sexta-feira, 30 de março de 2018

O LIVRO DOS RESSIGNIFICADOS, DE JOÃO DOEDERLEIN

Após passar um longo tempo da sua vida imerso na sociedade dos habitantes das Ilhas Trobriand, conhecidas hoje como Ilhas Kiriwina, Bronislaw Malinowski escreveu um relatório bastante relevante para os atuais estudos etnográficos. O referido trabalho foi publicado no ano de 1922 com o título de Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia
Entre inúmeras outras manifestações da cultura desse povo, Malinowski se deteve bastante na utilização que eles faziam da língua. A conclusão a que chegou Malinowski e a qual, posteriormente, chegaria Firth, foi a de que a língua, enquanto fenômeno social está diretamente relacionada à realidade cultural aos hábitos e costumes do povo que a fala, não podendo, conforme Carvalho da Silva (2017), ser explicada sem uma constante referência a esses contextos mais amplos da expressão verbal, ou seja, nenhuma teoria de significado pode ser proposta sem o estudo dos seus mecanismos culturais de referência.

                    No ano de 1923, Malinowski volta a se debruçar sobre a questão linguística ao publicar no livro O significado de significado: um estudo da influência da linguagem sobre o pensamento e sobre a ciência do simbolismo (1976), de O.K. Ogden e I. A. Richards, o ensaio intitulado “O problema do significado em linguagens primitivas”, no qual afirma que:

A palavra confere poder, permite ao indivíduo exercer influência sobre um objeto ou uma ação. O significado de uma palavra resulta da familiaridade, da capacidade de uso, da capacidade de vociferar, como no bebê, ou da prática direta, como no homem primitivo. A palavra é sempre usada em direta conjunção ativa com a realidade que ela significa. A palavra atua sobre a coisa e a coisa solta a palavra na mente humana. Isso, com efeito, é nada mais nada menos do que a essência da teoria subjacente no uso da magia verbal. (MALINOWSKI, 1978, p. 318)

Como acréscimo às proposições acerca da palavra, segundo Malinowski, acrescentamos o posicionamento de Vilén Flusser (2007):

Cada palavra, cada forma gramatical é não somente um acumulador de todo o passado, mas também um gerador de todo o futuro. Cada palavra é uma obra de arte projetada para dentro da realidade da conversação a partir do indizível, em cujo aperfeiçoamento colaboraram as gerações incontáveis dos intelectos em conversação e a qual nos é confiada pela conversação a fim de que a aperfeiçoemos ainda mais e a transmitamos aos que virão, para servir-lhes de instrumento em busca do indizível. Qual a catedral, qual a sinfonia, qual a obra que pode comparar-se em significado, em beleza e em sabedoria com a palavra, com qualquer palavra de qualquer língua? (FLUSSER, 2007, p. 199).

Em resumo, uma mesma palavra, quando colocada em um contexto cultural diferente, poderá assumir um novo significado ou um ressignificado. A atual conjuntura mundial exige que as pessoas ressignifiquem conceitos e definições já cristalizados em seus léxicos, tempos e espaços, ou seja, o que no passado se compreendia de uma forma, hoje requer um nova conceituação, um novo significado.  

Essa breve teorização, caro leitor, é simplesmente uma forma de apresentá-lo ao trabalho de João Doederlein, conhecido nas redes sociais como @akapoeta (aka = also known as = também conhecido como). Trata-se do trabalho intitulado O livro dos ressignificados, publicado pela editora Paralela, no ano de 2017. Doederlein começou a postar seus “ressignificados” nas redes sociais, tal como fizera a poetisa Rupir Kaur, com o seu Milk and Honey, traduzido para o português brasileiro como Outros jeitos de usar a boca. Após alcançar um significativo número de leitores, tanto Kaur quanto Doederlein acabaram publicando o livro físico e, aumentando ainda mais o número de leitores.

O livro dos ressignificados está organizado em seis partes, a saber: “o jardim” (p. 14-49), “o zodíaco” (p. 50-65), “o coração” (p. 66-107), “a mente” (p. 108-145), “a cidade” (p. 146-171) e “e a história de nós dois” (p. 172-212). Os nomes que dão títulos a cada uma dessas partes são, na verdade, o primeiro poema de cada parte. São os únicos poemas longos do livro. Na sequência de cada um desses longos poemas, seguem-se as lexias com as ressignificações elaboradas pelo autor.

