quinta-feira, 30 de novembro de 2017

GUS E EU, DE KEITH RICHARDS


Algumas crianças tiveram a sorte de crescer no convívio com seus avós, o que costuma fazer uma enorme diferença na sua formação enquanto seres humanos. Como seria bom se todas as crianças pudessem desfrutar desse tipo saudável de convivência! A realidade, contudo, não permite tal dádiva a todos, infelizmente. O músico Keith Richards, que é cantor, compositor e membro fundador dos Rolling Stones teve essa sorte.

Desde a mais tenra idade, Richards esteve bastante próximo de Theodore Augustus Dupree, seu avô, que para o menino Keith era simplesmente o Gus. Mas Gus não era “apenas um avô” e nem de longe imaginaria que seu neto se tornaria uma lenda do Rock. Contudo, foi o velho Gus quem presenteou Keith com o seu primeiro violão, dando o pontapé para que Keith, ao lado de Jagger, fundassem a maior banda de Rock de todos os tempos, os Rolling Stones.

Quem nos conta essa história é o próprio Keith Richards, no seu livro infanto-juvenil intitulado Gus and Me, publicado no ano de 2014 e ilustrado por sua filha Theodora Richards, a qual se chama Theodora em homenagem ao seu bisavô. A obra foi traduzida para o português brasileiro por Alexandre Raposo e publicado pelo selo Globinho, da Editora Globo, no ano de 2015. Gus e Eu foi escrito por Keith Richards, com Barnaby Harris e Bill Shapiro. Na edição em língua inglesa, o livro vem com um CD no qual Richard lê a história. A editora responsável pela publicação de Gus and Me, a Little, Brown Books For Young Readers é a mesma que, no ano de 2010, publicou a biografia Life, de Keith Richards, sucesso de vendas.

 Gus e Eu tem como subtítulo “a história do meu avô e do meu primeiro violão”. O livro se inicia com uma descrição da casa de Gus pelos olhos do menino Keith, que a vê tomada de muitos instrumentos e bolos. “Theodore Augustus Dupree sabia tocar piano, violino, soprar saxofone e dedilhar violão”. O avô de Richards havia sido, entre outras coisas, líder de uma banda de baile. Para o pequeno Keith, no entanto, Theodore Augustus Dupree era apenas seu avô, o Gus.

Estar com Gus era tudo que Keith queria. Juntos, caminhavam pelas ruas da cidade, cantarolando e assobiando velhas canções. Algumas vezes eram acompanhados pelo Sr. Thompson Wooft, o cão de Gus. Certo dia, Gus levou Keith até uma loja de instrumentos musicais, de todos os tipos. Keith era um menino em uma loja de doces, fascinado por tudo que via, como os violinos que pendiam do teto, amarrados por fios, bem como pelas cornetas pregadas nas paredes. Na volta para casa, Gus presenteou o neto com o violão, menino dos olhos de Keith. Nascia uma lenda!



O livro é bastante simples, porém extremamente encantador. Além das ilustrações de Theodora, a obra traz algumas fotos, gentilmente cedidas pela família Richards. O lendário guitarrista dos Rolling Stones tem cinco filhos e cinco netos. Ainda hoje, toda vez que entra no palco, diz: “obrigado, vovô. Obrigado, Gus!”. Nós, leitores, também temos muito a agradecer ao bom e velho Gus por ter dado aquele bendito violão ao seu neto, o que certamente contribuiu para que ele produzisse sua obra universal e eterna, encantando meio mundo por mais de cinquenta anos. Obrigado, Gus! Obrigado, Richards!

