõe. Essa situação de aporia na qual estamos todos inseridos nos obriga a “mostrar serviço” e produzir sempre e cada vez mais, para alimentar a máquina da sociedade do desempenho. O resultado, obviamente, não poderia ser outro senão o adoecimento. É sobre essa questão e muitas outras coisas que Byung-Chul Han trata em Sociedade do cansaço. A edição da qual tratamos aqui é de 2017, publicada pela Editora Vozes, com tradução de Enio Paulo Giachini.



quinta-feira, 5 de julho de 2018

1968: QUANDO A TERRA TREMEU, DE ROBERTO SANDER


O ano de 1968 tornou-se emblemático por ter abrigado inúmeras e diversas “revoluções”. Das tantas que ali surgiram, muitas foram responsáveis por moldar o mundo nos seus aspectos sociopolíticos e culturais. No Brasil, há quatro anos, a ditadura corria solta. O golpe civil-militar de 1964 falava cada vez mais grosso e reprimia com mãos de ferro aqueles que se lhe opusessem. O Vietnã ardia. Mick Jagger, o líder dos Rolling Stones dava o ar da graça no Rio de Janeiro. Leila Diniz e Brigite Bardot desafiavam  coro dos contentes. Um tiro covarde apaga Martin Luther King. Matam mais um Kennedy. A passeata dos cem mil diz não à repressão institucionalizada no Brasil. Atentados, mortes, prisões, golpes de estado, sonhos, avanços na medicina, conquistas... primaveras.

Como bem diz Cristina Serra na orelha do livro: “o mundo e o Brasil não seriam os mesmos depois do mítico 1968”.  Os fatos, personagens e lugares descritos por Sander são indispensáveis para se compreender o ano em questão. É claro que o autor priorizou um recorte que pudesse caber no livro, pois sabemos que muito mais poderia ter sido dito. Contudo, é fabulosa a viagem que o autor nos proporciona, quando nos permite ver o ano de 1968 e seus desdobramentos cinquenta anos depois. Se fosse apenas por isso, o livro de Roberto Sander já valeria a pena. Mas eis que o trabalho vai além, quando se considera a qualidade leve e didática do texto, assim como o embasamento histórico dos acontecimentos, apresentados de maneira bastante convidativa. Dessa maneira, 1968: quando a terra tremeu (2018), de Roberto Sander se mostra como leitura indispensável para todos aqueles interessados nas revoluções que moldaram o século XX. O trabalho em questão foi publicado pela editora Vestígio.

Outro ponto positivo no livro de Sander é a maneira como o trabalho foi organizado, ou seja, o autor evitou a divisão em capítulos, literalmente falando, optando por  colocar cada mês do ano de 1968 como sendo cada capítulo. Assim sendo, o livro está organizado em doze meses, ou doze capítulos, indo, é claro, de janeiro a dezembro. Cada mês / capítulo contém em média sete fatos, que abarcam aqueles de caráter nacional e mundial. O livro conta ainda com uma apresentação, escrita pelo próprio Sander na primavera de 2017, bem como três páginas de bibliografia. A contracapa traz uma breve nota escrita por Ruy Castro. Ao todo, são 303 páginas sobre um dos anos mais impactantes, em todos os aspectos, da história da humanidade.

Roberto Sander
O fechamento do livro de Roberto Sander talvez esteja resumido já na sua abertura, quando se lê: “Se ficarmos neutros perante um injustiça, escolhemos o lado do opressor”, nos diz o bispo Desmond Tutu. Passados cinquenta anos de tudo que foi dito e feito naquele ano-chave para o mundo, alguns ainda não entenderam a razão das mudanças e das primaveras acontecerem. Fazer o quê? 

O ano de 1968  pôs o mundo na estrada, caminhando e cantando. Os detalhes? 

Lá, em 1968: quando a terra tremeu.


Boa leitura!

domingo, 20 de maio de 2018

POR QUE ÉTICA É MAIS IMPORTANTE DO QUE RELIGIÃO, POR DALAI LAMA


Ao longo de 35 anos, o jornalista Franz Alt encontrou o Dalai Lama umas trinta vezes. Desses encontros, resultaram quinze entrevistas para a televisão. O livro Por que ética é mais importante do que religião (2018) traz parte dessas entrevistas. O livro em questão está publicado pela editora Harper Collins, com tradução de Carolina Caires Coelho.

O livro é constituído do prefácio “Não tenho inimigos”, de Franz Alt (p.9-12), seguido do texto “Um apelo do Dalai Lama para a ética secular e para a paz” (p. 13-19). A parte central do livro, constituída pelas respostas do Dalai Lama às perguntas de Alt, se estende das página 23 até a página 134 e recebe o nome de “Educando o coração: Uma conversa com sua santidade, o Dalai Lama. Na sequência, o livro se completa com “A história do Dalai Lama” (p.135-140), “O Dalai Lama: Uma vida em datas (p.141-143). 

