Em crônica do dia 08 de
setembro de 1991, o escritor Moreira Campos (1914 -1994) dizia: “Estorvo, que acabei de ler, é o recente
livro de Chico Buarque. Livro confuso, a que falta certo andamento lógico.
Ficam conosco muitas indagações. Dá-nos a impressão de um casaco mal
costurado...”. E por ai vai. O autor de Dizem
que os cães veem coisas (1987) tinha completa razão. Contudo, o “mal
costurado” do romance em questão estava em consonância com os estilos de
escrita proporcionados pela literatura de viés pós-moderno, ou seja, a desordem
observada no romance Estorvo (1991) é,
na verdade, sua ordem. Ao final do seu texto, Moreira Campos afirma: “diga-se,
ainda, por honestidade, que, seja lá qual for o caos, o livro prende” (2013:359-360).
Começo essa resenha,
recorrendo às palavras do autor de Os
doze parafusos (1978), uma vez que, tal como fez, leio o recente livro de
Chico Buarque, O irmão alemão (2014),
logo que ele desembarcou nas livrarias. Confesso, inclusive, que, na minha fila
de livros a serem lidos, O irmão alemão pulou
na frente de A festa da insignificância (2014),
de Milan Kundera. Fiz isso com uma dor no coração, tendo em vista que A festa da insignificância é o primeiro
livro inédito de Milan Kundera em catorze anos. Por outro lado, o trabalho de
escritor de Chico Buarque de Hollanda, tem chamado minha atenção, principalmente
no que diz respeito às suas peças e romances. A novela Fazenda modelo (1974), por sua vez, deixa muito a desejar, estando muito
distante devido ao seu caráter orwellianamente experimental, da qualidade dos
seus outros trabalhos. Assim sendo, desde Estorvo
(1991), passando por Benjamim (1995),
Budapeste (2003) e Leite derramado (2009), o trabalho literário de Chico Buarque vem em um
crescendo, o que se faz notar de um romance para o outro. Ousamos afirmar,
inclusive, que, com O irmão alemão, Buarque
atinge sua maturidade enquanto romancista, assegurando lugar entre os grandes
nomes da literatura brasileira. É claro que essa maturidade da qual nos
referimos continuará sendo lapidada, acreditamos, a cada novo trabalho do autor
de Roda viva (1968).
O
irmão alemão, publicado pela Companhia das Letras, está
dividido em dezessete capítulos. Ao final, traz uma informação sobre Sérgio
Günther, o irmão alemão de Chico Buarque, uma nota explicativa do próprio autor,
uma foto de Sérgio Günther, uma reprodução da propaganda dos cigarros Problem, além da reprodução de um
documento enviado da Alemanha a Sergio de Hollander. A ficha catalográfica do
livro, por sua vez, diz tratar-se de um romance brasileiro, logo, ficção. Isso é por demais relevante, pois, mesmo Chico
Buarque tendo tomando um assunto de família (um fato) e o transformado em
matéria literária na composição do seu trabalho, isso não torna seu romance
autobiográfico. Logo, não se deve confundir Francisco de Hollander com
Francisco Buarque de Holanda, embora realidade e ficção se embaralhem na
constituição da referida narrativa.
Toda a narrativa
desenvolvida por Chico Buarque em O irmão
alemão tem como ponto de partida a história de Sergio Günther, filho de
Sérgio Buarque de Holanda e Anne Ernst (não há certeza quanto ao nome exato de
Anne, conforme p.227), nascido em Berlim no dia 21 de dezembro de 1930;
falecendo no dia 12 de setembro de 1981, sem que tenha havido contato dele com
os irmãos brasileiros. A busca pelos detalhes dessa história “perdida” na
História da família Buarque de Holanda é o leitmotiv
dessa cativante narrativa de Chico Buarque. Como todo bom romance, O irmão alemão aponta não apenas para a
busca de Sergio Günther, mas para todo o contexto histórico-cultural universal,
com todos os seus desdobramentos no Brasil. Dessa forma, o romance de Chico
Buarque de Hollanda apresenta-se como um “repositório” de acontecimentos sobre
a Segunda Grande Guerra, liberação sexual, rebeldia juvenil, perseguições
políticas, torturas e desaparecimentos recorrentes durante os regimes
autoritários.