sábado, 18 de novembro de 2017

AS CARTAS DE VIRGINIA WOOLF E LYTTON STRACHEY

Entre os anos de 1906 e 1931 os escritores Virginia Woolf (1882-1941)  e Lytton Strachey (1880-1932) mantiveram uma rica correspondência, por meio da qual muitos dos assuntos que viriam a tomar palco no século XX foram discutidos. Assim como as biografias escritas por Strachey e toda a obra de Woolf , a epistolografia dos dois autores se constitui em um vasto manancial para todos aqueles interessados na leitura dos seus trabalhos bem como para aqueles que desejam se aprofundar, enquanto pesquisadores, nos meandros das discussões que se deram no alvorecer do Modernismo.
A correspondência  de Woolf e Strachey foi reunida e publicada postumamente no livro Virginia Woolf & Lytton Strachey - Letters, de 1956, a partir da coleção de cartas constituinte do acervo Frances Hooper Papers on Virginia Woolf (FHP), o qual está sob a guarda da  Smith College, nos Estados Unidos. Conforme dissertação de mestrado da pesquisadora Geórgia G. B. Cavalcante Carvalho, as missivas foram doadas a Smith College por uma ex-aluna, contando, ao todo, cento e quarenta cartas que foram trocadas entre Woolf e Strachey durante os anos de 1906 e 1931. Na publicação de 1956, no entanto, constam apenas cento e cinco cartas. As demais não foram incluídas, uma vez que os editores, Leonard Woolf e James Strachey, não as consideraram relevantes por serem, nas palavras deles, apenas “notas, cartões postais e telegramas contendo um pouco mais do que convites para o chá ou avisos da chegada de trens”.
A troca de cartas entre os dois autores se inicia, aponta a pesquisadora, no ano de 1906, quando, após a morte do seu irmão Thoby Stephen, Virginia Woolf (ainda Virginia Stephen) convida Lytton Strachey e diversos amigos de Thoby, da Universidade de Cambridge, para uma visita e, provavelmente um chá, em memória de Thoby. De um convite inicial bastante formal, a amizade entre os dois se tornará algo muito próximo, podendo se dizer, inclusive, de confidências e cumplicidades.
A dissertação intitulada Uma tradução comentada de uma seleção de cartas de Virginia Woolf e Lytton Strachey (2017) foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução – POET, da Universidade Federal do Ceará (é a primeira vez que as cartas da referida dissertação são traduzidas para o português brasileiro) e se constitui desde já, como de suma importância para os estudos acerca das cartas de Woolf e Strachey, uma vez que os dois referidos autores se situam historicamente na passagem do século XIX para o século XX, contemplando com seus olhares atentos muitas das mudanças socioculturais que determinariam os rumos das artes, especificamente da literatura, no decorrer de todo o século XX.  
Por meio da correspondência de Woolf e Strachey é possível se ter uma visão das questões políticas, sociais e culturais da Inglaterra do final do século XIX, por intermédio das discussões que eram levadas a cabo nas reuniões do Círculo de Bloomsbury, o qual se iniciou com o objetivo de se discutir economia, filosofia, arte, política e estética, entre inúmeros outros assuntos. Entre seus membros, estava John Maynard Keynes e E. M. Foster, por exemplo. O Círculo de Bloomsbury, conforme Cavalcante Carvalho (2017) compartilhava não apenas valores importantes para seus membros, mas uma preocupação com o prazer estético. Era heterogêneo em suas artes, engajamento político e realizações, mas era homogêneo ao representar e discutir o novo estilo de arte produzido no período.

Lytton Strachey e Virginia Woolf
Ao lermos as cartas de Woolf e Strachey, além de se ter um apanhado bastante amplo das mudanças (literatura, psicanálise, economia etc.) que dominaram o século XX, percebe-se também uma Virginia Woolf que pouco se nota em outros trabalhos. Trata-se da Virginia Woolf que não perde a oportunidade de destilar ironia e sarcasmo acerca de determinados elementos que lhe eram, de alguma forma, próximos. Por essa razão, algumas das cartas constantes do volume de 1956, do qual tratamos aqui, acabaram por serem “mutiladas’, quando faziam referências a pessoas que ainda estivessem vivas ou que, mesmo mortas, poderiam facilmente ser identificadas. Assim sendo, no lugar do nome dessas pessoas ou de suas descrições, os editores optaram por deixar apenas um espaço preenchido por um traço. Dessa forma, para se ter acesso aos nomes das pessoas que são “desconstruídas” por Virginia Woolf e Lytton Strachey nas cartas de 1956, faz-se necessário recorrer a um outro trabalho. No caso, The Letters of Virginia Woolf, Volume I  (1888 – 1912), editado por Nigel Jackson, ainda sem tradução para o português brasileiro.

Os estudos sobre epistolografia continuam avançando no âmbito das universidades brasileiras, assumindo um lugar que, por muito tempo lhe foi negado. Nesse sentido, pesquisas que se detenham sobre as cartas e os diários de Virginia Woolf, bem como outros textos compreendidos como “escrita de si” são de extrema relevância. As cartas de Virginia Woolf e Lytton Strachey são, assim, um importante ponto de partida para investigações desse tipo, pois nos permitem uma apreensão e uma compreensão da identidade cultural modernista por intermédio das discussões que são feitas pelos missivistas em questão.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

LITERATURA E CINEMA: ALGUMAS REFLEXÕES

Houve um tempo em que se pensava que as artes não poderiam “conversar” entre si, devendo cada uma permanecer em seu espaço delimitado. Aqueles que defendiam tal estado de coisas não conseguiam perceber que há muito de uma arte em outra arte, sendo bastante saudável que elas interajam sempre que possível. Vítimas dessa desnecessária polêmica, a literatura e o cinema acabaram por romper as correntes do atraso, passando a caminhar cada vez mais juntas, assim como também já o fazem a literatura e a música, a música e as artes plásticas, as artes plásticas e a dança...

Partindo desse princípio, o livro Literatura e cinema: algumas reflexões (2017) proporciona a discussão acerca de algumas visões contemporâneas no que diz respeito a aproximação (ou seria a simbiose?) entre literatura e cinema a partir de sete artigos escritos por pesquisadores das duas áreas. Assim sendo, Bruna Belmont de Oliveira discorre sobre “Cinema e poesia: apontamento sobre um encontro”. Jamile Pequeno Soares escreve “Faces para a criatura de Frankenstein: o que os filmes fazem que o romance não pode fazer (e vice-versa)”. A discussão acerca de “A representação da violência na literatura e no cinema” foi o assunto sobre o qual escreveu Francisco Romário Nunes, que também ficou responsável por escrever a Introdução, abordando a adaptação fílmica como prática cultural.

Juliana Goldfarb de Oliveira, por sua vez, escreveu “Um outro olhar para A história do olho”, enquanto Maria Bevenuta Sales de Andrade e Charles Albuquerque Ponte discorreram sobre as “Especificidades do verbal e do visual: duas narrativas de Estômago. “Da literatura ao cinema: a narrativa poética em O conto  da princesa Kaguya” foi analisado por Francisca Lailsa Ribeiro Pinto. Maria Graciele de Lima se deteve “Sobre versos que costuram El cuerpo de Cristo: quando a carne e a alma estão desterradas”.

O livro em questão foi organizado por Jamile Pequeno Soares e Maria Graciele de Lima, tendo sido publicado pela editora Queima-Bucha, de Mossoró, em 2017. O trabalho contém ao todo 111 páginas e conta com a apresentação “Tão longe, tão perto” (que nos remete automaticamente ao filme de mesmo nome, de Wim Wenders, de 1993), feita por Cícera Graciele Cajazeiras. Na sequência, tem-se a Introdução (p. 9-18) feita por Romário Nunes, pesquisador das relações entre literatura e cinema, tendo desenvolvido pesquisas a partir das adaptações da obra de Cormac McCarthy para o cinema. 