Façamos três observações: primeiramente, embora Franz Alt apareça como coautor na capa do livro, seu nome não está registrado na ficha catalográfica. A segunda observação é que o sumário indica que a partir da página 144 o livro traria um texto intitulado  “Sobre o coautor Franz Alt”. Contudo, não se tem esse texto no livro (pelo menos na minha edição). O que há na página 144 são apenas os dados da equipe de publicação. A terceira observação é: o livro traz como título original An appeal to the world. Contudo, na ficha catalográfica lê-se: Tradução de: An appeal by the Dalai Lama to the World.

São, ao todo, vinte e oito perguntas claras, diretas e objetivas, respondidas de forma clara, direta e objetiva. Todas as perguntas são antecedidas pela explicação daquilo que trata a questão, iniciando-se sempre com a palavra “sobre”. Por exemplo: “Sobre o presidente Trump” (p.23-25).

Nas suas respostas, o Dalai Lama diz o óbvio, ou seja, Ética é mais importante do que religião, o que poderia soar estranho por ser ele um líder religioso. Contudo, o Dalai Lama (Dalai Lama significa “oceano de sabedoria”) não é um religioso fundamentalista, conseguindo  perceber o fracasso das religiões que pouco ou quase nada mudaram ao longo dos séculos, insistindo no isolamento e na separação pelo radicalismo, desconsiderando que o mais importante é a aproximação de todos os seres humanos em comunhão com o planeta.

Sobre essa questão, o próprio Dalai Lama diz:

Eu acredito que os seres humanos possam sobreviver sem a religião, mas não sem valores, não sem ética. A diferença entre a ética e a religião é como a diferença entre a água e o chá. A ética com base na religião e nos valores interiores é mais como água. o chá é feito praticamente só de água, mas tem outros ingredientes – folhas de chá, temperos, talvez um pouco de açúcar e, pelo menos no Tibete, uma pitada de sal – e isso o torna mais substancial, mais duradouro, algo que desejamos beber todos os dias. Mas independentemente de como o chá é preparado, seu principal ingrediente é sempre a água. Podemos viver sem o chá, mas não sem a água. da mesma maneira, nascemos sem a religião, mas não sem a necessidade básica por compaixão – e não sem a necessidade fundamental por água. (DALAI LAMA, 2018, P.14)

As respostas do Dalai Lama são sempre pautadas por exemplos de vida. Assim, ao longo de toda a entrevista, o líder espiritual tibetano recorre a maiêutica como forma de se fazer compreender da maneira mais clara possível. Ao discorrer sobre a urgente necessidade do ser humano se livrar dos seus pesos mentais, como estresse, medo, ansiedade e frustração, Dalai Lama defende que precisamos de um nível mais profundo de pensamento, que ele chama de mindfulness.

Mindfulness, palavra que a tradutora preferiu manter no original inglês em todo o texto, significa “atenção plena” ou “consciência plena” e refere-se a um estado mental por meio do qual o indivíduo consegue manter controle sobre o seu poder de concentração, contribuindo para que as atividades que precisam ser realizadas se deem de maneira leve e profícua.

Embora a chamada meditação mindfulness tenha caído no gosto das grandes empresas, como forma de manter seus funcionários leves e aptos a resolver qualquer desafio, suas origens remontam às práticas medievais de meditação, tendo entre seus mais antigos praticantes, os budistas. Atualmente, a mindfulness é estudada por vários ramos da medicina e da psicologia, alcançando resultados bastante consideráveis.

A proposta do mestre tibetano objetiva, assim, a nosso ver, a utilização da mindfulness, primeiramente, em nível pessoal para, depois, ser aplicada em nível global, uma vez que nenhuma mudança exterior poderá se dar se não acontecer, primeiramente, uma mudança interior. Devemos, diz o Dalai Lama, nos esforçar para mudar a nós mesmos. Para que isso ocorra tal qual pretendido pelo monge budista, é preciso compreender que “... Agora, a ética global secular é mais importante do que as religiões clássicas. Precisamos de uma ética global que possa aceitar tanto os crentes quanto os não crentes, incluindo os ateus” (DALAI LAMA, p.41). O verdadeiro inimigo, afirma o Dalai Lama, está dentro de nós, não fora.

Dalai Lama e Franz Alt
E assim sendo, em uma época marcada pela marginalização do próximo, pelo levantamento de muros e fechamento de fronteiras, bem como pela exclusão do outro, a leitura de Por que ética é mais importante do que religião (2018) surge como um chamado capaz de nos levar a refletir sobre a nossa função no planeta Terra e nossa relação com o outro. O Dalai Lama está sempre pronto a dizer, geralmente sorrindo, como o fazem os grandes sábios, as coisas mais complexas da maneira mais simples.

