quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

IRACEMA: 150 ANOS

Todo bom leitor de literatura brasileira tem certa predileção por um ou outro trabalho de José de Alencar. Você pode até nem gostar. Pode até ser indiferente, mas isso não diminuirá a relevância da obra alencarina. Ao contrário, só depõe contra você enquanto leitor. Ouso dizer que, quem não gosta de José de Alencar, bom sujeito não é.

Brincadeiras à parte, não se pode compreender a dimensão da literatura produzida em língua portuguesa sem passar pela compreensão do que significa a obra de Alencar na constituição da nossa literatura, bem como da própria língua portuguesa que, para Alencar, seria, na verdade, a língua brasileira, uma vez que essa era a sua intenção, e pela qual foi duramente criticado.

Mas Alencar, como todo grande gênio, era um homem à frente do seu tempo. Ser um gênio, no entanto, não retira de ninguém a qualidade humana. Daí, o romancista ter se equivocado em determinadas questões relativas à escravidão, por exemplo, que, de forma alguma, o exime de responsabilidades. Alencar só viveu quarenta e oito anos. Durante sua maturidade como escritor e político viveu sob intenso bombardeio dos críticos e opositores. 

Quando da sua famosa querela com o Imperador, por exemplo, é Machado de Assis (1839 - 1908) quem sai em sua defesa, afirmando: “contra a conspiração da indiferença um aliado invencível: a conspiração da posteridade”. Admirador declarado de José de Alencar, Machado de Assis já registra aí que o autor cearense seria um clássico. Como o autor de Dom Casmurro (1899) não costumava errar, Alencar se fez clássico. E um clássico, em termos bem objetivos, é aquela obra literária que permanece na história por seu caráter universal e atemporal. 

Sua principal obra é, sem sombra de dúvidas, Iracema (1865). Não temo em dizer, inclusive, que, de uma forma ou outra, somos todos Iracemas, pois, de alguma maneira, guardamos parentescos e aproximações com essa obra que tem sido ao longo da História do Brasil (quando falo em História do Brasil, me refiro a todas as formas de manifestações culturais nacionais, ou seja, literatura, artes plásticas, música, arquitetura etc.) um mito em constante reestruturação, uma referência perene da cultura brasileira, assim como também o é a Carta, de Pero Vaz de Caminha, o Abaporu, da Tarsila do Amaral ou as Bachianas brasileiras, de Villa-Lobos.

Embora haja uma insistente e recorrente tentativa de se discutir a forma, a estrutura organizacional de Iracema, uma vez que alguns dizem ser, um romance, um poema ou uma lenda, como afirmara o próprio Alencar. Assim sendo, não nos deteremos nesse aspecto por considerarmos uma questão menor, quase desnecessária. Sigo, no entanto, Andrade Furtado, quando classificou Iracema, como um romance-poema (o maior poema em prosa da literatura brasileira), rico em tudo, especialmente em musicalidade. Como comprovação do que afirmo, não é preciso ir tão longe, bastando apenas atentarmos para a maneira como o romance-poema se inicia: "Verdes mares bravios de minha terra natal,onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba.Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros...". Dessa forma, reafirmo que, mais importante que a forma, é o conteúdo. É claro que uma obra-prima requer uma relação de simetria entre conteúdo e estrutura. E isso, não se pode negar, também foi alcançado por Alencar, ao elaborar Iracema, obra com a qual finca no coração da cultura brasileira, o livro fundador da literatura nacional.

 A palavra Iracema é um anagrama, ou seja, a partir de uma reordenação das suas letras,é possível se construir a palavra América, e é ingênuo querer acreditar que isso se dá por mera coincidência do acaso. Claro que não. Com Iracema, Alencar pretendia não apenas fundar as bases da literatura brasileira, mas também da literatura americana. Daí o novo mundo, a América, está embutida em Iracema e vice-versa, como forma de nascimento e simbiose. Note-se ainda que, ao unir as línguas nativas (representadas por Iracema) com a língua portuguesa (com Martim), Alencar, de uma tacada só, proporciona questionamentos acerca da multiculturalidade que, somente meio século depois, seriam sociologicamente levantados por Gilberto Freyre (1900 - 1987),  em seu livro Casa Grande & Senzala (1933).

A miscigenação cultural apresentada por Alencar, na maioria dos seus romances indianistas, fez com que muitos dos seus críticos o acusassem de ter se apropriado das ideias literárias de outros autores. Do francês François-René de Chateaubriand (1768 - 1848), por exemplo, o qual havia escrito a novela Atala (1801), que  tem como enredo, a história de Atala, filha de um europeu e uma índia que se envenena para não ceder ao desejado amor de Chactas, uma vez que prometera à mãe moribunda, morrer virgem. Outros, por sua vez,  viam em seus trabalhos da fase indianista, aproximações com os trabalhos do escritor norte-americano, James Fenimore Cooper (1789 – 1851), especificamente sua obra mais conhecida, O último dos moicanos, de 1726. Contudo, se José de Alencar recorre à figura dos nativos e, através da sua narrativa, aponta para uma separação intelectual do Brasil em relação a Portugal, Cooper vê, nos índios peles vermelhas, a possibilidade de liberação intelectual dos Estados Unidos em relação à Inglaterra. Seja como for, os dois nomes representativos do Indianismo nas Américas são Alencar, no Brasil, e Cooper, nos Estados Unidos. Dessa forma, falar em plágio ou apropriação é para lá de descabido.

Disse anteriormente que não se deve insistir em discussões acerca da forma, mas no conteúdo de Iracema. Digo isso, pois, assim como Jorge Luis Borges (1899 - 1986), vejo o livro como um instrumento diferente de todos os outros já criados pelo homem. 

Era o ano de 1978, quando Jorge Luis Borges foi convidado a proferir cinco palestras na Universidade de Belgano, na Argentina. Na ocasião, o autor falou sobre cinco temas pelos quais sempre teve grande paixão: o livro, a imortalidade, Emanuel Swendenborg, Edgar Allan Poe e o tempo. Essas palestras resultaram no livro Cinco visões pessoais, publicado no Brasil no ano de 2002. 

