sexta-feira, 27 de setembro de 2019

POESIA NÃO É UM LUXO, DE AUDRE LORDE



A qualidade da luz pela qual escrutinamos nossas vidas tem impacto direto sobre o produto que vivemos, e sobre as mudanças que esperamos trazer por essas vidas. É dentro dessa luz que nós formamos aquelas ideias pelas quais alcançamos nossa mágica e a fazemos realizada. Isso é poesia como iluminação, pois é pela poesia que nós damos nome àquelas ideias que estão – até o poema – inominadas e desformes, ainda por nascer, mas já sentidas. Essa destilação da experiência da qual brota poesia verdadeira pare pensamento como sonho pare conceito, como sentimento pare ideia, e conhecimento pare (precede) entendimento.
Conforme nós aprendemos a sustentar a intimidade do escrutínio e florescer dentro dela, conforme aprendemos a usar os produtos daquele escrutínio para poder dentro de nossa vida, aqueles medos que comandam nossas vidas e formam nossos silêncios começam a perder o controle sobre nós.
Para cada de nós como mulheres, há um lugar escuro por dentro, onde escondido e crescendo nosso espírito verdadeiro se ergue, “lindo / e firme como uma castanha / opondo-se colunar ao (v)nosso pesadelo de fraqueza”[1] e impotência.
Esses lugares de possibilidade dentro de nós são escuros porque são ancestrais e escondidos; eles sobreviveram e cresceram fortes através daquela escuridão. Dentro desses lugares profundos, cada uma de nós mantém uma reserva incrível de criatividade e poder, de emoção e sentimento não examinado e não registrado. O lugar de poder de mulher dentro de cada uma de nós não é branco nem superfície; é escuro, é ancestral, e é profundo.
Quando vemos a vida no modelo europeu unicamente como um problema a ser solucionado, nós contamos somente com nossas ideias para nos deixar livres, pois isso foi o que os patriarcas brancos nos disseram que era precioso.
Mas quanto mais vamos entrando em contato com nossa consciência de vida ancestral, não europeia, como uma situação a ser experienciada e com a qual interagir, nós aprendemos mais e mais a cultivar nossos sentimentos, e a respeitar aquelas fontes secretas de nosso poder de onde vem conhecimento verdadeiro e, portanto, ações duradouras vêm.
Nesse ponto no tempo, acredito que as mulheres carregamos dentro de nós mesmas a possibilidade de fusão dessas duas abordagens tão necessárias à sobrevivência, e chegamos perto dessa combinação em nossa poesia. Eu falo aqui de poesia como uma destilação revelatória da experiência, não o jogo de palavras estéril que, muitas vezes, os patriarcas brancos distorceram a palavra poesia para significar – para cobrir um desejo desesperado por imaginação sem vislumbre.

Para mulheres, então, poesia não é um luxo. Ela é uma necessidade vital de nossa existência. Ela forma a qualidade da luz dentro da qual predizemos nossas esperanças e sonhos em direção a sobrevivência e mudança, primeiro feita em linguagem, depois em ideia, então em ação mais tocável. Poesia é a maneira com que ajudamos a dar nome ao inominado, para que possa ser pensado. O horizonte mais distante de nossas esperanças e medos é calçado por nossos poemas, talhado das experiências pétreas de nossas vidas diárias.