Quem tiver ouvidos para ouvir.....

Boa leitura!


sábado, 5 de maio de 2018

O CÂNONE AMERICANO: O ESPÍRITO CRIATIVO E A GRANDE LITERATURA, DE HAROLD BLOOM


Harold Bloom é, sem dúvida, um dos mais prolíficos críticos literários do século XX. Sua contribuição aos estudos literários pode ser medida a partir de trabalhos como O cânone ocidental (1994), Shakespeare: the invention of the human (1998). Hamlet: poema ilimitado (2004) e Onde encontrar a sabedoria? (2004). Mas para quem achava que o crítico norte-americano havia parado sua produção, foi surpreendido pelo seu mais recente trabalho, intitulado O cânone americano: o espírito criativo e a grande literatura, publicado nos Estados Unidos em 2015, tendo sido publicado no Brasil em 2017. O referido trabalho saiu pela editora Objetiva, com tradução de Denise Bottmann.

Em O cânone americano: o espírito criativo e a grande literatura (2017), Bloom deita olhos sobre doze dos maiores autores da literatura norte-americana, apresentando-os em duplas. Assim sendo, os ensaios põem lado a lado, em diálogo, as obras de Walt Whitman e Herman Melville, Ralph Waldo Emerson e Emily Dickinson, Nathaniel Hawthorne e Henry James, Wallace Stevens e T.S. Eliot, Mark Twain e Robert Frost, William Faulkner e Hart Crane.

Como toda seleção e todo cânone versam sobre opções pessoais de escolhas, a seleção de Bloom está sujeita a questionamentos. Contudo, nenhum crítico seria capaz de dar conta do infindável número de obras literárias capazes de conversarem entre si, sendo, inevitavelmente, necessária uma seleção que, naturalmente, se mostra de caráter pessoal.

Na referida obra, Harold Bloom recorre ao termo grego “demo”, que, para os filósofos gregos, era um ser superior, posto entre o humano e o divino. O autor de Abaixo as verdades sagradas (2012) recorre ao referido termo para se referir àqueles escritores que, segundo ele, são dotados de extrema sensibilidade, ou seja, são detentores de um demo interior, responsável por gerar seu  poder poético. Compreende-se que o termo demo não implica em nenhuma questão de religiosidade ou fé, uma vez que, dos autores analisados, nenhum deles acreditava em Deus ou deuses. O que os aproxima, na verdade, é a relação que mantém com o sublime e com o demo, enquanto poder criador, tornando-os diferentes de outros autores. Para Bloom, Os doze autores selecionados “concentram aquela proliferação da consciência pela qual continuamos a viver e a encontrar nosso sentido na existência”.


Harold Bloom 
O tradicionalismo crítico no qual Harold Bloom foi forjado e se orgulha de permanecer não o permite, no entanto, inserir em suas obras autores que não sejam aqueles pertencentes a um cânone dominante, ou seja, um cânone majoritariamente branco, hétero, com autores oriundos de país hegemônicos, como se somente esses autores tivessem o demo e nada mais restasse de sublime aos outros. A crítica de Bloom ignora o que se dá fora do eixo Europa-América do Norte, limitando-se, na maioria das vezes, aos mesmos autores. Nas suas obras são raras as mulheres (em O cânone americano, tem-se apenas Emily Dickinson, a qual também está no Cânone Ocidental ao lado de Virginia Woolf), assim como representantes de outras minorias e autores de países periféricos, ignorando as contribuições à Crítica proporcionadas pelo advento dos Estudos Culturais, por exemplo.

Embora a crítica praticada por Harold Bloom se mostre engessada e carente de atualização, não constitui por essa razão, impedimento para que o leitor se delicie com as análises que o autor desenvolve em seu trabalho. Aqui, especificamente, O cânone americano: o espírito criativo e a grande literatura (2017), de leitura indispensável.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

TEACHING MY MOTHER HOW TO GIVE BIRTH, DE WARSAN SHIRE

Ainda sem tradução para o português brasileiro Teaching my mother how to give birth (2011), de Warsan Shire, é uma das melhores produções poéticas dos últimos anos. Em tradução livre seria algo como “Ensinando minha mãe a dar a luz”. No caso da poesia desenvolvida por Shire, “dar a luz” implica não em ter um filho, em parir; mas abrir a cabeça e o coração para compreender coisas que foram negadas à seguidas gerações de mulheres. 

Teaching my mother how to give birth foi publicado no Reino Unido pela Flipped Eye Publishing, contendo vinte e um poemas. A frase que abre o livro é: “I have my mother’s mouth and my father’s eyes; on my face they are still together” (Tenho a boca da minha mãe e os olhos do meu pai, no meu rosto eles continuam juntos). 