Sobre o livro, afirma Borges:

“Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação”. (BORGES, 2002:13)

 E continua ele:

“Se lemos um livro antigo é como se lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito e nós. Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode conter muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não como um tipo de respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria”. (BORGES, 2002:20) 


Dessas falas de Jorge Luis Borges ressalto o trecho que diz: “o livro é uma extensão da memória e da imaginação”. E retomo Iracema, para perguntar o quanto da “índia dos lábios de mel” se mantém na nossa memória, individual ou coletiva, todas aquelas vezes que ouvimos o nome de José de Alencar, caminhamos pelo calçadão da Praia de Iracema ou simplesmente pelos atos de estar ou viver em Fortaleza, terra defortes ventos, sol intenso e verdes mares bravios.  Mas o livro, nos lembra o escritor argentino, também é uma extensão da imaginação. E assim sendo, Iracema é um “prato cheio” (Umberto Eco chama esse meu “prato cheio” de obra aberta) para que se possa imaginar o ambiente social no qual a índia tabajara  estava inserida, sua função social na tribo, a beleza do seu corpo, seu caráter, sua identidade feminina, bem como da sua capacidade de se deslocar da serra do Ipu até o mar de Fortaleza. Nestes termos, Iracema é um desses livros sagrados, divinos, propiciadores da alegria, da felicidade, da sabedoria e do deleite.Iracema faz 150 anos, mas nem parece.


Leia também:

1. ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS. Alencar 100 depois. Fortaleza: ACL, 1977.

2. _____________________________.José de Alencar e Euclides da Cunha. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.

3.BORGES, jorge Luis. Cinco visões pessoais. Trad. Maria Rosinda Ramos da Silva. Brasília:editora Universidade de Brasília, 2002.

4. NETO, Lira. O inimigo do rei: uma biografia de José de Alencar, ou, a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava Dom Pedro II e acabou inventando o Brasil. São Paulo: Globo, 2006.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

PARA VER O MAR

Antonio Conselheiro (1830 - 1897) profetizou: “o mar vai virar sertão, o sertão vai virar mar”. Enquanto as geleiras não derretem totalmente e o aquecimento global não transforma em realidade, de uma vez por todas, as palavras do velho beato; os governos e grande parcela da população mundial vão se esforçando para alcançar tal objetivo. Algumas cidades brasileiras, no entanto, ainda guardam estreitos laços com “as coisas do mar”. Entre tantas, Fortaleza se destaca pela beleza da sua costa, com um mar que a cada santo (ou profano) dia está a nos encher os olhos e coração.

É também verdade que muitos ignoram a riqueza que nos bate à porta. Quantas vezes saímos de casa simplesmente para ver o mar? Mas há de se dizer: é tudo tão caro. Tudo pela hora da morte. Mas, o mar. Ah, o mar! Dorival Caymmi sabia das coisas. Como sabia! E o mar, em Fortaleza, é bem ali. É bem perto. O mar nosso de cada dia ou de cada noite, se assim o preferirmos.

Mas Fortaleza, como diz o escritor Pedro Salgueiro, é “uma loirinha desmiolada pelo sol” (as reprimendas politicamente corretas acerca da referida expressão deverão ser encaminhadas diretamente ao Pedro Salgueiro, autor de Dos valores do inimigo, de 2005), carecendo, a nosso ver, se compreender, ressignificar, e se abrir para si mesma ao mesmo tempo em que se abre para o mundo. É claro que isso não é tão fácil, tendo em vista ainda sermos um povo pra lá de provinciano. Alguns artistas, no entanto, têm tentado romper esse ciclo de mediocridade e mesmice que assola nossa terrinha, banhada desde sempre por nossos “verdes mares bravios”. E é assim que, por vários cantos da cidade a qual alguns querem transformar em uma espécie de Dismaland de estacionamentos, binários e viadutos; temos tido a oportunidade de ver inúmeras intervenções artísticas a nos chamar a atenção para a necessidade e o direito do ser humano à arte. São frases, pinturas, grafites, instalações e colagens a nos alertar sobre a manutenção da beleza, da luta e da vida.

Uma dessas intervenções mais recentes ocorreu em um belo sábado, dia 25 de julho de 2015. Onde? Bem perto do mar. Com atenção, dava até pra ouvir Ednardo cantar “Longarinas” ou “Terral”, e Belchior entoar “Mucuripe”. Foi bem ali, lado a lado com o mar, do aterro da Praia de Iracema ao Mucuripe. Era a execução do “Para ver o mar”, projeto coletivo de artistas com o objetivo de atrair a atenção dos fortalezenses (mas não só deles) para a urgente necessidade da preservação das coisas e dos povos do mar. Na composição do coletivo, os artistas Narcélio Grud, Maíra Ortins e Diego de Santos. A programação do evento, conforme divulgada pela imprensa, constitui-se basicamente de cinco ações: A primeira, “Birutas”, a cargo do artista Narcélio Grud, resultou na obra “Afago a Leonilson”. 

A segunda ação, provavelmente o ponto alto do evento, também executada pelo mesmo Grud, culminou na pintura do Mara Hope, navio ancorado na Praia de Iracema desde 1984, e que já se revela e se mantém na memória do fortalezense como uma espécie de ícone da cidade. A terceira ação ficou por conta da artista visual Maíra Ortins, a qual montou uma instalação aquática com boias de sinalização para embarcações. 

As paredes da histórica Igreja São Pedro dos Pescadores foram utilizadas para a projeção de imagens (uma vídeo-instalação) do ir-e-vir das marés, ação também coordenada por Ortins. A quinta e última ação, denominou-se de “Poema 193” e ficou por conta de Diego de Santos, o qual ocupou com suas conchas prenhes de luz, o cemitério de embarcações do Mucuripe.

A proposta efetivada pelo coletivo de artistas resultou, como forma de registro e divulgação, em um livro intitulado Para ver o mar, publicado em 2015, pela Expressão Gráfica e Editora, de Fortaleza, tendo sido organizado por Maíra Ortins. Em “Para ver o/do mar”, texto integrante do referido trabalho, o professor Herbert Rolim, curador do projeto, nos chama atenção para o que Miwon Kwon (1997) denomina de site-oriented, ou seja, afirma ele:

(...) mais do que as obras de Maíra Ortins, Narcélio Grud e Diego de Santos, devemos ter em mente os espaços relacionais de encontros, institucionais de palestras e oficinas, virtuais de compartilhamento de ideias e opiniões, midiáticos de informação e registro, e impressos de leitura e reflexão (...). (ROLIM, 2015:35)

E é a partir do livro que temos em mãos que, comentamos o projeto “Para ver o mar”, não cabendo a nós nenhuma análise crítica em relação à qualidade, execução ou resultados das ações desenvolvidas durante o Projeto, o qual consideramos de extrema relevância; desejando que se mantenha como uma espécie de work in progress na agenda cultural da cidade.

O livro, como já mencionado, é um registro impresso que deve nos servir como leitura e reflexão para ações futuras. Assim sendo, ele é responsável por trazer as impressões e os posicionamentos dos membros do coletivo acerca de ações de intervenção cultural, diálogos da arte com a cidade e com o povo, o projeto em si, bem como outros olhares que podem se dar tanto da terra para o mar, quanto do mar para a terra. Assim sendo, a apresentação do trabalho ficou por conta do fotógrafo Silas de Paula (p. 3-4). Na sequência, “Pensar imagens, pensando paisagens” (p. 7-11), de Maíra Ortins. 

