quarta-feira, 15 de julho de 2015

A VERDADE É UMA CAVERNA NAS MONTANHAS NEGRAS

A verdade é uma caverna nas montanhas negras (2015) é um conto do escritor britânico Neil Gaiman, publicado pela editora Intrínseca, ilustrado por Eddie Campbell e traduzido para o português por Augusto Calil. Trata-se de uma bela edição em capa dura, que se aproxima tanto do livro ilustrado quanto da graphic novel. Isso não surpreende, uma vez que Gaiman é o autor do cultuado Sandman, enquanto Campbell já tem uma histórica parceria com Alan Moore. A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras consiste em um trabalho que expõe os “limites entre texto e imagem em uma explosão de cor e sombra, memória e arrependimento, vingança e, acima de tudo, amor”.

O conto começa com a pergunta: “indaga se sou capaz de me perdoar?”. E no decorrer das setenta e nove páginas que compõem a narrativa, a vida dos dois principais personagens vai se dirigindo até o ponto em que convergirão para o mesmo vazio existencial, o qual só poderá ser preenchido (se é que o será) se devidamente acertadas as pesadas pendências que suas almas carregam. Como já dito no título da obra, a verdade é uma caverna, e é exatamente a verdade (ou a busca por ela) o leitmotiv da narrativa de Gaiman. Mas onde residiria a tal da caverna senão dentro do próprio homem, essa "montanha negra"? E o que seria, afinal, a verdade?

Ao seu estilo, Gaiman não vai tecer um rosário de aplicações filosóficas para discorrer sobre sua concepção de verdade. Contudo, não podemos desconsiderar o forte teor moral e ético constituinte da referida narrativa. Os dois principais personagens, fisicamente diferentes, em muito se aproximam no que concerne aos seus desejos, angústias e instintos. No âmago de cada um deles, residem arrependimentos, buscas, ambições, desejos (sejam quais forem) e infinitas razões pelas quais viver ou morrer.

Para alguns, determinadas verdades jamais precisam vir à tona. Para outros, apenas o conhecimento da verdade plena é capaz de redimir e aliviar dores por tanto tempo represadas. Em João 8:32, lê-se: “conheceis a verdade, e a verdade vos libertará”. No conto de Gaiman, por sua vez, na busca pela caverna (ou seria pela verdade?), as personagens discorrem sobre a verdade. Lemos:

Pegamos uma trilha aberta pela passagem de centenas de cascos de ovelhas e cervos, e poucos homens.
__ também a chamamos de Ilha Alada. Alguns dizem que é porque, quando vista de cima, a ilha parece ter o formato de asas de borboleta. E não sei qual é a verdade nisso --- falou Calum. --- “Que é a verdade?”, disse Pilatos.
    É mais difícil descer do que subir.
---- Às vezes acho que a verdade é um lugar. Para mim, é como uma cidade: pode haver uma centena de estradas, uma centena de caminhos que, no fim, nos levarão ao mesmo lugar. Não importa de onde venhamos. Se seguirmos na direção da verdade, vamos alcança-la, independentemente do rumo que tomarmos.
      Calum MacInes olhou para mim e nada disse. Então:
---- Está enganado. A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras. Há somente um caminho até lá, e um caminho apenas. Um caminho árduo e traiçoeiro. E se seguir na direção errada, vai morrer sozinho na montanha. (GAIMAN, 2015:27).

A referência que Gaiman faz à pergunta de Pilatos pode ser identificada nas palavras do Evangelho de João, quando Pilatos interroga Jesus. Tem-se:

Então lhe disse Pilatos: Logo, tu és rei?
Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz. (JOÃO, 18:37)

Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade? Tendo dito isso, voltou aos judeus e lhes disse: Eu não acho nele crime algum. (JOÃO, 18:38)

É costume entre vós que eu vos solte alguém por ocasião da Páscoa; quereis, pois, que vos solte o rei dos judeus? (JOÃO, 18:39)

Então, gritaram todos, novamente: Não este, mas Barrabás! Ora, Barrabás era salteador. (JOÃO, 18:40)

Neil Gaiman
A narrativa de Gaiman nos permite fazer uma inter-relação entre as personagens Barrabás e Calum MacInes, uma vez que Barrabás, assim como Calum MacInes era um salteador. Na ficha catalográfica do livro, no entanto, nos chama atenção uma nota do editor que diz: “O tradutor optou por manter o termo border reaver em inglês, por não haver palavra correspondente na língua portuguesa. Border reaver era o nome dado aos salteadores da fronteira entre Escócia e Inglaterra nos séculos XIII a XVII. Esses ladrões agiam na região entre os dois países sem se importar com a nacionalidade de suas vítimas”. A nota do editor, a nosso ver, não justifica a não tradução do referido termo, uma vez que, a própria nota traz a possível tradução em língua portuguesa.


Calum MacInes e o anão, são os dois principais personagens da narrativa de Neil Gaiman. A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras foi lido por seu autor, pela primeira vez, no festival Graphic, no Sydney Opera House, no ano de 2010; tendo sido publicado em uma antologia chamada Stories, recebendo o Prêmio Locus e o Prêmio Shirley Jackson, ambos na categoria de Melhor Conto. Ao final do conto, em texto de 2014, Neil Gaiman diz:

As Montanhas Negras são as Black Cuillins na Ilha de Skye, também conhecida como Ilha Alada, ou talvez Ilha das Brumas. Dizem que há uma caverna cheia de ouro por lá, e que aqueles que a procuram para levar parte do seu ouro se tornam um pouco malignos... (GAIMAN, 2015:80)

E voltando ao texto de ficção, observamos o seguinte diálogo:

--- E é verdade? Ela nos torna maus?
--- ... Não. A caverna se alimenta de outra coisa. Pode levar seu ouro, mas, depois, tudo fica... --- ele fez uma pausa --- tudo fica vazio. Há menos beleza no arco-íris, menos significado em um sermão, menos alegria em um beijo... --- Ele olhou para a entrada da caverna, e pensei ter visto medo em seus olhos. --- Menos.  (GAIMAN, 2015:53)


Considerado um dos autores mais relevantes da contemporaneidade, Neil Gaiman merece nossa atenção enquanto leitores e observadores da literatura produzida no século XXI. Ler seus trabalhos é uma das melhores maneiras de exercitarmos nossa imaginação.

Outras leituras de Neil Gaiman:

1. Frangile things - short fiction and wonders
2. Coraline
3. The ocean at the end of the lane
4. The graveyard book
5. The wolves in the wall
6. American gods
7. Smoke and mirrors - short fiction and illusions
8. Neverwhere
9. Anansi boys
10. Good omens (com Terry Pratchett)

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