A frase que inicia o trabalho também se constitui como uma das principais temáticas que perpassam toda a obra. Originários da Somália, os pais da poetisa acabam por se tornarem uma representação de todo o povo somali na poesia de Shire. Embora tenha sido criada na Inglaterra, Warsan Shire optou por trabalhar temáticas poéticas que, de uma forma ou de outra, estivessem ligadas aos seus parentes e amigos que ficaram na Somália.

Nesse sentido, percebe-se na sua poesia um compromisso em denunciar o resultado traumático que se abateu sobre seu povo, quando do final da guerra civil que brutalizou seu país. Em consequência, se deu a diáspora, com impacto devastador, principalmente sobre as mulheres. Por meio de seus versos, Warsan Shire consegue apontar o dedo para as contradições, os conflitos, os ditos e os não ditos da experiência diaspórica. Nesse contexto, Shire aborda assuntos como o amor, a diáspora, a ausência do homem na família, a violência sexual contra a mulher e os refugiados somalis,  bem como as relações entre mães e filhas.

Warsan Shire é uma daquela poetas que escreve não apenas a partir daquilo que sente ou vive, mas também das experiências de todos aqueles que a circundam. Nas suas próprias palavras: “... eu sou cada uma das pessoas sobre as quais escrevo...”.  Em termos gerais, a poesia de Warsan Shire pretende ser a voz daqueles que não são ouvidos, ou seja, os imigrantes, refugiados e outros grupos marginalizados.


Shire recorre à sua poesia como forma de se manter em conexão com sua terra natal, a Somália, onde, na verdade, ela nunca esteve. Para tanto, utiliza sua própria posição de imigrante. Dessa maneira, todos, parentes e amigos, acabam por se constituírem como matéria-prima da sua poesia.
Os poemas que compõem Teaching my mother how to give birth são: “What your mother told you after your father left”, “Your mother’s first kiss”, “Things we had lost in the summer”, “Maymuun’s mouth”, “Grandfather’s hands”, “Bone”, “Snow”, “Birds”, “Beauty”, “The kitchen”, “Fire”, “When we last saw your father”, “You were conceived”, “Trying to swim with God”, “Questions for Miriam”, “Conversations about home”, “Old spice”, “My foreign wife is dying and does not want to be touched”, “Ugly”, “Tea with our grandmothers” and “In love and in war”.
Warsan Shire


A poesia de Warsan Shire dialoga com a poesia de Rupi Kaur, assim como com a canção de Beyoncé, a qual declama alguns de seus poemas no seu álbum visual “Lemonade”. Warsan Shire, no entanto, não faz alarde, nem se deixa dominar pela vaidade, pois sua poesia é feita de silêncios. Silêncios que gritam e dilaceram os ouvidos daqueles que a leem.

domingo, 15 de abril de 2018

THE ORIGIN OF OTHERS, DE TONI MORRISON

Toni Morrison é uma das grandes romancistas dos últimos tempos, e o é não apenas pela qualidade literária que imprime aos seus textos ficcionais, mas também pelo impacto que seus textos de não ficção causam naqueles que acompanham seu trabalho, uma vez que seus textos estão sempre em consonância com o ser humano, principalmente o negro. Seu lugar de fala  é o momento histórico no qual está inserida.

Na primavera do ano de 2016, Toni Morrison foi convidada para proferir uma série de palestras na Universidade de Harvard. Juntas, essas palestras foram publicadas no ano seguinte pela editora da própria Harvard, constituindo um total de seis textos, livro este que ainda está sem tradução para o português brasileiro. O trabalho recebeu o nome de The origin of others (2017) e tem como prefaciador o escritor Ta-Nehisi Coates. Os textos que compõem o livro são: “Romancing slavery” (p. 1-18), “Being or becoming the stranger” (p. 19-40), “The color fetish” (p. 41-54), “Configurations of blackness” (p. 55-74), “Narrating the other” (p. 75-92) e “the foreigner’s home” (p. 93-112).

Através dos seis ensaios que compõem The origin of others (A origem dos outros, em tradução livre), Morrison reflete sobre temas que são recorrentes em seus romances e ensaios, mas que não são motivo de preocupação apenas para ela, uma vez que são assuntos que dizem respeito a todos os seres humanos: raça, medo, fronteiras, diásporas, bem como o desejo de pertencimento. Assim sendo, algumas questões são postas pelo texto da autora norte-americana: o que é e por qual razão a raça importa?, Como construímos o outro?, Por qual razão a presença do outro nos assusta? Na tentativa de apontar possíveis respostas para essas perguntas, Toni Morrison recorre não apenas à sua memória, mas também à História, à política e, especialmente, à literatura, analisando obras de autores como Harriet Beecher Stowe, Ernest Hemingway, William Faulkner e Flannery O’Connor entre inúmeros outros. Além disso, a autora toma como exemplos o processo de construção de alguns dos seus romances, como Amada (1987), Paraíso (1997) e Compaixão (2008), por exemplo.