Se uma das intenções do Projeto era prover uma maior aproximação da arte com o público e, logo, do público com a arte, nos chama a atenção o título do trabalho ter sido grafado formalmente como "Para ver o mar", quando, a nosso ver, poderia ter sido nomeado de "Pra ver o mar". Buscou-se uma interação entre povo e arte, mas o povo dificilmente se vê representado pelas exigências da língua culta. Isso, no entanto, é apenas uma observação ligada ao Discurso e à Sociolinguística, a qual não temos a intenção de aprofundar aqui.

 O texto mais amplo do livro (p. 17-35) ficou por conta do curador do Projeto, o artista e professor do IFCE, Herbert Rolim. Seu texto recebeu o nome de “Para ver o/do mar” que, apesar da exiguidade de espaço, nos presenteia com uma belíssima análise do que antecede e sustenta teoricamente o projeto do qual foi curador. Em poucas páginas, o autor de Arte anfíbia: o caso Otacílio de Azevedo (2009) e Salão de Abril: De casa para o mundo, do mundo para a casa (2010) situa e orienta o leitor acerca do contexto histórico-cultural no qual se insere a arte urbana, assim como sua relação com outros movimentos artísticos. Para tanto, sempre que necessário, Rolim recua e avança no tempo, tecendo sua análise recorrendo a referências mundiais, nacionais e locais; sem se descuidar de embasar teoricamente tudo aquilo que afirma.

O texto do arquiteto Lucas Razzoline ocupa as páginas 56, 57 e 58. Seu texto denomina-se “Artes e desastres: a cultura é inimiga da história?”. A pergunta proposta por Razzoline no título do seu trabalho se multiplica em inúmeras outras ao longo das três páginas que ocupa, forçando o leitor (artista ou não) a perceber a necessidade do constante questionamento na constituição da cultura contemporânea. Razzoline merecia mais espaço, tendo em vista a relevância e atualidade daquilo que iniciou como discussão. 

A crônica de Henrique Araújo fecha o livro com a leveza que se espera de uma boa crônica. Ressaltamos aqui a opinião do autor de que Fortaleza não é uma cidade plana, mas inclinada. Em seu texto “A cor do mar” (p.62-63), o cronista afirma que “é errado supor que Fortaleza é uma cidade plana. Fortaleza é inclinada, como um escorregador cujo pouso não é a terra, mas a água. Cidade-barco”.  Será?

Todos os textos do livro também estão “traduzidos” para o Inglês. Contudo, eis o ponto deficitário do trabalho, uma vez que as traduções para a língua inglesa contém erros grosseiros e primários. Sugere-se, assim, que as próximas edições desse trabalho tenham seus textos retraduzidos, e que a revisão para a língua inglesa seja devidamente refeita, para que se mantenha a boa qualidade dos textos, independentemente do idioma. No que diz respeito aos “anexos”, os dados biográficos e currículos de todos os membros do Projeto podem ser conferidos nas páginas 66 até 76. Os registros fotográficos das intervenções, por sua vez, ocupam as páginas 77-87.

Projetos como “Para ver o mar” são cada vez mais necessários, devendo fazer parte da agenda cultural das cidades, sejam elas pequenas ou grandes. Os entraves e dificuldades são sempre em maior número que “facilidades”, uma vez que há sempre algum sujeito mesquinho querendo impedir o homem de entrar em contato com o mar. Eles não sabem, no entanto, que desejam o impossível.

 Boa leitura!


Para saber mais:
http://www.paraveromar.wordpress.com
http://www.mairaortins.wordpress.com

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

RACHEL DE QUEIROZ E XOSÉ NEIRA VILAS: TERRAS, PALAVRAS E MAR

Rachel de Queiroz
Em tempos em que se discutem novas definições para o que até então temos compreendido pelo termo “fronteira”, a literatura tem atravessado mundos e feito travessias que acabam por aproximar aquilo que por muito tempo se acreditou distantes e inaproximáveis. Nesse ínterim, os estudos pós-coloniais contribuíram para que muitos autores, antes “limitados” a um determinado espaço geográfico-cultural, pudessem ser lidos e apreciados além das suas fronteiras. É claro que isso demandou muito tempo, empoderamentos e estudos, para que se percebesse que todo e qualquer cânone literário não é capaz de dar conta da diversidade de obras e autores existentes.

Xosé Neira Vilas
Por muito tempo seria impensável a existência de um cânone que não contemplasse autores outros que não Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe etc. Mulheres, negros, gays, latinos e outras minorias? Nem pensar. O cânone era necessariamente masculino, branco e europeu. Contudo, os deslocamentos sociais e as narrativas resultantes das diásporas e das novas compreensões culturais e políticas empurraram o mundo literário para fora da sua zona de conforto. Se antes o sertão, por exemplo, era apenas uma definição para  algo “local”; da noite para o dia ele se tornou mundial, não cabendo mais, para qualquer que seja o autor ou a obra, a definição de local ou regional. Tudo o que é produzido hoje está, de uma forma ou de outra, arraigado (ou conectado) no âmago do universal.

O advento da literatura comparada contribuiu em muito para a aproximação das diversas formas de arte. Se no inicio a literatura comparada era, como afirma Tânia Carvalhal (1992), uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas, com o passar do tempo percebeu-se que o bojo dos “estudos literários comparados” era muito mais amplo, tendo-se não apenas a literatura como objeto de análise, mas a literatura e suas relações com outras formas de arte.

Cleudene Aragão
 No Brasil, no entanto, o que tem sido mais recorrente é a análise comparativa entre duas (ou mais) obras literarias, observando o que essas obras trazem em comum entre si ou ainda naquilo que as distancia. Assim, nos chama especial atenção o trabalho escrito pela professora Cleudene de Oliveira Aragão, quando coloca em análise os trabalhos da escritora cearense Rachel de Queiroz (1910 - 2003), lado a lado com as obras do ficcionista galego Xosé Neira Vilas.

Vencedor do Prêmio Osmundo Pontes de Literatura, de 2011, o ensaio Rachel de Queiroz e Xosé Neira Vilas: Vidas feitas de terras e palavras (2012) é um bom exemplo daquilo que pode a literatura comparada. 