João Doederlein (@akapoeta)
Cada lexia é ressignificada semanticamente, mas também o é gramaticalmente, quando o poeta afirma, por exemplo, que o verbete é um substantivo masculino, mas começa sua definição como se fosse, na verdade, um substantivo feminino. O mesmo ocorre quando afirma que é um substantivo, mas o define como verbo. Essa ressignificação gramatical, que acreditamos ser proposital, contribui de forma positiva para a beleza das definições propostas pelo poeta. 

Os ressignificados de cada lexia constituem-se, por sua vez, como poemas, ou seja, cada ressignificação é a forma de escrever poesia cunhada pelo akapoeta. O resultado ficou muito bom, inserindo o autor de O livro dos ressignificados na mesma linha poética que vem sendo traçada por autoras como Rupi Kaur, Amanda Lovelace e Warsan Shire, por exemplo. O modelo de poesia de akapoeta, no entanto, pela repetição da forma, pode se tornar exaustivo para o leitor, comprometendo seu interesse pela leitura. Isso exige do poeta sua própria e constante ressignificação para as obras que se seguirão ao Livro dos ressignificados. Aguardemos o que virá.

Boa leitura!

sexta-feira, 23 de março de 2018

UMA CONFISSÃO, DE LIEV TOLSTÓI

Na sua obra O mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo (1942), Albert Camus, no capítulo intitulado “O absurdo e o suicídio” diz: “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio”. Julgar se uma vida vale ou não vale a pena ser vivida, continua ele, é responder à questão fundamental da filosofia.

É sobre a incansável busca por uma razão que justifique a validade de se estar vivo, que fez com que Liev Tolstói (1828 – 1910) escrevesse um dos seus mais impactantes textos. Falamos aqui de Uma confissão, escrito no ano de 1879, quando Tolstói tinha 51 anos de idade. Ressalte-se que antes desse trabalho, Tolstói já havia escrito, na década de 1860, o romance Guerra e paz e, na década seguinte, Anna Kariênina, duas obras monumentais da literatura universal. Quando escreveu Uma confissão, Tolstói já era um renomado autor, admirado tanto na Rússia quanto fora dela. Talvez por ter alcançado tudo que desejou e por não possuir dificuldades financeiras, vendo sua família crescer rica e saudável, é nesse período que Tolstói passa a ser perseguido e atormentado por recorrentes vontades de se matar. As angústias e os questionamentos acerca da vida e da morte acabaram resultando na narrativa Uma confissão.


A edição da qual tratamos aqui foi publicada pela editora Mundo Cristão, em 2017, com tradução e apresentação de Rubens Figueiredo. O livro é composto de 127 páginas, distribuídas em 16 (dezesseis) capítulos, acrescido de um epílogo de três páginas, que teria sido escrito em 1882. Tendo em vista sua literatura ter sido alçada ao nível mais alto da literatura em curso, foi inevitável que sua obra se tornasse foco dos mais fervorosos debates, independentemente da classe social, debates esses que acabaram por constituir a amplitude qualitativa observada na literatura russa.

As respostas buscadas por Tolstói o obrigaram a se aprofundar nas mais variadas sendas do pensamento filosófico-religioso, o que não era muito bem visto pelas autoridades tsaristas e muito menos pela Igreja Ortodoxa. A empreitada de Tolstói em busca de uma explicação satisfatória para os seus questionamentos o colocou em rota de colisão com a poderosa Igreja Ortodoxa russa, a qual acabou por excomungá-lo, em 1901, mantendo até hoje sua decisão.

No percurso que fez, Tolstói se aproximou dos mais simples e dos mais pobres que nem eram lembrados nas celebrações da Igreja, a não ser para rezarem pela saúde do tsar e de seus familiares. Impedido de ser publicado na revista Pensamento russo, no ano de 1882, Uma confissão foi publicado na Suíça, no ano de 1884. Enquanto isso, no entanto, cópias manuscritas já circulavam pela Rússia. O texto, no entanto, só é publicado oficialmente na Rússia no ano de 1906, sendo que Tolstói morre em 1910.