Ao se tomar o racimo como exemplo é possível afirmar que a literatura assume papel relevante no que diz respeito às questões de raça, na América, tanto de forma positiva quanto negativa. Em The origin of others (2017), Toni Morrison escreve sobre os esforços literários do século XIX, que tentavam romancear a escravidão, contrastando esses escritos com a realidade observada no racismo científico de Samuel Cartwright, assim como  nos diários do dono de escravos Thomas Thistlewood. Para tanto, Morrison se detém sobre as configurações da negritude e as noções de pureza racial, bem como nas formas de como a literatura utiliza a cor da pele para revelar caráter ou conduzir narrativas. Toni Morrison aborda ainda questões que dizem respeito ao processo de globalização, assim como às diásporas em curso constante. 

O prefácio de Ta-Nehisi Coates é uma obra de arte à parte. Toni Morrison recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1993. É, sem sombra de dúvidas, uma das autoras mais importantes da literatura universal de todos os tempos.

domingo, 8 de abril de 2018

DICIONÁRIO DE LÍNGUAS IMAGINÁRIAS, DE OLAVO AMARAL


Dicionário de línguas imaginárias, de Olavo Amaral foi uma das grandes publicações do ano de 2017. Trata-se de um belíssimo livro de contos, publicado pela editora Alfaguara, no qual todos os contos são conectados, de uma forma ou outra, pela comunicação. Antes do Dicionário de línguas imaginárias, Amaral já havia publicado Estática (2006) e Correnteza e escombros (2012).

Embora publique pouco, não se pode afirmar que Olavo Amaral seja um amador na arte da narrativa curta, muito pelo contrário. A qualidade literária demonstrada na concepção dos contos que constituem a obra em questão diz muito do respeito e da atenção que o autor dedica ao seu fazer literário. Talvez por isso, o escritor tenha optado por trabalhar a comunicação como elemento central das contos que apresenta, pois discorrer literariamente sobre o ato de comunicar, em época de exacerbado uso de redes sociais, parece-nos tão  relevante quanto pontual e urgente.

Em tempos líquidos, basta um clique para que nos conectemos ao outro lado do mundo. Mais um clique e lá estamos nós, caminhando pelo Louvre... Outro clique e trocamos meia dúzia de palavras com fulano ou beltrano. Retuitamos e curtirmos de tudo um pouco. Somos exímios ativistas da palavra. De frente pra tela, mas de costas para a realidade, quase nem percebemos o fechamento das fronteiras, o descaso pelo próximo, a intolerância que insiste em avançar a olhos vistos. De uma hora para a outra, a palavra parece fugir das nossas bocas. Temos dificuldades para comunicar. Somos reféns da nossa própria solidão comunicativa. Será que a liquidez da nossa era nos obriga a esquecer as línguas que aprendemos?

É sobre algumas dessas questões e muitas outras, que Olavo Amaral discorre nos dez contos que compõem a obra Dicionário de línguas imaginárias. Os contos são: “Uok phlau” (p. 11-17), “Travessia” (p. 18-25), “Mixtape” (p. 26-42), “Quarto à beira d’água” (p. 43-51), “Icebrgs” (p. 52-63), “Choeung Ek” (p. 64-68), “O ano em que nos tornamos ciborgues” (p. 69-83), “Esquecendo Valdés” (p. 84-97), “Última balsa” (p. 98-111) e “Estepe” (p. 112-125). Assim sendo, através das suas narrativas, Amaral conduz o leitor por caminhos que só podem ser percorridos tomando a linguagem como condutora dos meandros da condição humana, sob clara influência do texto de Jorge Luis Borges. Nos contos de Amaral, os jardins se bifurcam, a dificuldade da comunicação mostra-se, em certos casos, como uma torre/biblioteca de babel, de difícil decifração, pois se as línguas são imaginárias, os seres também o são.
Olavo Amaral

Um dos contos mais impactantes do presente trabalho é “Travessia”, no qual pessoas de etnias e línguas diferentes dividem o mesmo porão de um barco. Seriam refugiados, tentando fugir da miséria e da opressão que se abate sobre aqueles a quem resta muito pouco ou quase nada. Como os predadores não lhes podem arrancar a alma e a língua, isso é tudo lhes resta. Antes uma dádiva, a língua agora é praticamente uma maldição, incapaz de comunicar, dizer das dores, das fomes e dos desejos. O que uniria, aparta. São estranhos de si mesmos. Teria sido a partir daí, que começamos a nos tornar ciborgues?