Ao discorrer sobre o trabalho de Aragão, Angela Gutiérrez afirma:

Em seu ensaio, construído dentro do melhor uso da teoria e dos instrumentos dos estudos de literatura comparada, a pesquisadora cearense analisa, a partir do delineamento das duas entidades geográficas e culturais – Hispania e Terra Brasilis -, as semelhanças possíveis e as diferenças complementares entre as nações literárias dos dois ficcionistas, representadas pela imagem do quebra-cabeça Brasil, formado por suas regiões distintas, entre elas, o Nordeste de Rachel; e do mosaico Espanha, composto por diferentes comunidades lingüísticas desse país, entre elas, a Galícia de Xosé. (GUTIÉRREZ apud ARAGÃO, 2012: 12)


A respeito do seu trabalho, Aragão afirma:

Rachel de Queiroz e Xosé Neira Vilas, no conjunto de suas obras, brindam-nos com inúmeras possibilidades de análise. Um estudo comparativo de sua produção literária revela grandes pontos de encontro entre as culturas de que são incontestáveis transmissores, permitindo-nos, através dessa comparação, conhecer melhor tanto o Ceará, a Galícia, quanto outras terras (...). (ARAGÃO, 2012:23)

O trabalho de Aragão (2012), por meio dos fabuladores, sejam eles sedentários, migrantes ou artífices, objetiva uma aproximação das obras O Quinze (1930) e Dôra Doralina (1975), de Rachel de Queiroz, com Memorias Dun Neno Labrego (1961) e Querido Tomás (1980), de Xosé Neira Vilas. E assim sendo, de forma magistral, a ensaísta transforma o Atlântico em uma ponte a unir o Ceará e a Galícia por meio de uma literatura que é  toda ela feita de terras e palavras.

O livro se organiza, então, em três grandes capítulos. O primeiro denomina-se de “testemunhas de seu tempo e de seu povo: a cearense Rachel de Queiroz e o Galego Xosé Neira Vilas” (p. 25 – 97), enquanto o segundo chama-se “Vidas feitas de terra e palavra: O Quinze e Memorias Dun Neno Labrego (p.99 – 153). O capitulo terceiro, por sua vez, denomina-se de “Vidas feitas de terra, mar e palavra (p. 155 – 199). O trabalho ainda é enriquecido com imagens dos autores e reprodução das capas das obras analisadas (p. 237 – 241).

Para aqueles interessados nos estudos de literatura comparada ou nos trabalhos de um dos dois autores (de lá ou de cá), o atlântico não constitui mais obstáculo para a apreensão das suas literaturas, uma vez que o ensaio de Cleudene Aragão possibilitou essa desejada aproximação. No mais, é mergulhar no texto e comemorar a eliminação de mais uma fronteira.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

LÁPIS BRANCO: A POESIA DE CARLOS NÓBREGA

O mundo parece estar em marcha acelerada a caminho do caos. A humanidade não deu certo. Nada parece ser mais natural do que a morte anunciada do planeta. E, por mais que falemos de amor, de gentileza ou de paz; parece que falamos sempre da boca pra fora. Poucos são aqueles que pensam o mundo a partir do bem comum, mas apenas neles próprios como se tudo na vida se desse de maneira individualizada.

Nesse torvelinho da miséria humana, picadeiro de circo de horrores, o ser humano tem abandonado tudo em busca do nada. Mas um nada vazio destituído de qualquer valoração existencial. Um nada às avessas daquele nada hemingwayniano. No âmbito da sociedade espetaculosa, está cada vez mais difícil encontrar um lugar limpo e bem iluminado onde se possa sentar, beber e ver o mundo passar.

No meio desse tudo nadificado, a Poesia se mantém como uma forma de imposição aos ditames do efêmero. Impávida e antropofágica, a poesia captura o entorno; transformando o que há naquilo que o poeta sente. Em tempos de vaguidão moral e ressignificação da arte, a poesia precisa ser um farol a servir de balizadora para aqueles que ainda anseiam por apreender o que as palavras podem dizer. Nesse contexto, convém atentarmos para as palavras poéticas de Carlos Nóbrega, poeta cearense que tem a responsabilidade de trilhar os caminhos percorridos por mestres como José Albano (1882 – 1923), Francisco Carvalho (1927 – 2013), Otacílio de Azevedo (1892 – 1978) e Jáder de Carvalho (1901 – 1985).

A poesia de Carlos Nóbrega se espalha (e se espraia) por vários livros, contemplados com diversos prêmios em nível nacional. Dentre tantos de seus trabalhos, nos chama atenção o seu Lápis Branco (2012), publicado pela editora Penalux, de Guaratinguetá. Como afirma o próprio autor, na página 114, o livro deveria se chamar “Grifo Meu” (título do poema p. 69). Contudo foi alertado para presença do cacófato “fomeu”, o que, convenhamos, mata qualquer coisa, principalmente livros. A partir daí, o poeta desistiu de grifar o que quer que fosse, optando por batizar seu rebento de Lápis Branco. 

Para Nóbrega, o título “lápis branco” assumiria um caráter de neutralidade, remetendo a um grande silêncio sobre a página branca. Trata-se, certamente, daquele momento de confronto entre o autor e o branco da página (ou a tela do computador), quando do esforço para se parir o primeiro parágrafo (na prosa) ou o primeiro verso do poema. E aqui concordamos com o autor, uma vez que “grifo meu”, mesmo excetuando-se o cacófato, teria sido um título pra lá de medonho. Lápis Branco, no entanto, além de trazer em si a ideia do embate entre autor e a esfíngica página branca no momento da criação, também abre para a possibilidade de se compreender que por sobre o branco, inúmeras outras cores e diferentes matizes podem ser observados, haja vista o que nos diz Darcy Damasceno (1922 - 1988) acerca dos seus trabalhos sobre as cores na poesia de Cecília Meireles (1901 - 1964).  Assim sendo, não podemos concordar com o autor acerca da possível neutralidade do título. Se assim o fosse, tal neutralidade poderia incindir sobre uma suposta neutralidade da própria poesia, o que não é aceitável, uma vez que nenhuma forma de expressão artística é neutra. Ao contrário, a arte, e em específico a Literatura, deve estar comprometida com o sujeito e com as transformações necessárias ao meio que nos circunda.

No que diz respeito à estrutura de Lápis Branco (2012), tem-se uma obra composta de cento e quatro poemas, os quais não seguem estruturas formais; prevalecendo a preferência pelo verso livro. Ainda no que concerne à forma, observa-se o recurso estilístico de inserir no poema uma pergunta norteadora, a qual costuma vir no verso final do texto. Quando isso se dá, o poema é, na maioria das vezes, calcado na divagação do eu lírico. Isso pode ser notado nos poemas “Companheira de viajem” (p.12), “Café” (p.15), “Flor amorosa” (p.17), “Sobre o 3:19 do Gênesis” (p.20), “Quem” (p.31) e “19/08/2012” (p.68).