Figueiredo (2017, p.7) registra que o texto Uma confissão costuma ser visto como o ponto a partir do qual teria se dado a conversão religiosa de Tolstói, o que dividiria sua obra em duas partes. O tradutor é enfático ao afirmar que isso não procede, uma vez que esse viés religioso já pode ser observado tanto nos primeiros contos do autor quanto nas obras Anna Kariênina e Guerra e paz. Em outras palavras, a angústia e as crises das quais tratam Uma confissão, apresentam as mesmas nuances de crises vividas por inúmeros dos seus personagens nas obras mencionadas. O que então diferencia esse relato das obras de ficção do autor russo? Sobre essa questão, convém observar aquilo que afirma Figueiredo, quando diz:

A diferença é que Uma confissão toma forma de um depoimento pessoal, sem a mediação de personagens de ficção. Tolstói relata sua experiência de maneira direta, dia a dia, passo a passo, observando a transformação de seus sentimentos e pensamentos mais íntimos, ao mesmo tempo que examina, com olhar crítico, tudo que se passa à sua volta. A inspiração inicial para esse primado da sinceridade foi a obra do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, que escreveu suas Confissões no século 18. Porém, a técnica de exposição de Tolstói se distingue por não se basear na argumentação pura, mas apoiar-se, acima de tudo, na parábola – ou seja, pequenas histórias que sintetizam algum problema, alguma idéia, algum dilema. (FIGUEIREDO, 2017, p.8).

Obviamente que Tolstói não encontrou respostas para todas suas perguntas. Contudo, também não se matou. Ao contrário, viveu por muitos anos, morrendo apenas em 1910, aos 82 anos de idade. O sentido da vida talvez não consista em se buscar respostas, mas em se fazer perguntas sempre.

 Uma confissão, de Liev Tolstói, é um daqueles textos que nos são de urgente leitura, pois nos arregala os olhos, acende o cérebro e palpita o coração. A excelente tradução de Rubens Figueiredo, por sua vez, nos conduz pela narrativa de uma forma que quase conseguimos sentir as mãos ansiosas do autor russo e ouvir sua voz angustiada, enquanto “ouvimos” sua confissão. Terminada a leitura, já não somos mais os mesmos, nem poderíamos sê-los se mesmo assim o quiséssemos.

segunda-feira, 19 de março de 2018

DIZEM QUE AS AVÓS SÃO ESTRELAS, DE CAUÊ JUCÁ


Conforme o dicionário Aurélio (2010), avó é um substantivo feminino originário do latim aviola, que significa “a mãe do pai ou da mãe”. A definição que nos é apresentada é bastante limitada e, nem de longe, dá conta daquilo que representa uma avó na vida da maioria das pessoas. É claro que nem todo mundo teve a sorte de desfrutar dos carinhos, agrados e mimos que as avós costumam dispensar aos seus netos, assim como nem todas as avós são Avós.

Os avôs também merecem toda nossa consideração, como é o caso de Gus, o avô do guitarrista do Rolling Stones, Keith Richards. Foi ele quem deu ao Keef seu primeiro violão e sobre quem esse blog já discorreu, quando resenhamos o livro Gus e Eu: a história do meu avô e do meu primeiro violão (2015). A resenha do livro de Richards está disponível em http://blogdocarloscarvalho.blogspot.com.br/2017/11/gus-e-eu-de-keith-richards.html. Hoje, no entanto, é das avós que falaremos. Não falaremos, pelo menos na presente resenha, das avós da Praça de Maio, nem da avó desalmada de Cândida Erêndira, mas especificamente da vovó Rita.

Vovó Rita é daquelas avós que encantam todo e qualquer tipo de neto. É uma personagem encantadora, que habita as memórias do escritor Cauê Jucá, tendo sido transportada por ele para a história infantil Dizem que as avós são estrelas (2017), publicada pela editora Darda. A história que Cauê Jucá nos conta é sobre os laços de amizades entre uma avó (Rita) e sua neta (Maria), mas é também sobre o amor universal e incondicional que une avós e  netos desde que o mundo é mundo. Que neto resiste à tentação de uma agrado de avó? E mais irresistível ainda se esse agrado se resume a comer, devagarzinho, cajá tirado do pé!

Sobre a narrativa  Dizem que as avós são estrelas, observemos o que afirma Lúcia Jucá:
Todos nós temos ou tivemos uma avó. Mas só quem conviveu bem de perto com ela, amou e foi amado, consegue medir o tamanho desse sentimento que ultrapassa todas as barreiras e transforma vidas. Amor de avó é aviso, verdade, aconchego, ensinamento e até castigo...Cheiro de avó é inesquecível! Cauê consegue falar de tudo isso de forma simples, objetiva e profunda (toca a alma). Até quando avó vai embora é diferente. Parece que vamos encontra-la daqui a pouco para fazer um lanche, ler um livro, trocar ideias, abraços, segredos e carinhos. Lugar de avó é dentro do nosso coração, e a saudade dela nos dá força para seguir em frente.
O título do livro de Jucá nos remete a duas referências: o livro Dizem que os cães veem coisas (1987), de Moreira Campos, bem como ao verso “... como uma estrela/Agora, eu sou uma estrela”, do poema Agora eu sou uma estrela, de Fernando Faro. A narrativa de Cauê Jucá lida muito delicadamente com a ideia da perda/morte, que é sempre um assunto muito difícil de ser abordado em livros para crianças.