Os sete artigos que compõem a coletânea, assim como todo e qualquer artigo, não se propõem encerrar as discussões sobre literatura e cinema, o que seria, obviamente, impossível. O objetivo desse tipo de trabalho é trazer à tona, por intermédio de novos olhares, outras apreensões acerca de assuntos muitas vezes exaustivamente debatidos. Isso, contudo, não consiste em nenhuma forma de problema, uma vez que umas das funções do pesquisador é continuamente levantar questionamentos e fazer conjecturas, estando sempre pronto e aberto às possíveis refutações.

Os artigos constituintes do livro Literatura e cinema: algumas reflexões dialogam entre si seja pela temática geral que os une, bem como pela base teórica  recorrente na maioria deles. Contudo, ao  lermos os artigos, deixamos de saber qual é a compreensão de literatura e cinema sob o ponto de vista do oriental, por exemplo, uma vez que as bases teóricas são quase todas ocidentais. Isso também não é um problema, mas é sempre produtivo quando buscamos a compreensão do mesmo pelos olhos do outro. E aqui registro uma pergunta: a transposição de um texto literário para a tela deve ser compreendida como uma adaptação, uma tradução ou uma narrativa simplesmente?

Literatura e cinema: algumas reflexões não pretende, como já dissemos, encerrar algo que não se pode encerrar. E, como posto no próprio título do trabalho, tratam-se apenas de “algumas reflexões”. Reflexões tais que gerarão outras reflexões e mais outras, fazendo com que esse excelente trabalho de pesquisa alcance seu objetivo proposto. As escolhas das obras analisadas foram bastante acertadas, com obras clássicas e modernas investigadas em consonância com questões que são muito caras aos nossos tempos de liquidez. Sobre a consciência das relações que se dão entre texto / leitor / espectador, convém observar o que afirma Nunes, quando diz que: “as narrativas construídas a partir do encontro entre literatura e cinema avançam na contemporaneidade. Isso demonstra que esse contato não esgotou as possibilidades de envolver o leitor/espectador na interação com as histórias” (pp.16-17). O texto introdutório do professor Nunes é assertivo, quando reforça que:

(...) a ideia de intertextualidade levantada por Julia Kristeva e por uma série de outros autores atesta o caráter plural da literatura, por exemplo, e concebe o processo de produtividade da obra literária como uma rede de sentidos que interpela, a partir de múltiplas tradições, a presença de um texto em outro. Essa relação nem sempre indica harmonia, mas também produz tensão, subversão, mutação, entre outras formas de contatos. (NUNES: 2017, p. 9)

Ao colocar em análise as relações intertextuais entre literatura e cinema, das quais trata Nunes, o pesquisador precisar ficar atento às exigências da abordagem que será feita, tendo em vista que ao propor uma investigação de um obra literária transposta para o cinema, um mundo de proposições teóricas se descortina. Em outras palavras, o pesquisador deverá estar atento às idiossincrasias e epistemologias (epistemologia no sentido utilizado por Boaventura de Sousa Santos, 2010) culturais que adaptações como as tratadas no presente livro, requerem.

Embora todos os autores tenham conseguido manter esse foco, considero que entre todos os artigos constituintes do livro Literatura e cinema: algumas reflexões (2017), muito me agradaram os artigos “Faces para a criatura de Frankenstein: o que os filmes fazem que o romance não pode fazer (e vice-versa)”, de Jamile Pequeno Soares, “A representação da violência na literatura e no cinema”, de Francisco Romário Nunes, “Um outro olhar para A História do olho”, de Juliana Goldfarb de Oliveira e “Da literatura para o cinema: a narrativa poética em O conto da princesa Kaguya”, de Francisca Laílsa Ribeiro Pinto. Tratam-se de escolhas meramente pessoais desse resenhista e, portanto, questionáveis.

Em termos gerais, o trabalho que vem a público por intermédio da editora Queima-Bucha é de inestimável valor para todos aqueles  que se dedicam a pesquisar as relações entre literatura, cinema e outros sistemas, vindo portanto, contribuir para uma discussão que se amplia cada vez mais. E que cada vez mais se faz necessária.

Que venha o próximo!