quinta-feira, 30 de julho de 2015

A CONQUISTA DO BRASIL

João Ramalho é uma daquelas figuras que rendem uma boa biografia. O problema, no caso de Ramalho, é que muito pouco se sabe sobre ele. Não se pode dizer inclusive seu ano de nascimento ou morte. Presume-se, afirma Vainfas, em seu Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808), publicado pela editora Objetiva em 2000, que viveu no Brasil desde 1512 e faleceu em São Paulo com idade muito provecta. Era, continua Vainfas, provavelmente um náufrago das primeiras viagens portuguesas, talvez um degredado. O interessante é que João Ramalho será, durante o período de colonização do Brasil, uma personagem de extrema relevância. Infelizmente, passamos pela escola e nunca, sequer, em momento algum, alguém fala sobre ele. João Ramalho continua sendo uma incógnita, um homem sem passado, quase um fantasma.

Recentemente, no entanto, alguns autores tem tentado buscar em personagens como João Ramalho, outras formas de ver e contar a História do Brasil. Em sua maioria, não são historiadores, mas jornalistas. O resultado está nas prateleiras das livrarias. Alguns desses trabalhos, embora bem escritos, pecam pela ausência de uma metodologia historiográfica que pode, a nosso ver, comprometer e induzir ao erro, aqueles que se limitarem apenas às suas leituras. O “romancear” dos fatos torna agradável a leitura, mas pode mascarar ou confundir o que deve ser mantido não como ficção, mas como História puramente. Nessa seara, leva vantagem a professora Mary Del Priore, por ter a possibilidade de aliar seus conhecimentos acadêmicos como historiadora à arte de contar fatos sem os ranços academicistas. Da sua pena já saíram, entre inúmeros outros trabalhos, A carne e o sangue (2002), O príncipe maldito (2006), A condessa de Barral (2008) e O castelo de papel (2013). Em 2014, Del Priore lançou Do outro lado – a história do sobrenatural e do espiritismo.

Entre os autores que tem seguido pelo caminho de Mary Del Priore, podemos citar Eduardo Bueno, Laurentino Gomes e Thales Guaracy; entre outros. Convém ressaltar que, excetuando-se Bueno, esses autores tem optado por colocar “subtítulos explicativos” em seus livros, o que constitui não apenas um diferencial, mas um chamamento para o leitor. Isso já havia sido feito por Lira Neto, quando, ao lançar a biografia de José de Alencar (1829 – 1877), a denominou de O inimigo do rei – uma biografia de José de Alencar ou a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil. A referida biografia foi lançada no ano de 2006, pela editora Globo. Desde então, algumas das obras publicadas sobre o Brasil tem trazido essa chamada, a qual nos remete tanto ao discurso do cordelista quanto ao do pícaro. E assim, nessa linha, em 2007, pela editora Planeta, Laurentino Gomes publicou: 1808Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. No ano de 2010, agora pela Nova Fronteira, Laurentino Gomes publica 1822 – Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado. Em 2013, o autor de 1808 e 1822, lança pela Globo Livros, 1889 – Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República do Brasil.

Em 2015 foi a vez de Thales Guaracy fazer uso da mesma fórmula e publicar o seu A conquista do Brasil – 1500 – 1600 – Como um caçador de homens, um padre gago e um exército exterminador transformaram a terra inóspita dos primeiros viajantes no maior país da América Latina. O livro, publicado pela editora Planeta, conta com o prefácio “Para entender o Brasil”, de Laurentino Gomes (p. 9 -11) e uma introdução do autor (p. 15 – 17); estando o livro organizado em três partes, sendo elas: “Os donos da terra (p. 27 – 109), “Palavras na areia” (p. 123 – 164) e “Berço de Sangue” (p. 173 -249). O livro se conclui com uma parte denominada de “leituras” (p. 253 – 254), onde se tem uma espécie de “referências bibliográficas”.

Já na introdução (p. 21), e ao longo do livro, nos chama a atenção às referências feitas aos relatos do padre André Thévet (1516 – 1590), uma vez que é sabido, como bem afirma a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, autora de Antropologia do Brasil – Mito, História e Etnicidade (1986), que Thévet não era confiável. Em artigo publicado na Revista Estudos Avançados da USP (www.revista.usp.br), denominado de Imagens de índios do Brasil: O século XVI. A autora afirma:

É somente a partir da década de 50 que o conhecimento do Brasil se precisará, e agora de maneiras divergentes. Teremos duas linhas divisórias básicas: uma que passa entre autores ibéricos, ligados diretamente à colonização – missionários, administradores, moradores – e autores não ibéricos ligados ao escambo, para que os índios são matéria de reflexão muito mais que de gestão; a outra que separa, nesse período de intensa luta religiosa, autores usados por protestantes de autores usados por católicos.
Nesta última categoria, temos o detestável, pedante, condescendente e – segundo o huguenote Léry – o mentiroso, franciscano André Thévet, que afirma ter visto o que não viu, ter estado onde não esteve e preenche as lacunas com fastidiosos e desconexos exemplos clássicos para cada uma das instituições descritas. Contrapondo-se a Thévet, direta ou indiretamente, temos também dois autores excepcionais que estiveram entre os Tupinambá mais ou menos na mesma época, mas em posições simétricas, um como inimigo destinado a ser comido, outro como aliado: o artilheiro do Hesse, Hans Staden, que viveu prisioneiro dos Tupinambá, e os descreve com inteligência e pragmatismo em livro publicado originalmente em 1557 que conheceu imediato sucesso – quatro edições em um ano -, e o calvinista Jean de Léry que passa alguns meses, em 1557, com os mesmos Tupinambá quando a perseguição que Villegagnon move aos huguenotes os obriga a se instalarem em terra firme (...). (CUNHA, 1990:95-96)

Ainda sobre Thévet, em nota de rodapé à citação anterior, Manuela Carneiro da Cunha afirma:

Thévet conseguiu, com tudo isso, uma consagração invejável: nomeado “cosmógrafo do rei”, conservador do “Cabinet do rei”, ou seja um museu de curiosidades, ele foi comparado por  Ronsard a Ulisses, aliás mais do que Ulisses, por ter visto e por ter escrito o que viu: “Ainsi tu as sur luy um double d’avantage, C’est que tu as plus veu, et nous a ton Voyage Escrit de ta main propre et non pas luy du sien” (apud N. Broc 1984:153). Mas Montaigne não se ilude e publica, nos seus “Canibais”, um trecho ferino provavelmente dirigido a Thévet, preferindo-lhe seu próprio informante, o normando seu empregado que havia passado de dez a doze anos na França Antártica. “Ainsi je me contente de cette information, sans m’enquérir de c eles cosmographes em disent”. (Montaigne, 1952 (1580): 233 – 234).

O livro de Guaracy toma como recorte o período que vai de 1500 até 1600. Sobre esta época, período colonial brasileiro, os dados são discordantes sobre o tamanho da população brasileira, especificamente no ano de 1500. Os números mais aceitos, conforme Oliveira (apud Fragoso e Gouvêa 2014), são os do historiador John Hemming (1978). Hemming, afirma Oliveira, tomou por base tanto as fontes quinhentistas e seiscentistas quanto criou índices de densidade populacional consoante a fertilidade e potencialidade de 28 nichos ecológicos em que dividiu o território brasileiro. Como resultado, as estimativas do referido historiador apontam para uma população de 2,4 milhões de pessoas no Brasil de 1500. Setenta anos depois, em 1570, Oliveira afirma que a população indígena era de aproximadamente 800 mil, ou seja, estava reduzida a um terço de seu volume demográfico do início do século XVI. Em função dessa violenta redução populacional, o pesquisador afirma que o termo descoberta tem sido evitado por estudiosos contemporâneos, como Hemming (1978) e Todorov (1983), por exemplo, que preferem falar em “conquista”, enquanto Marcílio (2000) fala em “holocausto”. Por nosso turno, “extermínio”.

Thales Guaracy, assim como John Hemming em Ouro vermelho- A conquista dos índios brasileiros (2007) e Tzvetan Todorov, em A conquista da América – A questão do outro (2010), opta pelo termo “conquista”. No seu recorte, João Ramalho, o homem sem passado, é o caçador de homens. Manuel da Nóbrega é o padre gago e Mem de Sá é o comandante em chefe do exército exterminador dos nativos brasileiros. Ao longo de toda a narrativa de Guaracy, percebemos o desenrolar das atividades político-econômicas de interesse da Coroa Portuguesa acerca da Colônia, em aliança com a igreja católica, representada pela Companhia de Jesus, especificamente nas figuras do padre Manuel da Nóbrega e de José de Anchieta. A conquista e a dominação da terra e de todas as suas riquezas dependiam em muito da conversão dos gentios. Como nem todos os índios tinham a “síndrome de Tibiriçá”, era preciso “convencê-los”, não importando como. Escreve Anchieta, o apóstolo do Brasil:

Parece-nos agora que estão as portas abertas nesta capitania para a conversão dos gentios, se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira com que sejam postos debaixo de jugo, porque para este gênero de gente não há melhor pregação do que  espada e vara de ferro, na qual mais do que em nenhuma outra é necessário que se cumpra o compelle eos intrare”.(GUARACY, 2015: 170)


O compelle eos intrare, mencionado por Anchieta, nos remete ao que Agostinho (354 – 430) acreditava. Para ele, a fé cristã deveria ser espalhada a qualquer custo, ou seja, a igreja deveria usar o medo, a força, e até a dor para conquistar seguidores. Depois de dominados e subjugados é que estariam aptos para receber os ensinamentos divinos. Tal qual Agostinho, Anchieta faz uma leitura equivocada, mas consciente, da parábola do banquete (ou a parábola da grande ceia), conforme Lucas 14:16-24. Dessa forma, se os gentios não aceitavam o jugo pelo bem, o aceitariam pela força. E assim, o poder da Coroa, a determinação da igreja e a força do exército de Mem de Sá, fez com que em esplêndido berço de sangue surgisse o país que somos.
 E, Sabe-se lá de onde, João Ramalho gargalha, gargalha e gargalha. 
Boa leitura!


Outras leituras:

CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
__________________________. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.  

FRAGOSO, João; GOUVEIA, Maria de Fátima (Orgs). O Brasil Colonial: volume 2 (ca. 1580 – ca. 1720). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil (10 vols.). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.

MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil - um banquete no trópico. São Paulo: SENAC, 2000.

NASH, Roy. The Conquest of Brazil. New York, 1926.

SCHWARCZ, Lilia M; STARLING Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
      


quarta-feira, 15 de julho de 2015

A VERDADE É UMA CAVERNA NAS MONTANHAS NEGRAS

A verdade é uma caverna nas montanhas negras (2015) é um conto do escritor britânico Neil Gaiman, publicado pela editora Intrínseca, ilustrado por Eddie Campbell e traduzido para o português por Augusto Calil. Trata-se de uma bela edição em capa dura, que se aproxima tanto do livro ilustrado quanto da graphic novel. Isso não surpreende, uma vez que Gaiman é o autor do cultuado Sandman, enquanto Campbell já tem uma histórica parceria com Alan Moore. A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras consiste em um trabalho que expõe os “limites entre texto e imagem em uma explosão de cor e sombra, memória e arrependimento, vingança e, acima de tudo, amor”.

O conto começa com a pergunta: “indaga se sou capaz de me perdoar?”. E no decorrer das setenta e nove páginas que compõem a narrativa, a vida dos dois principais personagens vai se dirigindo até o ponto em que convergirão para o mesmo vazio existencial, o qual só poderá ser preenchido (se é que o será) se devidamente acertadas as pesadas pendências que suas almas carregam. Como já dito no título da obra, a verdade é uma caverna, e é exatamente a verdade (ou a busca por ela) o leitmotiv da narrativa de Gaiman. Mas onde residiria a tal da caverna senão dentro do próprio homem, essa "montanha negra"? E o que seria, afinal, a verdade?

Ao seu estilo, Gaiman não vai tecer um rosário de aplicações filosóficas para discorrer sobre sua concepção de verdade. Contudo, não podemos desconsiderar o forte teor moral e ético constituinte da referida narrativa. Os dois principais personagens, fisicamente diferentes, em muito se aproximam no que concerne aos seus desejos, angústias e instintos. No âmago de cada um deles, residem arrependimentos, buscas, ambições, desejos (sejam quais forem) e infinitas razões pelas quais viver ou morrer.

Para alguns, determinadas verdades jamais precisam vir à tona. Para outros, apenas o conhecimento da verdade plena é capaz de redimir e aliviar dores por tanto tempo represadas. Em João 8:32, lê-se: “conheceis a verdade, e a verdade vos libertará”. No conto de Gaiman, por sua vez, na busca pela caverna (ou seria pela verdade?), as personagens discorrem sobre a verdade. Lemos:

Pegamos uma trilha aberta pela passagem de centenas de cascos de ovelhas e cervos, e poucos homens.
__ também a chamamos de Ilha Alada. Alguns dizem que é porque, quando vista de cima, a ilha parece ter o formato de asas de borboleta. E não sei qual é a verdade nisso --- falou Calum. --- “Que é a verdade?”, disse Pilatos.
    É mais difícil descer do que subir.
---- Às vezes acho que a verdade é um lugar. Para mim, é como uma cidade: pode haver uma centena de estradas, uma centena de caminhos que, no fim, nos levarão ao mesmo lugar. Não importa de onde venhamos. Se seguirmos na direção da verdade, vamos alcança-la, independentemente do rumo que tomarmos.
      Calum MacInes olhou para mim e nada disse. Então:
---- Está enganado. A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras. Há somente um caminho até lá, e um caminho apenas. Um caminho árduo e traiçoeiro. E se seguir na direção errada, vai morrer sozinho na montanha. (GAIMAN, 2015:27).

A referência que Gaiman faz à pergunta de Pilatos pode ser identificada nas palavras do Evangelho de João, quando Pilatos interroga Jesus. Tem-se:

Então lhe disse Pilatos: Logo, tu és rei?
Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz. (JOÃO, 18:37)

Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade? Tendo dito isso, voltou aos judeus e lhes disse: Eu não acho nele crime algum. (JOÃO, 18:38)

É costume entre vós que eu vos solte alguém por ocasião da Páscoa; quereis, pois, que vos solte o rei dos judeus? (JOÃO, 18:39)

Então, gritaram todos, novamente: Não este, mas Barrabás! Ora, Barrabás era salteador. (JOÃO, 18:40)

Neil Gaiman
A narrativa de Gaiman nos permite fazer uma inter-relação entre as personagens Barrabás e Calum MacInes, uma vez que Barrabás, assim como Calum MacInes era um salteador. Na ficha catalográfica do livro, no entanto, nos chama atenção uma nota do editor que diz: “O tradutor optou por manter o termo border reaver em inglês, por não haver palavra correspondente na língua portuguesa. Border reaver era o nome dado aos salteadores da fronteira entre Escócia e Inglaterra nos séculos XIII a XVII. Esses ladrões agiam na região entre os dois países sem se importar com a nacionalidade de suas vítimas”. A nota do editor, a nosso ver, não justifica a não tradução do referido termo, uma vez que, a própria nota traz a possível tradução em língua portuguesa.


Calum MacInes e o anão, são os dois principais personagens da narrativa de Neil Gaiman. A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras foi lido por seu autor, pela primeira vez, no festival Graphic, no Sydney Opera House, no ano de 2010; tendo sido publicado em uma antologia chamada Stories, recebendo o Prêmio Locus e o Prêmio Shirley Jackson, ambos na categoria de Melhor Conto. Ao final do conto, em texto de 2014, Neil Gaiman diz:

As Montanhas Negras são as Black Cuillins na Ilha de Skye, também conhecida como Ilha Alada, ou talvez Ilha das Brumas. Dizem que há uma caverna cheia de ouro por lá, e que aqueles que a procuram para levar parte do seu ouro se tornam um pouco malignos... (GAIMAN, 2015:80)

E voltando ao texto de ficção, observamos o seguinte diálogo:

--- E é verdade? Ela nos torna maus?
--- ... Não. A caverna se alimenta de outra coisa. Pode levar seu ouro, mas, depois, tudo fica... --- ele fez uma pausa --- tudo fica vazio. Há menos beleza no arco-íris, menos significado em um sermão, menos alegria em um beijo... --- Ele olhou para a entrada da caverna, e pensei ter visto medo em seus olhos. --- Menos.  (GAIMAN, 2015:53)


Considerado um dos autores mais relevantes da contemporaneidade, Neil Gaiman merece nossa atenção enquanto leitores e observadores da literatura produzida no século XXI. Ler seus trabalhos é uma das melhores maneiras de exercitarmos nossa imaginação.

Outras leituras de Neil Gaiman:

1. Frangile things - short fiction and wonders
2. Coraline
3. The ocean at the end of the lane
4. The graveyard book
5. The wolves in the wall
6. American gods
7. Smoke and mirrors - short fiction and illusions
8. Neverwhere
9. Anansi boys
10. Good omens (com Terry Pratchett)