É claro que o Dicionário de línguas imaginárias, de Olavo Amaral, não é um dicionário. Assim como o Dicionário de lugares imaginários (2003), de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi também não o é. Mas quem se importa? Ás vezes o leitor precisa se refugiar em lugares que não existem de verdade, falando línguas que também não existem de verdade. Tudo isso, graças a escritores que existem de verdade.

sexta-feira, 30 de março de 2018

O LIVRO DOS RESSIGNIFICADOS, DE JOÃO DOEDERLEIN

Após passar um longo tempo da sua vida imerso na sociedade dos habitantes das Ilhas Trobriand, conhecidas hoje como Ilhas Kiriwina, Bronislaw Malinowski escreveu um relatório bastante relevante para os atuais estudos etnográficos. O referido trabalho foi publicado no ano de 1922 com o título de Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia
Entre inúmeras outras manifestações da cultura desse povo, Malinowski se deteve bastante na utilização que eles faziam da língua. A conclusão a que chegou Malinowski e a qual, posteriormente, chegaria Firth, foi a de que a língua, enquanto fenômeno social está diretamente relacionada à realidade cultural aos hábitos e costumes do povo que a fala, não podendo, conforme Carvalho da Silva (2017), ser explicada sem uma constante referência a esses contextos mais amplos da expressão verbal, ou seja, nenhuma teoria de significado pode ser proposta sem o estudo dos seus mecanismos culturais de referência.

                    No ano de 1923, Malinowski volta a se debruçar sobre a questão linguística ao publicar no livro O significado de significado: um estudo da influência da linguagem sobre o pensamento e sobre a ciência do simbolismo (1976), de O.K. Ogden e I. A. Richards, o ensaio intitulado “O problema do significado em linguagens primitivas”, no qual afirma que:

A palavra confere poder, permite ao indivíduo exercer influência sobre um objeto ou uma ação. O significado de uma palavra resulta da familiaridade, da capacidade de uso, da capacidade de vociferar, como no bebê, ou da prática direta, como no homem primitivo. A palavra é sempre usada em direta conjunção ativa com a realidade que ela significa. A palavra atua sobre a coisa e a coisa solta a palavra na mente humana. Isso, com efeito, é nada mais nada menos do que a essência da teoria subjacente no uso da magia verbal. (MALINOWSKI, 1978, p. 318)

Como acréscimo às proposições acerca da palavra, segundo Malinowski, acrescentamos o posicionamento de Vilén Flusser (2007):

Cada palavra, cada forma gramatical é não somente um acumulador de todo o passado, mas também um gerador de todo o futuro. Cada palavra é uma obra de arte projetada para dentro da realidade da conversação a partir do indizível, em cujo aperfeiçoamento colaboraram as gerações incontáveis dos intelectos em conversação e a qual nos é confiada pela conversação a fim de que a aperfeiçoemos ainda mais e a transmitamos aos que virão, para servir-lhes de instrumento em busca do indizível. Qual a catedral, qual a sinfonia, qual a obra que pode comparar-se em significado, em beleza e em sabedoria com a palavra, com qualquer palavra de qualquer língua? (FLUSSER, 2007, p. 199).

Em resumo, uma mesma palavra, quando colocada em um contexto cultural diferente, poderá assumir um novo significado ou um ressignificado. A atual conjuntura mundial exige que as pessoas ressignifiquem conceitos e definições já cristalizados em seus léxicos, tempos e espaços, ou seja, o que no passado se compreendia de uma forma, hoje requer um nova conceituação, um novo significado.  

Essa breve teorização, caro leitor, é simplesmente uma forma de apresentá-lo ao trabalho de João Doederlein, conhecido nas redes sociais como @akapoeta (aka = also known as = também conhecido como). Trata-se do trabalho intitulado O livro dos ressignificados, publicado pela editora Paralela, no ano de 2017. Doederlein começou a postar seus “ressignificados” nas redes sociais, tal como fizera a poetisa Rupir Kaur, com o seu Milk and Honey, traduzido para o português brasileiro como Outros jeitos de usar a boca. Após alcançar um significativo número de leitores, tanto Kaur quanto Doederlein acabaram publicando o livro físico e, aumentando ainda mais o número de leitores.

O livro dos ressignificados está organizado em seis partes, a saber: “o jardim” (p. 14-49), “o zodíaco” (p. 50-65), “o coração” (p. 66-107), “a mente” (p. 108-145), “a cidade” (p. 146-171) e “e a história de nós dois” (p. 172-212). Os nomes que dão títulos a cada uma dessas partes são, na verdade, o primeiro poema de cada parte. São os únicos poemas longos do livro. Na sequência de cada um desses longos poemas, seguem-se as lexias com as ressignificações elaboradas pelo autor.

João Doederlein (@akapoeta)
Cada lexia é ressignificada semanticamente, mas também o é gramaticalmente, quando o poeta afirma, por exemplo, que o verbete é um substantivo masculino, mas começa sua definição como se fosse, na verdade, um substantivo feminino. O mesmo ocorre quando afirma que é um substantivo, mas o define como verbo. Essa ressignificação gramatical, que acreditamos ser proposital, contribui de forma positiva para a beleza das definições propostas pelo poeta. 