A narrativa de Buarque pode
ser vista a partir de três círculos. O círculo maior seria o mundo,
contextualizado pela Segunda Guerra. O médio teria como contextualização o
Brasil dos anos da ditadura civil-militar, enquanto o circulo menor seria a casa
dos Hollander, com suas paredes feitas de livros. A mesma narrativa também pode
ser analisada ao contrário, em sentido inverso, caracterizando-se como um dos
pontos altos do texto no que concerne à sua estrutura, ou seja, parte-se da
casa da família dos Hollander, como microcosmo do enredo, para um espaço
histórico maior, no caso o Brasil, ampliando-se para o espaço histórico-geográfico
mundial. No que diz respeito ainda à estrutura do texto, contam-se como pontos
positivos as inserções de cunho paratextuais postas no romance. Embora coisa
parecida já tenha sido feita em trabalhos de outros autores (no Zero, de Loyola Brandão, por exemplo), isso
não depõe contra o texto de Buarque; ao contrário, o enriquece. Como exemplo do
que afirmamos, o bilhete (pp.8-9), as cartas (pp.33, 114, 115, 163, 164, 165,166),
o ofício (pp.200-203), a dedicatória de Guimarães Rosa para Sergio de Hollander;
na folha de rosto do Grande sertão:
veredas (p.46); assim como os verbetes “ irmãos germanos” (p.36) e “scontroso”
(p.72).
Como já dissemos, O irmão alemão pode ser considerado como
um “repositório” da cultura da década de sessenta. Um mosaico em movimento de
uma década que insiste em não terminar, uma vez que há ainda muitos esqueletos
nos armários e tantos corpos por serem encontrados em países como o Brasil. Na
narrativa de Chico Buarque, o amigo e o irmão do narrador desaparecem, tal qual
ocorria nos anos de chumbo. A narrativa chega ao fim sem que saibamos, embora imaginemos,
que destino tiveram. A mãe, Como as mães dos desaparecidos da vida real, chora
e anseia a volta do filho que nunca mais verá. No que diz respeito aos nomes, se
fôssemos fazer uma análise de alguns que habitam a narrativa buarqueana, identificaríamos
nomes que nos parecem homenagens ou, quando não, referências a acontecimentos
históricos e culturais. Assim sendo, o amigo do narrador Ciccio é Ariosto
(Ludovico?), codinome Thelonious (Monk?). E o que dizer de Eleonora Fortunato?
Teria ela algum parentesco com aquele famoso Gregório? A personagem Thelonious,
por si só, dá pano para a construção de outro romance, tendo em vista a riqueza
das tintas com as quais está pintada.
Outro espaço que poderia ser
considerado um círculo dentro do círculo da casa dos Hollander seria a própria
biblioteca, uma biblioteca universal, o próprio mundo. A biblioteca dos
Hollander é outra grande personagem. A espinha dorsal da narrativa. Por muito
pouco ela não toma as rédeas do próprio destino. O autor, no entanto, (quase) consegue
mantê-la em seu lugar secundário na narrativa (secundário?). As descrições,
referências e devaneios sobre os livros daquela biblioteca constituem-se em
outro alto momento da narrativa em questão. Mas não apenas a cultura canônica
(literatura e música especificamente) é ressaltada em O irmão alemão. Por suas páginas passeiam Marlene Dietrich, o Sabonete
Palmolive, os Chicletes Adams, os Beatles, Cassius Clay, Jack Kerouac e Joan
Baez; para ficarmos apenas em alguns.
A fina ironia do compositor
Chico Buarque também pode ser notada na narrativa do romancista Chico Buarque.
Destarte, não há como não rir quando o narrador diz: “... ele tem um livro
pronto na gaveta: mas é poesia, e nem Rimbaud viveu de poesia” (p. 147). Ou ainda
quando a estupidez e a neurose da ditadura eram tamanhas, que chegavam a
censurar e decretar a prisão de autores estrangeiros ou já mortos. E assim,
quando de uma batida policial na biblioteca dos Hollander, Borges e Cortázar
são devidamente detidos para averiguações (p.155). O número de presos só não
foi maior, afirma o narrador, porque os meganhas não chegaram até as
prateleiras dos chilenos e cubanos.
Em termos gerais, o romance O irmão alemão, de Chico Buarque é a
confirmação da maturidade literária de um autor, que já sabe como contar os
temas mais áridos de maneira cada vez mais leve, palatável e cativante.
E se o narrador Francisco de
Hollander, o Ciccio, encontra o irmão alemão? Cabe a você, leitor, descobrir.
Boa leitura!
MAIS:
1. CHICO BUARQUE LÊ O IRMÃO ALEMÃO: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2014/11/chico-buarque-le-trecho-de-o-irmao-alemao-seu-novo-romance-assista.html
2. VEJA SERGIO GÜNTHER, O IRMÃO ALEMÃO DE CHICO BUARQUE: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/veja-sergio-gunther-irmao-alemao-de-chico-buarque-cantando-no-programa-tele-bz-14571683
3. CAMPOS, Moreira. Porta de academia. Fortaleza: Edições UFC, 2013.