Cauê Jucá
Na obra em questão, ao abordar o tema, o autor recorre à metáfora das pessoas que “viajam” para o céu sem avisar, tornando-se estrelas a iluminar a vida daqueles que ficam. 

Dizem que as avós são estrelas é um belo trabalho de literatura, para crianças de todas as idades. É uma grande oportunidade de, por intermédio dessa leitura, nos reencontrarmos com nossas avós-estrelas.

Boa leitura!

sábado, 10 de março de 2018

CRÔNICAS DO GOLPE, DE FELIPE PENA

Embora algumas vozes ainda insistam em dizer, que tudo aquilo que contribuiu para a destituição da presidenta Dilma Rousseff não foi um golpe parlamentar, não é bem o que se vê  por aí. A literatura a esse respeito, bem como outras artes, como é o caso do documentário O Processo, da cineasta Maria Augusta Ramos, já é bastante vasta e, cada vez mais, intelectuais, juristas, ficcionistas, professores e artistas esmiúçam e revolvem as entranhas do monstro que, num grande acordo nacional, foi urdido para violar o estado democrático de direito do país e, de uma tacada, jogar no lixo os 54 milhões de votos que elegeram Rousseff, usando a balela das tais pedaladas fiscais. Cada dia que passa, no entanto, fica mais difícil sustentar a farsa que foi montada, para “manter isso aí”.

Entre muito daquilo que tem sido publicado sobre o golpe, um livro em especial tem praticamente passado “despercebido” do grande público leitor. Trata-se do livro Crônicas do golpe: num grande acordo nacional. Com o Supremo, com tudo, de Felipe Pena, publicado pela editora Record, no ano de 2017. A capa do livro ficou a cargo do chargista Aroeira, enquanto a orelha ficou por conta do escritor Ricardo Lísias, com apresentação de Xico Sá (p. 11). Ao todo, o trabalho está desenvolvido em 153 páginas, sendo cinquenta crônicas (p. 15-146), nota do autor (p. 13), posfácio (p. 147-150) e agradecimentos e vice-versa (p. 151-153).

Sobre como o livro foi organizado, vejamos o que afirma o próprio autor:

Todas as crônicas deste livro foram publicadas no jornal Extra, entre abril de 2016 – um mês antes do golpe de Estado contra a presidente Dilma Rousseff – e maio de 2017, quando o golpe completou um ano. Só fogem à regra os textos: “A morte e a morte do jornalismo brasileiro”, “Não vai ter conversa com o Bial” e “A tomada do palácio pelo inverno”, que foram veiculadas no portal Jornalismo de Resistência (www.jornalismoderesistência.com.br).
A ordem não é cronológica, com exceção da primeira crônica, que foi o texto de estreia da coluna “Contra a Corrente” no jornal Extra. A seleção seguiu um único critério, o tema que dá título ao livro.
Orientado pelos editores Carlos Andreazza e Luiza Miranda, escrevi um posfácio para situar o leitor no contexto histórico de algumas crônicas e orientar possíveis pesquisadores sobre o tema. Pelo mesmo motivo, as datas de publicação no jornal foram registradas ao final de cada texto. (PENA, 2017:13)

Felipe Pena foi certeiro ao escolher o gênero crônica para discorrer sobre o golpe de 2016. Por sua capacidade de abranger os mais variados assuntos e ser escrita em linguagem simples (não confundir com “simplória”), talvez a crônica permita ao escritor comunicar mais e melhor sobre a condição humana, uma vez que ela, conforme Antonio Candido (1918-2017), é capaz de dar conta daquilo que o crítico chamou de “a vida ao rés-do-chão”.

As crônicas de Pena são claras, objetivas e diretas, como devem ser as boas crônicas. O autor demonstra, ao longo dos textos, habilidade com a palavra escrita, conduzindo o leitor pelos
Felipe Pena
meandros do modus operandi do inverno que se abateu sobre o Brasil, resultando em tudo que se vê hoje. A primeira crônica do livro é “Não é golpe, é muito pior” (p. 15-16), enquanto a última é “Um ano depois, o rato pariu a montanha” (p. 143-146). Sem exceções, a leitura das crônicas do golpe, de Felipe Pena, é indispensável e urgente para se compreender a atual situação do país. 