Os ressignificados de cada lexia constituem-se, por sua vez, como poemas, ou seja, cada ressignificação é a forma de escrever poesia cunhada pelo akapoeta. O resultado ficou muito bom, inserindo o autor de O livro dos ressignificados na mesma linha poética que vem sendo traçada por autoras como Rupi Kaur, Amanda Lovelace e Warsan Shire, por exemplo. O modelo de poesia de akapoeta, no entanto, pela repetição da forma, pode se tornar exaustivo para o leitor, comprometendo seu interesse pela leitura. Isso exige do poeta sua própria e constante ressignificação para as obras que se seguirão ao Livro dos ressignificados. Aguardemos o que virá.

Boa leitura!

sexta-feira, 23 de março de 2018

UMA CONFISSÃO, DE LIEV TOLSTÓI

Na sua obra O mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo (1942), Albert Camus, no capítulo intitulado “O absurdo e o suicídio” diz: “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio”. Julgar se uma vida vale ou não vale a pena ser vivida, continua ele, é responder à questão fundamental da filosofia.

É sobre a incansável busca por uma razão que justifique a validade de se estar vivo, que fez com que Liev Tolstói (1828 – 1910) escrevesse um dos seus mais impactantes textos. Falamos aqui de Uma confissão, escrito no ano de 1879, quando Tolstói tinha 51 anos de idade. Ressalte-se que antes desse trabalho, Tolstói já havia escrito, na década de 1860, o romance Guerra e paz e, na década seguinte, Anna Kariênina, duas obras monumentais da literatura universal. Quando escreveu Uma confissão, Tolstói já era um renomado autor, admirado tanto na Rússia quanto fora dela. Talvez por ter alcançado tudo que desejou e por não possuir dificuldades financeiras, vendo sua família crescer rica e saudável, é nesse período que Tolstói passa a ser perseguido e atormentado por recorrentes vontades de se matar. As angústias e os questionamentos acerca da vida e da morte acabaram resultando na narrativa Uma confissão.


A edição da qual tratamos aqui foi publicada pela editora Mundo Cristão, em 2017, com tradução e apresentação de Rubens Figueiredo. O livro é composto de 127 páginas, distribuídas em 16 (dezesseis) capítulos, acrescido de um epílogo de três páginas, que teria sido escrito em 1882. Tendo em vista sua literatura ter sido alçada ao nível mais alto da literatura em curso, foi inevitável que sua obra se tornasse foco dos mais fervorosos debates, independentemente da classe social, debates esses que acabaram por constituir a amplitude qualitativa observada na literatura russa.

As respostas buscadas por Tolstói o obrigaram a se aprofundar nas mais variadas sendas do pensamento filosófico-religioso, o que não era muito bem visto pelas autoridades tsaristas e muito menos pela Igreja Ortodoxa. A empreitada de Tolstói em busca de uma explicação satisfatória para os seus questionamentos o colocou em rota de colisão com a poderosa Igreja Ortodoxa russa, a qual acabou por excomungá-lo, em 1901, mantendo até hoje sua decisão.

No percurso que fez, Tolstói se aproximou dos mais simples e dos mais pobres que nem eram lembrados nas celebrações da Igreja, a não ser para rezarem pela saúde do tsar e de seus familiares. Impedido de ser publicado na revista Pensamento russo, no ano de 1882, Uma confissão foi publicado na Suíça, no ano de 1884. Enquanto isso, no entanto, cópias manuscritas já circulavam pela Rússia. O texto, no entanto, só é publicado oficialmente na Rússia no ano de 1906, sendo que Tolstói morre em 1910.

Figueiredo (2017, p.7) registra que o texto Uma confissão costuma ser visto como o ponto a partir do qual teria se dado a conversão religiosa de Tolstói, o que dividiria sua obra em duas partes. O tradutor é enfático ao afirmar que isso não procede, uma vez que esse viés religioso já pode ser observado tanto nos primeiros contos do autor quanto nas obras Anna Kariênina e Guerra e paz. Em outras palavras, a angústia e as crises das quais tratam Uma confissão, apresentam as mesmas nuances de crises vividas por inúmeros dos seus personagens nas obras mencionadas. O que então diferencia esse relato das obras de ficção do autor russo? Sobre essa questão, convém observar aquilo que afirma Figueiredo, quando diz:

A diferença é que Uma confissão toma forma de um depoimento pessoal, sem a mediação de personagens de ficção. Tolstói relata sua experiência de maneira direta, dia a dia, passo a passo, observando a transformação de seus sentimentos e pensamentos mais íntimos, ao mesmo tempo que examina, com olhar crítico, tudo que se passa à sua volta. A inspiração inicial para esse primado da sinceridade foi a obra do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, que escreveu suas Confissões no século 18. Porém, a técnica de exposição de Tolstói se distingue por não se basear na argumentação pura, mas apoiar-se, acima de tudo, na parábola – ou seja, pequenas histórias que sintetizam algum problema, alguma idéia, algum dilema. (FIGUEIREDO, 2017, p.8).