 Os conteúdos a partir dos quais se constitui a matéria poética do autor de Árvore de manivelas (2007) abarcam temáticas as mais variadas. Assim sendo, o poeta provoca intertextualidades com outros autores, quando revisita temas caros à poesia universal. Um exemplo é quando intitula de “Fumo” seu poema da página 13, remetendo o leitor, obrigatoriamente, para a poesia de Florbela Espanca (1894 -1930). Outras aproximações de dão, por exemplo, em “Flor amorosa” (p.17), quando o poema se estrutura a partir da letra de mesmo nome, escrita por Catulo da Paixão Cearense (1863 - 1946) para a música de Joaquim Antonio da Silva Callado Júnior, um dos pais do Choro, (1848 - 1880). No referido poema, Nóbrega afirma que a música “Flor amorosa” é de autoria de Catulo da Paixão Cearense. O poeta corrige a informação em “Por último” (p.114).


Poetas diferentes em tempos diferentes poetizam sobre temas semelhantes, uma vez que determinadas temáticas, por sua simbiose com a condição humana, se mostram tanto universais quanto atemporais. Dessa forma, surgem do lápis branco do poeta, e brotam no vazio da página, temas como a memória (p.24, p.41, p.49, p.65, p.83, p.99, p.103), a água (p.42, p.57, p.72, p.84, p.111), o mar (p.66, p.67) a língua portuguesa (p.46, p.69), a metapoesia (p.28, p.62, p.71, p.81, p.105, p.112, p.113), o cotidiano (p.75, p.95), a morte/os mortos (p.21, p. 24, p.37, p.52, p.53, p.54, p.65, p.82, p.88, p.89, p.90, p.92, p.96, p.109), o crescimento urbano (p.14), o tempo (p.16, p.58, p.68), as coisas comuns/os objetos (p.22, p.25, p.26), o olhar (p.22, p.61, p.82), espaços (p.43, p.44, p.45, p.47, p.48, p.51, p.106), mulher (p. 52, p.56, p.63), religiosidade/fé (p.58, p.59, p.60), amor/sexo (p.77, p.78, p.80, p. 104). Além desses, observamos ainda “insônia”, “vida”, “depressão”, “tristeza” e “dor”; entre inúmeros outros.

Mas se me perguntarem, afinal, do que tratam os poemas de Carlos Nóbrega, não saberia dizer. Por qual razão? Ora, um poema sempre fala de outra coisa.

Boa leitura!



domingo, 30 de agosto de 2015

FINN'S HOTEL

James Joyce (1882 – 1941) é uma incógnita. Embora sua obra esteja “finalizada”, tem-se sempre a impressão de que mais cedo ou mais tarde um novo manuscrito será encontrado em um eterno work in progress.  

A editora Companhia das Letras acaba de publicar, no Brasil, Finn’s Hotel (2014), trabalho até então considerado como “o livro perdido de James Joyce”. Sobre essa obra, convém ressaltarmos a apresentação que  traz a edição brasileira na sua “orelha” esquerda:


No início dos anos 1990, o surgimento de um manuscrito causou alvoroço entre os estudiosos de James Joyce. Encontrado em meio a seus papeis e anotações, Finn’s Hotel foi anunciado como embrião daquele que seria o mais enigmático dos livros do irlandês, o gargantuesco e caudaloso Finnegans Wake. Todavia, uma longa briga judicial privou os leitores do acesso ao texto. Apenas agora, mais de duas décadas depois de sua aparição, é que Finn’s Hotel chega às mãos dos fãs de Joyce.
Se Finnegans Wake é um dos escritos mais herméticos de toda a literatura universal, este Finn’s Hotel é um presente aos leitores que tanto o aguardaram. Claro e acessível, é composto de dez pequenos contos, na verdade, quase fábulas, sobre a história da Irlanda.

Não se sabe ao certo quais eram as intenções de Joyce com o manuscrito, nem se essas histórias de fato compõem uma versão anterior de Finnegans Wake. Ainda assim, estão lá Humphrey Chimpdem Earwicker, protagonista do Wake, e um esboço inicial da magnifica carta de Anna Lívia Plurabelle, uma das peças mais belas da língua inglesa.


A referida edição foi traduzida para o português por Caetano W. Galindo. Traz uma nota do tradutor (pp. 7 – 15) e dois textos introdutórios. O primeiro é de Danis Rose (pp. 17 – 31), e o segundo é de Seamus Deane (pp. 32 – 51). Os textos (contos ou fábulas) de Finn’s Hotel são intitulados e listados da seguinte forma: 1.  “A tintinjoss de Irlanda” (p. 57); 2. “Bondade com peixinhos” (p. 61); 3. “Uma história de um tonel” (p.65); 4. “seus encantos dela” (p.69); 5. “O grande beijo” (p.75); 6. “Bordões da memória” (p.85); 7. “Firmamente ao estrelato”; 8. “A casa dos cem cascos”; 9. “Homem comum enfim” (p.105); 10. “Eis que te carto” (p. 115).
A referida edição também traz em anexo o texto Giacomo Joyce (p. 129 – 153). Sobre esse texto, o tradutor afirma:


(...) é um grande prazer poder lançar junto com este Hotel uma nova tradução de Giacomo Joyce, texto bem mais conhecido, que estaria para o Ulysses mais ou menos como seu irmão aqui presente está para o Finnegans Wake.
Mas com uma grande diferença: Giacomo Joyce também nunca foi publicado por Joyce. A primeira edição, aos cuidados de seu biógrafo Richard Ellmann, apareceu apenas em 1968. Mas seu estatuto como obra independente e concluída é um bocado mais claro que o de Finn’s Hotel, pois as oito folhas (frente e verso) que compõem seu texto foram encontradas quando seu irmão organizava a biblioteca que Joyce deixara em Trieste (...). (GALINDO, 2014: 12 – 13)




Para alguns pesquisadores, Finn’s Hotel pode ser compreendido como o preenchimento da lacuna existente entre o Ulysses e o Finnegans Wake. Para outros, no entanto, trata-se de uma obra que se sustenta por conta própria, ou seja, é independente, podendo, no entanto, servir como uma introdução aos temas e personagens do Finnegans Wake. As pequenas fábulas (ou “epiquetos”, como criara Joyce) estão diretamente relacionadas a momentos tanto da história quanto da mitologia da Irlanda. Os referidos epiquetos dão conta do primeiro milênio e meio após a chegada de São Patrício à Irlanda. Conforme Rose, Joyce teria escrito os textos que compõem o Finn’s Hotel no ano de 1923, ou seja, seis meses após concluir o Ulysses e bem antes de conceber o Finnegans Wake.