Conforme eles se tornam conhecidos e aceitos por nós, nossos sentimentos e a exploração honesta deles se tornam santuários e solo polinizado para o mais radical e audaz de ideias. Eles se tornam um abrigo para aquela diferença tão necessária à mudança e a conceituação de qualquer ação significativa. Agora mesmo, eu poderia nomear pelo menos dez ideias que eu teria achado intoleráveis ou incompreensíveis e assustadoras, exceto se tivessem vindo depois de sonhos e poemas. Isso não é fantasia tola, mas uma atenção disciplinada ao verdadeiro significado de “isso parece certo para mim.” Nós podemos nos treinar a respeitar nossos sentimentos e transpô-los em uma linguagem para que possam ser compartilhados. E onde aquela linguagem ainda não existe, é nossa poesia que ajuda a tecê-la. Poesia não é só sonho e visão; ela é a estrutura óssea de nossas vidas. Ela lança as fundações para um futuro de mudança, uma ponte entre nossos medos do que nunca aconteceu antes.
Possibilidade não é para sempre nem instante. Não é fácil sustentar crença em sua eficácia. Às vezes podemos trabalhar muito e duro para estabelecer uma primeira trincheira de resistência real às mortes que esperam que vivamos, só para ter essa trincheira roubada ou ameaçada por aquelas calúnias que fomos socializadas a temer, ou pela retirada daquelas aprovações que fomos alertadas a buscar por segurança. Mulheres nos vemos diminuídas ou abrandadas pelas falsamente benignas acusações de infantilidade, de não-universalidade, de mutabilidade, de sensualidade. E quem pergunta a questão: eu estou alterando sua aura, suas ideias, seus sonhos, ou eu estou meramente movendo você a atos temporários e reativos? E mesmo que a segunda não seja má tarefa, é uma que deve ser vista no contexto de uma necessidade de verdadeira alteração das fundações mesmas de nossas vidas.
Os patriarcas brancos nos disseram: penso, logo existo. A mãe Negra dentro de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: eu sinto, portanto eu posso ser livre. Poesia cunha a linguagem para expressar e empenhar essa demanda revolucionária, a implementação daquela liberdade.
Contudo, a experiência nos ensinou que ação no agora é também necessária, sempre. Nossas crianças não podem sonhar a não ser que elas vivam, elas não podem viver a não ser que estejam nutridas, e quem mais vai alimentá-las da comida verdadeira sem a qual seus sonhos não serão nada diferentes dos nossos? “Se você quer que nós mudemos o mundo algum dia, nós ao menos tempos que viver tempo o bastante para crescer!”, grita a criança.
Às vezes nos drogamos com sonhos de ideias novas. A cabeça vai nos salvar. O cérebro sozinho vai nos libertar. Mas não há ideias novas ainda esperando nas asas para nos salvar como mulheres, como humanas. Só há aquelas velhas e esquecidas, novas combinações, extrapolações e reconhecimentos desde dentro nós mesmas – junto à renovada coragem para tenta-las. E nós temos que encorajar constantemente a nós mesmas e a cada outra para tentarmos as ações heréticas que nossos sonhos implicam, e que tantas das nossas velhas ideias desprezam. Na linha de frente de nossa movimentação até mudança, só há poesia para aludir à possibilidade feita real. Nossos poemas formulam as implicações de nós mesmas, o que sentimos dentro e ousamos fazer realidade (ou trazer ação de acordo com), nossos medos, nossas esperanças, nossos terrores mais cultivados.
Pois dentro de estruturas vivas definidas pelo lucro, pelo poder linear, pela desumanização institucional, nossos sentimentos não foram feitos para sobreviver. Mantidos por perto como adjuntos inevitáveis ou passatempos prazenteiros, era esperado que sentimentos se curvassem a pensamento como era esperado que mulheres se curvassem a homens. Mas as mulheres temos sobrevivido. Como poetas. E não há sofrimentos novos. Nós já os sentimos todos. Nós escondemos tal fato no mesmo lugar em que nós escondemos nosso poder. Eles emergem em nossos sonhos, e são nossos sonhos que apontam o caminho para liberdade. Aqueles sonhos se tornam realizáveis por nossos poemas que nos dão a força e coragem para ver, sentir, falar, e ousar.
Se o que precisamos para sonhar, para mover nossos espíritos mais profunda e diretamente até o encontro e através de promessa, é menosprezado como luxo, então nós desistimos do cerne – a fonte – de nosso poder, nossa mulheridade; nós desistimos do futuro de nossos mundos.
Pois não há ideias novas. Só há novas maneiras de fazê-las sentidas – de examinar como nos parecem aquelas ideias sendo vividas no domingo de manhã às 7 A.M, depois do café da manhã, durante amor voraz, fazendo guerra, parindo, chorando nossxs mortxs – enquanto nós sofremos as velhas esperas, combatemos os velhos conselhos e medos de sermos silentes e impotentes e sós, enquanto nós provamos nossas possibilidades e forças.





[1] Traduzido por tatiana nascimento, novembro de 2012. dissonante@gmail.com / traduzidas.wordpress.com
[2] Publicado pela primeira vez em Chrysalis: A Magazine of Female Culture, n. 3 (1977). Nota da autora.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

O TRISTE FIM DE JAIR MESSIAS BOLSONARO, POR JOSÉ EDUARDO AGUALUSA


Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos.
Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olimpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: “Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.” Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada.
Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: “Alvorada é coisa de comunista!” — Esbravejara: “Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.”
O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.
Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trêmulas procurou a glock 19, que sempre deixava sob o travesseiro.
— Largue a pistola, não vale a pena!
A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:
— Quem está aí?
Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos.
Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:
— Porra! Quem é você?
— Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.
— Você não é real!
— Não?
— Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!
O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele. Mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:
— Em todo o caso, sou seu sonho mau. Vim para levar você.
— Levar para onde, ô paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.
— Vou levar você para a floresta.
— Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores, e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso que o ouro.
O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado — era uma onça enfurecida, lançando-se contra o presidente:
— Acabou!
Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:
— Você não pode me deixar aqui. Sou o presidente do Brasil!
— Era. — Rugiu Anhangá, e foi-se embora.
Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o presidente. Não havia sinais dele. “Cheira a onça”, assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério.
Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.
Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio.
As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio.
Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio.
As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio.
O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio — e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

Publicado originalmente na revista Visão de Portugal
Disponível em:  https://blogdojuca.uol.com.br/2019/09/o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro/