terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O IRMÃO ALEMÃO, DE CHICO BUARQUE

Em crônica do dia 08 de setembro de 1991, o escritor Moreira Campos (1914 -1994) dizia: “Estorvo, que acabei de ler, é o recente livro de Chico Buarque. Livro confuso, a que falta certo andamento lógico. Ficam conosco muitas indagações. Dá-nos a impressão de um casaco mal costurado...”. E por ai vai. O autor de Dizem que os cães veem coisas (1987) tinha completa razão. Contudo, o “mal costurado” do romance em questão estava em consonância com os estilos de escrita proporcionados pela literatura de viés pós-moderno, ou seja, a desordem observada no romance Estorvo (1991) é, na verdade, sua ordem. Ao final do seu texto, Moreira Campos afirma: “diga-se, ainda, por honestidade, que, seja lá qual for o caos, o livro prende” (2013:359-360).

Começo essa resenha, recorrendo às palavras do autor de Os doze parafusos (1978), uma vez que, tal como fez, leio o recente livro de Chico Buarque, O irmão alemão (2014), logo que ele desembarcou nas livrarias. Confesso, inclusive, que, na minha fila de livros a serem lidos, O irmão alemão pulou na frente de A festa da insignificância (2014), de Milan Kundera. Fiz isso com uma dor no coração, tendo em vista que A festa da insignificância é o primeiro livro inédito de Milan Kundera em catorze anos. Por outro lado, o trabalho de escritor de Chico Buarque de Hollanda, tem chamado minha atenção, principalmente no que diz respeito às suas peças e romances. A novela Fazenda modelo (1974), por sua vez, deixa muito a desejar, estando muito distante devido ao seu caráter orwellianamente experimental, da qualidade dos seus outros trabalhos. Assim sendo, desde Estorvo (1991), passando por Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite derramado (2009), o trabalho literário de Chico Buarque vem em um crescendo, o que se faz notar de um romance para o outro. Ousamos afirmar, inclusive, que, com O irmão alemão, Buarque atinge sua maturidade enquanto romancista, assegurando lugar entre os grandes nomes da literatura brasileira. É claro que essa maturidade da qual nos referimos continuará sendo lapidada, acreditamos, a cada novo trabalho do autor de Roda viva (1968).

O irmão alemão, publicado pela Companhia das Letras, está dividido em dezessete capítulos. Ao final, traz uma informação sobre Sérgio Günther, o irmão alemão de Chico Buarque, uma nota explicativa do próprio autor, uma foto de Sérgio Günther, uma reprodução da propaganda dos cigarros Problem, além da reprodução de um documento enviado da Alemanha a Sergio de Hollander. A ficha catalográfica do livro, por sua vez, diz tratar-se de um romance brasileiro, logo, ficção.  Isso é por demais relevante, pois, mesmo Chico Buarque tendo tomando um assunto de família (um fato) e o transformado em matéria literária na composição do seu trabalho, isso não torna seu romance autobiográfico. Logo, não se deve confundir Francisco de Hollander com Francisco Buarque de Holanda, embora realidade e ficção se embaralhem na constituição da referida narrativa.

Toda a narrativa desenvolvida por Chico Buarque em O irmão alemão tem como ponto de partida a história de Sergio Günther, filho de Sérgio Buarque de Holanda e Anne Ernst (não há certeza quanto ao nome exato de Anne, conforme p.227), nascido em Berlim no dia 21 de dezembro de 1930; falecendo no dia 12 de setembro de 1981, sem que tenha havido contato dele com os irmãos brasileiros. A busca pelos detalhes dessa história “perdida” na História da família Buarque de Holanda é o leitmotiv dessa cativante narrativa de Chico Buarque. Como todo bom romance, O irmão alemão aponta não apenas para a busca de Sergio Günther, mas para todo o contexto histórico-cultural universal, com todos os seus desdobramentos no Brasil. Dessa forma, o romance de Chico Buarque de Hollanda apresenta-se como um “repositório” de acontecimentos sobre a Segunda Grande Guerra, liberação sexual, rebeldia juvenil, perseguições políticas, torturas e desaparecimentos recorrentes durante os regimes autoritários.

A narrativa de Buarque pode ser vista a partir de três círculos. O círculo maior seria o mundo, contextualizado pela Segunda Guerra. O médio teria como contextualização o Brasil dos anos da ditadura civil-militar, enquanto o circulo menor seria a casa dos Hollander, com suas paredes feitas de livros. A mesma narrativa também pode ser analisada ao contrário, em sentido inverso, caracterizando-se como um dos pontos altos do texto no que concerne à sua estrutura, ou seja, parte-se da casa da família dos Hollander, como microcosmo do enredo, para um espaço histórico maior, no caso o Brasil, ampliando-se para o espaço histórico-geográfico mundial. No que diz respeito ainda à estrutura do texto, contam-se como pontos positivos as inserções de cunho paratextuais postas no romance. Embora coisa parecida já tenha sido feita em trabalhos de outros autores (no Zero, de Loyola Brandão, por exemplo), isso não depõe contra o texto de Buarque; ao contrário, o enriquece. Como exemplo do que afirmamos, o bilhete (pp.8-9), as cartas (pp.33, 114, 115, 163, 164, 165,166), o ofício (pp.200-203), a dedicatória de Guimarães Rosa para Sergio de Hollander; na folha de rosto do Grande sertão: veredas (p.46); assim como os verbetes “ irmãos germanos” (p.36) e “scontroso” (p.72).

Como já dissemos, O irmão alemão pode ser considerado como um “repositório” da cultura da década de sessenta. Um mosaico em movimento de uma década que insiste em não terminar, uma vez que há ainda muitos esqueletos nos armários e tantos corpos por serem encontrados em países como o Brasil. Na narrativa de Chico Buarque, o amigo e o irmão do narrador desaparecem, tal qual ocorria nos anos de chumbo. A narrativa chega ao fim sem que saibamos, embora imaginemos, que destino tiveram. A mãe, Como as mães dos desaparecidos da vida real, chora e anseia a volta do filho que nunca mais verá. No que diz respeito aos nomes, se fôssemos fazer uma análise de alguns que habitam a narrativa buarqueana, identificaríamos nomes que nos parecem homenagens ou, quando não, referências a acontecimentos históricos e culturais. Assim sendo, o amigo do narrador Ciccio é Ariosto (Ludovico?), codinome Thelonious (Monk?). E o que dizer de Eleonora Fortunato? Teria ela algum parentesco com aquele famoso Gregório? A personagem Thelonious, por si só, dá pano para a construção de outro romance, tendo em vista a riqueza das tintas com as quais está pintada.

Outro espaço que poderia ser considerado um círculo dentro do círculo da casa dos Hollander seria a própria biblioteca, uma biblioteca universal, o próprio mundo. A biblioteca dos Hollander é outra grande personagem. A espinha dorsal da narrativa. Por muito pouco ela não toma as rédeas do próprio destino. O autor, no entanto, (quase) consegue mantê-la em seu lugar secundário na narrativa (secundário?). As descrições, referências e devaneios sobre os livros daquela biblioteca constituem-se em outro alto momento da narrativa em questão. Mas não apenas a cultura canônica (literatura e música especificamente) é ressaltada em O irmão alemão. Por suas páginas passeiam Marlene Dietrich, o Sabonete Palmolive, os Chicletes Adams, os Beatles, Cassius Clay, Jack Kerouac e Joan Baez; para ficarmos apenas em alguns.

A fina ironia do compositor Chico Buarque também pode ser notada na narrativa do romancista Chico Buarque. Destarte, não há como não rir quando o narrador diz: “... ele tem um livro pronto na gaveta: mas é poesia, e nem Rimbaud viveu de poesia” (p. 147). Ou ainda quando a estupidez e a neurose da ditadura eram tamanhas, que chegavam a censurar e decretar a prisão de autores estrangeiros ou já mortos. E assim, quando de uma batida policial na biblioteca dos Hollander, Borges e Cortázar são devidamente detidos para averiguações (p.155). O número de presos só não foi maior, afirma o narrador, porque os meganhas não chegaram até as prateleiras dos chilenos e cubanos.

Em termos gerais, o romance O irmão alemão, de Chico Buarque é a confirmação da maturidade literária de um autor, que já sabe como contar os temas mais áridos de maneira cada vez mais leve, palatável e cativante.

E se o narrador Francisco de Hollander, o Ciccio, encontra o irmão alemão? Cabe a você, leitor, descobrir. Boa leitura!

MAIS:

1. CHICO BUARQUE LÊ O IRMÃO ALEMÃO: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2014/11/chico-buarque-le-trecho-de-o-irmao-alemao-seu-novo-romance-assista.html

 2. VEJA SERGIO GÜNTHER, O IRMÃO ALEMÃO DE CHICO BUARQUE: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/veja-sergio-gunther-irmao-alemao-de-chico-buarque-cantando-no-programa-tele-bz-14571683

3. CAMPOS, Moreira. Porta de academia. Fortaleza: Edições UFC, 2013.