Como atento observador da realidade brasileira, Pena conseguiu fazer um recorte de um dos períodos mais delicados da política nacional, registrando tudo de forma leve e simples, mas cortante. Para tanto, o uso recorrente da ironia e de uma certa acídia beckettiana lhe foram elementos discursivos relevantes.

Em resumo, Pena nos diz:

(...) Houve um golpe parlamentar no Brasil. Esta é a ideia central do livro, baseada em argumentos sólidos, que podem e devem ser contestados. Mas não dá para ignorar as gravações do Sérgio Machado, o acordo com o Supremo, a suruba do Jucá ou a entrevista do Temer confirmando que Dilma caiu pelo conjunto da obra e não pelas supostas pedaladas fiscais (...) (PENA, 2017:130)

É claro que grande parte da imprensa nativa não tem interesse em discutir seriamente o golpe de 2016, assim como suas implicações, tendo em vista que eles mesmos se dedicaram a produzir o jornalismo de guerra que tem se alastrado pelas redações do país. Neste contexto, Crônicas do golpe está, temporariamente, condenado à invisibilidade. Em um futuro próximo, no entanto, ressurgirá e se manterá como referência de leitura sobre um tempo que, tal qual aquele rio da canção de Paulinho da Viola, passou na vida do povo brasileiro, hoje fotografado, fichado, humilhado e sem direito ao porvir, mas que, como todo bom estivador, jamais esquece suas sapatilhas.


Boa leitura!

quinta-feira, 1 de março de 2018

A ELITE DO ATRASO: DA ESCRAVIDÃO À LAVA JATO, DE JESSÉ SOUZA

Aqueles que ainda acreditavam que poderia existir alguma “bondade” no coração da elite brasileira, parecem ter perdido toda a esperança (e toda a ingenuidade) no curso do ano de 2016. Foi durante esse fatídico ano que a elite predatória brasileira escancarou geral o seu ódio de classe, bem como sua determinação de se manter no poder a qualquer custo. Aos menos favorecidos, a chibata e o açoite. Estava soterrada toda e qualquer possibilidade de emancipação das minorias (na verdade, maiorias). O Brasil e sua elite provinciana, respaldada pelo monopólio da mídia e pela mão pesada do judiciário (que não deve ser confundido com Justiça) passou a prender e arrebentar todos aqueles que insistiam em alguma forma de subversão. Provas? Isso não vem ao caso.

A criatura está fora de controle. Essa ação, no entanto, não é recente, mas sempre se manteve latente desde o período da escravidão. A escravidão continua sob outras formas e os donos do poder nem se dão mais ao trabalho de maquiar seus projetos de manutenção de uma sociedade que atenda apenas aos seus desejos e ansiedades políticas e econômicas. Ao restante da população foi destinada a miséria, a ignorância e o atraso.

É sobre questões desse tipo que trata o livro A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato (2017), de Jessé Souza, publicado pela editora Leya. O livro está organizado em quatro grandes partes. A primeira “O racismo de nossos intelectuais: o Brasileiro como vira-lata” (p. 11-35). A segunda parte é denominada de “A escravidão é nosso berço” (p. 36-72). A terceira parte, por sua vez, é “As classes sociais do Brasil moderno” (p. 73-180). Fechando o trabalho, tem-se a parte denominada de “A corrupção real e a corrupção dos tolos” (p. 181-234).

Jessé Souza
O trabalho de Souza opõe-se criticamente ao pensamento sociológico estabelecido no Brasil, a partir dos textos “canônicos” de Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso e Roberto DaMatta. As respectivas leituras contribuíram, conforme Souza, para se erigir e manter o complexo de vira-lata do brasileiro, disseminando “a ideia de que a corrupção política é um problema nacional – um problema que teria sido herdado especialmente de nossa formação ibérica. Daí o sucesso da operação Lava Jato numa sociedade ansiosa por remover os males instalados no Estado brasileiro”. Souza considera tudo isso falso e desmonta, sob o ponto de vista sociológico, tais argumentos que, ao longo dos anos, tem sido repetidos sem que sejam questionados.

A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato (2017), juntamente com A ralé brasileira: quem é e como vive (2009), ambos de Jessé Souza, já podem ser considerados clássicos indispensáveis para se compreender o que fizeram com esse país e com esse povo.  A leitura é obrigatória!