Sobre a constituição das fábulas presentes no texto em questão, Danis Rose afirma que:


Os episódios de Finn’s Hotel são escritos numa diversidade única de estilos e quase totalmente num inglês normal. Considerados em conjunto, eles formam o verdadeiro (e até aqui desconhecido) precursor do Wake. Joyce compôs os episódios um a um, revisando alguns deles, deixando alguns em esboço, antes de finalmente coloca-los de lado. E ali restaram, praticamente esquecidos, alguns por dezesseis anos (até ele saquear aquele guarda-roupa em busca de material para as últimas seções do Wake a serem escritas), e alguns para sempre, ou seja, até agora. Só um único episódio, a peça referente ao pai (“Homem comum enfim”), se destacou. Perto do fim de 1923, ao pensar sobre ele Joyce viu ali uma abertura, uma linha de desenvolvimento literário que podia seguir e expandir em seu épico irlandês (em oposição ao seu épico de Dublin), o Finnegans Wake. (ROSE, 2014: 20-21)


James Joyce
Dessa forma, Finn’s Hotel é, ao mesmo tempo, tanto uma continuação do Ulysses, quanto uma introdução ao Finnegans Wake. E embora determinados estudiosos afirmem que Finn’s Hotel é de leitura fácil e acessível, não conseguimos, por nossas leituras, comprovar tais assertivas. Por nosso lado, por tratar-se de uma obra seminal, independente, e ao mesmo tempo estar intimamente conectada com as outras grandes obras do autor irlandês, isso não a caracteriza como fácil ou acessível ao leitor não especialista em Joyce. 

Logo, para quem não leu (ou leu e não entendeu) o Ulysses ou o Finnegans Wake, de muito pouco ou quase nada servirá a leitura de Finn’s Hotel. Contudo, sempre é tempo de desbravar grandes obras. E assim sendo, o trabalho de James Joyce, tal qual a Esfinge, continua aguardando quem o decifre. Ao determinado leitor, boa sorte.


Mais: http://www.theguardian.com/books/2013/jun/14/james-joyce-collection-published?CMP=share_btn_tw



sábado, 15 de agosto de 2015

AS ANDORINHAS, DE PAULINA CHIZIANE

No Brasil há um velho ditado que diz que “uma andorinha só não faz verão”. O ditado não diz, no entanto, que uma andorinha só não possa começar um verão. A andorinha, conforme dizem os dicionários, é uma ave pequena, migratória, de asas longas e pontiagudas, que vive em bandos e se alimenta de insetos. Como todo conceito é ao mesmo tempo delimitador e limitador, uma andorinha é isso, mas não apenas isso. Na dúvida, é só nos atermos ao livro As andorinhas, de Paulina Chiziane, publicado no Brasil em 2013, pela editora Nandyala, de Belo Horizonte.

Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze (Moçambique), e é autora de inúmeros trabalhos literários, tendo sido a primeira mulher moçambicana a escrever um romance. No caso, Balada de amor ao vento, de 1990. Autora premiada, Chiziane tem vários dos seus trabalhos nos Estados Unidos, Europa, no Brasil e em Cuba; por exemplo. As temáticas exploradas por Chiziane na sua obra não se apartam da sua história de militante política em Moçambique, nem da sua luta pela emancipação da mulher. Em termos bem gerais, a temática maior recorrente na obra da referida autora é a própria condição humana no que diz respeitos aos avanços, entraves e reveses que estão na constituição do homem do século XX.

Da obra de Paulina Chiziane, elencamos ventos do apocalipse (1992), O sétimo juramento (2000), Niketche (2002), O alegre encanto da perdiz (2008), As heroínas sem nome (2008), em parceria com a escritora angolana Dya Kassembe; As andorinhas (2009), Quero ser alguém (2010), Mão de Deus (2012), coprodução com Maria do Carmo da Silva; Por quem vibram os tambores do além (2013) e Eu, mulher... por uma nova visão do mundo(2013), entre outros.



Embora Moçambique não seja tão longe, a literatura de Paulina Chiziane ainda não alcançou, no Brasil, o mesmo “status” que tem alcançado os trabalhos de Pepetela, José Eduardo Agualusa e Mia Couto; por exemplo. Isso, contudo, não é um problema da autora, mas nosso, leitores, que estamos nos privando do contato com obra tão relevante. Mas aos poucos, Paulina Chiziane vai chegando, vai chegando. E, como diz aquela canção de Alan Mendonça, “vou chegando, vou chegando. Trago em mim o mundo inteiro”.

Dos livros de Paulina Chiziane publicados no Brasil, nos chama especial atenção As andorinhas, obra constituída de três contos, sendo o primeiro “Quem manda aqui?”, “Maundlane, o Criador” e “Mutola”. O livro é dedicado à memória de Ricardo Chiziane, e conta, ao final, com um pequeno glossário com termos da cultura Chope. Mas não é apenas da cultura Chope e das tradições do povo africano que falam os textos de Chiziane. Ao longo das suas narrativas, é possível identificar uma escrita em consonância com o amplo espectro da cultura universal, o que põe o conto da autora, não em um patamar meramente local, como possam querer alguns, mas em um nível universal como bem permite a constituição e abertura da obra. Dessa forma, vemos surgirem na contística de Chiziane, referências à guerra de Troia, quando Matibyana, o rei dos Rongas, tal qual o famoso cavalo de Troia, se insere nos domínios do imperador, causando-lhe a derrocada (p.34). As narrativas de As andorinhas são recheadas de referências bíblicas quando, por exemplo, tem-se: “Nguyuza, por que me abandonaste” (p.37), “Faz o ato de contrição e se arrepende (p.37), “... e num barco que caminhou sobre as águas divinas” (p.41), “... de um homem que não morre” (p.42), “De repente, ressuscitou” (p.42); entre outros. Como não lembrar Encontro em Samarra (1963), de John O’Hara, quando lemos: “Vou partir. Para onde? Para um lugar onde a maldição não me alcance” (p.42). E ainda em “O que diferencia aqui e além é a leveza e o peso” (p.75), identificam-se na mesma frase referências à primeira parte do romance A insustentável leveza do ser (1984 ), de Milan Kundera, denominada de “a leveza e o peso”; bem como à primeira proposta “Leveza”, constante das Seis propostas para o próximo milênio (1990), de Italo Calvino (1923 – 1985).


O conto “Quem manda aqui?” (p.9 – 44) já é, a partir do próprio título, um indicativo da figura do imperador que, mesmo tendo o poder de Ngungunhar todos os homens e todas as mulheres do planeta, não sabia que poderia ser ridicularizado, humilhado e destituído do seu trono a partir de uma caganita que uma andorinha resolvera mandar direto no seu olho. A narrativa desenvolvida por Chiziane toma por base a história de Gaza, atual Moçambique, quando esteve sob o reinado do ditador  Frederico Gungunhana (1850 – 1906), cognominado o Leão de Gaza. O reinado de Mundugazi, o Ngungunhana durou de 1884 a 1895, quando foi destituído e feito prisioneiro por Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque (1855 – 1902). O desejo do imperador de se vingar de todas as andorinhas, mantendo-as em silêncio ou exterminando-as é o leitmotiv metafórico que conduz a referida narrativa. O povo chope, tal qual simples andorinhas consegue fazer o verão que até então se acreditava impossível.