Obviamente que Tolstói não encontrou respostas para todas suas perguntas. Contudo, também não se matou. Ao contrário, viveu por muitos anos, morrendo apenas em 1910, aos 82 anos de idade. O sentido da vida talvez não consista em se buscar respostas, mas em se fazer perguntas sempre.

 Uma confissão, de Liev Tolstói, é um daqueles textos que nos são de urgente leitura, pois nos arregala os olhos, acende o cérebro e palpita o coração. A excelente tradução de Rubens Figueiredo, por sua vez, nos conduz pela narrativa de uma forma que quase conseguimos sentir as mãos ansiosas do autor russo e ouvir sua voz angustiada, enquanto “ouvimos” sua confissão. Terminada a leitura, já não somos mais os mesmos, nem poderíamos sê-los se mesmo assim o quiséssemos.

segunda-feira, 19 de março de 2018

DIZEM QUE AS AVÓS SÃO ESTRELAS, DE CAUÊ JUCÁ


Conforme o dicionário Aurélio (2010), avó é um substantivo feminino originário do latim aviola, que significa “a mãe do pai ou da mãe”. A definição que nos é apresentada é bastante limitada e, nem de longe, dá conta daquilo que representa uma avó na vida da maioria das pessoas. É claro que nem todo mundo teve a sorte de desfrutar dos carinhos, agrados e mimos que as avós costumam dispensar aos seus netos, assim como nem todas as avós são Avós.

Os avôs também merecem toda nossa consideração, como é o caso de Gus, o avô do guitarrista do Rolling Stones, Keith Richards. Foi ele quem deu ao Keef seu primeiro violão e sobre quem esse blog já discorreu, quando resenhamos o livro Gus e Eu: a história do meu avô e do meu primeiro violão (2015). A resenha do livro de Richards está disponível em http://blogdocarloscarvalho.blogspot.com.br/2017/11/gus-e-eu-de-keith-richards.html. Hoje, no entanto, é das avós que falaremos. Não falaremos, pelo menos na presente resenha, das avós da Praça de Maio, nem da avó desalmada de Cândida Erêndira, mas especificamente da vovó Rita.

Vovó Rita é daquelas avós que encantam todo e qualquer tipo de neto. É uma personagem encantadora, que habita as memórias do escritor Cauê Jucá, tendo sido transportada por ele para a história infantil Dizem que as avós são estrelas (2017), publicada pela editora Darda. A história que Cauê Jucá nos conta é sobre os laços de amizades entre uma avó (Rita) e sua neta (Maria), mas é também sobre o amor universal e incondicional que une avós e  netos desde que o mundo é mundo. Que neto resiste à tentação de uma agrado de avó? E mais irresistível ainda se esse agrado se resume a comer, devagarzinho, cajá tirado do pé!

Sobre a narrativa  Dizem que as avós são estrelas, observemos o que afirma Lúcia Jucá:
Todos nós temos ou tivemos uma avó. Mas só quem conviveu bem de perto com ela, amou e foi amado, consegue medir o tamanho desse sentimento que ultrapassa todas as barreiras e transforma vidas. Amor de avó é aviso, verdade, aconchego, ensinamento e até castigo...Cheiro de avó é inesquecível! Cauê consegue falar de tudo isso de forma simples, objetiva e profunda (toca a alma). Até quando avó vai embora é diferente. Parece que vamos encontra-la daqui a pouco para fazer um lanche, ler um livro, trocar ideias, abraços, segredos e carinhos. Lugar de avó é dentro do nosso coração, e a saudade dela nos dá força para seguir em frente.
O título do livro de Jucá nos remete a duas referências: o livro Dizem que os cães veem coisas (1987), de Moreira Campos, bem como ao verso “... como uma estrela/Agora, eu sou uma estrela”, do poema Agora eu sou uma estrela, de Fernando Faro. A narrativa de Cauê Jucá lida muito delicadamente com a ideia da perda/morte, que é sempre um assunto muito difícil de ser abordado em livros para crianças.

Cauê Jucá
Na obra em questão, ao abordar o tema, o autor recorre à metáfora das pessoas que “viajam” para o céu sem avisar, tornando-se estrelas a iluminar a vida daqueles que ficam. 

Dizem que as avós são estrelas é um belo trabalho de literatura, para crianças de todas as idades. É uma grande oportunidade de, por intermédio dessa leitura, nos reencontrarmos com nossas avós-estrelas.

Boa leitura!