“Maundlane, o Criador” (p.45 – 88), por sua vez, tem como figura principal Eduardo Chivambo Mondlane (1920 – 1969), um dos fundadores e primeiro presidente da FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique, grupo do qual a própria Chiziane fez parte, e que lutou pela libertação de Moçambique do domínio português. Em meio às galinhas, Chitlango se assume águia e decide que deve “perseguir a primavera como todas as andorinhas”, pois sabe que “o ser humano não tem asas, mas voa, e a mente foi feita de liberdade”. Dessa forma, a autora conta a história do herói moçambicano desde o seu nascimento, vitória, traição e morte. No que diz respeito às questões estruturais, o referido conto é longo, e a narrativa se mostra lenta e cansativa; uma vez que a autora força a mão, em uma tentativa de liricizar os fatos históricos, não pondo em prática a objetividade e brevidade requeridas quando da narrativa breve, tal qual preconizam Edgar Allan Poe (1809 – 1849) e Anton Tchekhov (1860 – 1904), por exemplo, o que não ajuda na recepção que se tem do referido conto.

O terceiro conto, denominado “Mutola” (p.89 – 95) é uma narrativa na qual Paulina Chiziane retoma a metáfora da águia e da galinha, para nos contar a história de Maria de Lurdes Mutola. A história da águia e da galinha vem da África e, possivelmente, a autora ouviu dos seus antepassados e, por sua vez, contou e recontou para outras gerações. A história da águia e da galinha nos foi também recontada por James Aggrey (1875 – 1927), bem como por Leonardo Boff no seu A águia e a galinha – uma metáfora da condição humana (1997). Na narrativa de Paulina Chiziane, a águia é a atleta moçambicana Maria de Lurdes Mutola, que se tornou campeã de atletismo, tendo sido a primeira moçambicana a conquistar uma medalha de ouro para Moçambique. Nascida em Maputo, no ano de 1972, Mutola é detentora de todos os recordes de Moçambique relativos às categorias em que concorre no atletismo. “As águias, como as andorinhas, são filhas da liberdade” (p.90).

E é assim, pautada pela simbologia da andorinha, que a liberdade perpassa a contística de Paulina Chiziane na obra em questão. No que concerne à qualidade literária, o primeiro conto consegue alcançar todos os detalhes, formais e conteudísticos, que se espera de um grande conto. Os dois contos seguintes, “perdem” no quesito estético-literário, mas ganham no quesito ético e moral; o que enriquece a literatura de Paulina Chiziane. Dessa forma, a literatura da autora de Niketche é um indicativo da boa literatura que vem de Moçambique. Como acessá-la? Simples. É só se inspirar nas andorinhas, correndo às voltas no céu. Como toda boa literatura, a de Paulina Chiziane traz em si o mundo inteiro.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

A CONQUISTA DO BRASIL

João Ramalho é uma daquelas figuras que rendem uma boa biografia. O problema, no caso de Ramalho, é que muito pouco se sabe sobre ele. Não se pode dizer inclusive seu ano de nascimento ou morte. Presume-se, afirma Vainfas, em seu Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808), publicado pela editora Objetiva em 2000, que viveu no Brasil desde 1512 e faleceu em São Paulo com idade muito provecta. Era, continua Vainfas, provavelmente um náufrago das primeiras viagens portuguesas, talvez um degredado. O interessante é que João Ramalho será, durante o período de colonização do Brasil, uma personagem de extrema relevância. Infelizmente, passamos pela escola e nunca, sequer, em momento algum, alguém fala sobre ele. João Ramalho continua sendo uma incógnita, um homem sem passado, quase um fantasma.

Recentemente, no entanto, alguns autores tem tentado buscar em personagens como João Ramalho, outras formas de ver e contar a História do Brasil. Em sua maioria, não são historiadores, mas jornalistas. O resultado está nas prateleiras das livrarias. Alguns desses trabalhos, embora bem escritos, pecam pela ausência de uma metodologia historiográfica que pode, a nosso ver, comprometer e induzir ao erro, aqueles que se limitarem apenas às suas leituras. O “romancear” dos fatos torna agradável a leitura, mas pode mascarar ou confundir o que deve ser mantido não como ficção, mas como História puramente. Nessa seara, leva vantagem a professora Mary Del Priore, por ter a possibilidade de aliar seus conhecimentos acadêmicos como historiadora à arte de contar fatos sem os ranços academicistas. Da sua pena já saíram, entre inúmeros outros trabalhos, A carne e o sangue (2002), O príncipe maldito (2006), A condessa de Barral (2008) e O castelo de papel (2013). Em 2014, Del Priore lançou Do outro lado – a história do sobrenatural e do espiritismo.

Entre os autores que tem seguido pelo caminho de Mary Del Priore, podemos citar Eduardo Bueno, Laurentino Gomes e Thales Guaracy; entre outros. Convém ressaltar que, excetuando-se Bueno, esses autores tem optado por colocar “subtítulos explicativos” em seus livros, o que constitui não apenas um diferencial, mas um chamamento para o leitor. Isso já havia sido feito por Lira Neto, quando, ao lançar a biografia de José de Alencar (1829 – 1877), a denominou de O inimigo do rei – uma biografia de José de Alencar ou a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil. A referida biografia foi lançada no ano de 2006, pela editora Globo. Desde então, algumas das obras publicadas sobre o Brasil tem trazido essa chamada, a qual nos remete tanto ao discurso do cordelista quanto ao do pícaro. E assim, nessa linha, em 2007, pela editora Planeta, Laurentino Gomes publicou: 1808Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. No ano de 2010, agora pela Nova Fronteira, Laurentino Gomes publica 1822 – Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado. Em 2013, o autor de 1808 e 1822, lança pela Globo Livros, 1889 – Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República do Brasil.

Em 2015 foi a vez de Thales Guaracy fazer uso da mesma fórmula e publicar o seu A conquista do Brasil – 1500 – 1600 – Como um caçador de homens, um padre gago e um exército exterminador transformaram a terra inóspita dos primeiros viajantes no maior país da América Latina. O livro, publicado pela editora Planeta, conta com o prefácio “Para entender o Brasil”, de Laurentino Gomes (p. 9 -11) e uma introdução do autor (p. 15 – 17); estando o livro organizado em três partes, sendo elas: “Os donos da terra (p. 27 – 109), “Palavras na areia” (p. 123 – 164) e “Berço de Sangue” (p. 173 -249). O livro se conclui com uma parte denominada de “leituras” (p. 253 – 254), onde se tem uma espécie de “referências bibliográficas”.

Já na introdução (p. 21), e ao longo do livro, nos chama a atenção às referências feitas aos relatos do padre André Thévet (1516 – 1590), uma vez que é sabido, como bem afirma a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, autora de Antropologia do Brasil – Mito, História e Etnicidade (1986), que Thévet não era confiável. Em artigo publicado na Revista Estudos Avançados da USP (www.revista.usp.br), denominado de Imagens de índios do Brasil: O século XVI. A autora afirma:

É somente a partir da década de 50 que o conhecimento do Brasil se precisará, e agora de maneiras divergentes. Teremos duas linhas divisórias básicas: uma que passa entre autores ibéricos, ligados diretamente à colonização – missionários, administradores, moradores – e autores não ibéricos ligados ao escambo, para que os índios são matéria de reflexão muito mais que de gestão; a outra que separa, nesse período de intensa luta religiosa, autores usados por protestantes de autores usados por católicos.
Nesta última categoria, temos o detestável, pedante, condescendente e – segundo o huguenote Léry – o mentiroso, franciscano André Thévet, que afirma ter visto o que não viu, ter estado onde não esteve e preenche as lacunas com fastidiosos e desconexos exemplos clássicos para cada uma das instituições descritas. Contrapondo-se a Thévet, direta ou indiretamente, temos também dois autores excepcionais que estiveram entre os Tupinambá mais ou menos na mesma época, mas em posições simétricas, um como inimigo destinado a ser comido, outro como aliado: o artilheiro do Hesse, Hans Staden, que viveu prisioneiro dos Tupinambá, e os descreve com inteligência e pragmatismo em livro publicado originalmente em 1557 que conheceu imediato sucesso – quatro edições em um ano -, e o calvinista Jean de Léry que passa alguns meses, em 1557, com os mesmos Tupinambá quando a perseguição que Villegagnon move aos huguenotes os obriga a se instalarem em terra firme (...). (CUNHA, 1990:95-96)

Ainda sobre Thévet, em nota de rodapé à citação anterior, Manuela Carneiro da Cunha afirma:

Thévet conseguiu, com tudo isso, uma consagração invejável: nomeado “cosmógrafo do rei”, conservador do “Cabinet do rei”, ou seja um museu de curiosidades, ele foi comparado por  Ronsard a Ulisses, aliás mais do que Ulisses, por ter visto e por ter escrito o que viu: “Ainsi tu as sur luy um double d’avantage, C’est que tu as plus veu, et nous a ton Voyage Escrit de ta main propre et non pas luy du sien” (apud N. Broc 1984:153). Mas Montaigne não se ilude e publica, nos seus “Canibais”, um trecho ferino provavelmente dirigido a Thévet, preferindo-lhe seu próprio informante, o normando seu empregado que havia passado de dez a doze anos na França Antártica. “Ainsi je me contente de cette information, sans m’enquérir de c eles cosmographes em disent”. (Montaigne, 1952 (1580): 233 – 234).

O livro de Guaracy toma como recorte o período que vai de 1500 até 1600. Sobre esta época, período colonial brasileiro, os dados são discordantes sobre o tamanho da população brasileira, especificamente no ano de 1500. Os números mais aceitos, conforme Oliveira (apud Fragoso e Gouvêa 2014), são os do historiador John Hemming (1978). Hemming, afirma Oliveira, tomou por base tanto as fontes quinhentistas e seiscentistas quanto criou índices de densidade populacional consoante a fertilidade e potencialidade de 28 nichos ecológicos em que dividiu o território brasileiro. Como resultado, as estimativas do referido historiador apontam para uma população de 2,4 milhões de pessoas no Brasil de 1500. Setenta anos depois, em 1570, Oliveira afirma que a população indígena era de aproximadamente 800 mil, ou seja, estava reduzida a um terço de seu volume demográfico do início do século XVI. Em função dessa violenta redução populacional, o pesquisador afirma que o termo descoberta tem sido evitado por estudiosos contemporâneos, como Hemming (1978) e Todorov (1983), por exemplo, que preferem falar em “conquista”, enquanto Marcílio (2000) fala em “holocausto”. Por nosso turno, “extermínio”.

Thales Guaracy, assim como John Hemming em Ouro vermelho- A conquista dos índios brasileiros (2007) e Tzvetan Todorov, em A conquista da América – A questão do outro (2010), opta pelo termo “conquista”. No seu recorte, João Ramalho, o homem sem passado, é o caçador de homens. Manuel da Nóbrega é o padre gago e Mem de Sá é o comandante em chefe do exército exterminador dos nativos brasileiros. Ao longo de toda a narrativa de Guaracy, percebemos o desenrolar das atividades político-econômicas de interesse da Coroa Portuguesa acerca da Colônia, em aliança com a igreja católica, representada pela Companhia de Jesus, especificamente nas figuras do padre Manuel da Nóbrega e de José de Anchieta. A conquista e a dominação da terra e de todas as suas riquezas dependiam em muito da conversão dos gentios. Como nem todos os índios tinham a “síndrome de Tibiriçá”, era preciso “convencê-los”, não importando como. Escreve Anchieta, o apóstolo do Brasil:

Parece-nos agora que estão as portas abertas nesta capitania para a conversão dos gentios, se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira com que sejam postos debaixo de jugo, porque para este gênero de gente não há melhor pregação do que  espada e vara de ferro, na qual mais do que em nenhuma outra é necessário que se cumpra o compelle eos intrare”.(GUARACY, 2015: 170)


O compelle eos intrare, mencionado por Anchieta, nos remete ao que Agostinho (354 – 430) acreditava. Para ele, a fé cristã deveria ser espalhada a qualquer custo, ou seja, a igreja deveria usar o medo, a força, e até a dor para conquistar seguidores. Depois de dominados e subjugados é que estariam aptos para receber os ensinamentos divinos. Tal qual Agostinho, Anchieta faz uma leitura equivocada, mas consciente, da parábola do banquete (ou a parábola da grande ceia), conforme Lucas 14:16-24. Dessa forma, se os gentios não aceitavam o jugo pelo bem, o aceitariam pela força. E assim, o poder da Coroa, a determinação da igreja e a força do exército de Mem de Sá, fez com que em esplêndido berço de sangue surgisse o país que somos.
 E, Sabe-se lá de onde, João Ramalho gargalha, gargalha e gargalha. 
Boa leitura!


Outras leituras:

CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
__________________________. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.  

FRAGOSO, João; GOUVEIA, Maria de Fátima (Orgs). O Brasil Colonial: volume 2 (ca. 1580 – ca. 1720). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil (10 vols.). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.

MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil - um banquete no trópico. São Paulo: SENAC, 2000.

NASH, Roy. The Conquest of Brazil. New York, 1926.

SCHWARCZ, Lilia M; STARLING Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.