quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A RESISTÊNCIA AO GOLPE DE 2016

O dicionário Aurélio, edição de 2010, define golpe de estado como “subversão da ordem constitucional e tomada de poder por indivíduo ou grupo de certo modo ligados à máquina do Estado” (p.1040). Embora o Aurélio ainda não tenha acordado para a necessidade de rever conceitos como cigano, homem, negro, judeu e mulher; por exemplo, nos parece bastante acertada sua definição para a lexia “golpe”.

A definição observada no dicionário em questão, embora muitos insistam em dizer o contrário, deixa bastante claro que a deposição da presidenta Dilma Rousseff, no Brasil de 2016, constitui, sim, um golpe de estado, embora determinados membros dos diferentes poderes da República assumam o discurso insustentável de que o processo de impeachment está devidamente reconhecido na Constituição Federal. Quanto a isso não se pode discordar. Contudo, o modus operandi utilizado por parlamentares corruptos e indiciados criminalmente, para depor a presidenta eleita por mais de cinquenta e quatro milhões de votos, não apenas macula a Constituição, como  macula própria República.

O golpe de estado ocorrido no Brasil de 2016 não é criação tupiniquim. O mesmo tipo de golpe já havia ocorrido em Honduras e no Paraguai. Os donos do poder perceberam que soldados, tanques e baionetas não são mais necessários para se perpetrar golpes contra a democracia. No entanto, instrumentos de repressão e cerceamento, como conduções coercitivas, prisões ilegais, linchamentos morais e torturas psicológicas nada deixam a dever às práticas dos velhos porões da época da ditadura civil-militar, que aterrorizou o país de 1964 a 1985. Embora hoje os agentes sejam outros, os financiadores são os mesmos de ontem. Dessa forma, os golpistas de 2016 são membros do judiciário, grandes empresários, conglomerados de mídia e todos aqueles políticos insatisfeitos com as mudanças efetivadas por sucessivos governos ditos de esquerda, indesejáveis para uma elite que não suporta ver os membros das classes mais pobres ascendendo socialmente. E como não conseguem vencer democraticamente, nas urnas, resta-lhes então, a vil cretinice do golpe.


Há a retórica vazia daqueles que insistem em afirmar que as instituições continuam em pleno funcionamento. Ora, afirmar isso é tão absurdo quanto afirmar que “todos são iguais perante a lei”; o que também está lá, bela e recatadamente, na Constituição Federal. O golpe no mandato da presidenta Dilma Rousseff não é somente um golpe no mandato da presidenta Dilma Rousseff. É, na verdade, um duro golpe na jovem, porém frágil e cambaleante democracia brasileira que, a duras penas, levará muito tempo para se erguer e encontrar seu caminho rumo a sabe-se lá onde.

Por mais que os golpistas se esforcem para negar e esconder o golpe (muitos deles, na verdade, até se orgulham), o mundo entendeu que, no Brasil de 2016, o golpe é, sim, um golpe. Cientistas e intelectuais como Habermas e Chomsky já o disseram. A imprensa internacional, por sua vez, bem como as redes sociais também não deixam esquecer que a democracia brasileira ruiu. E, mesmo timidamente, já começam a surgir publicações editoriais que manterão na história a tomada de poder levada a cabo pela ferocidade das forças  reacionárias da sociedade brasileira.

Nesse sentido, destacamos a publicação do livro A resistência ao golpe de 2016, organizado por Carol Proner, Gisele Cittadino, Marcio Tenenbaum e Wilson Ramos Filho, pela editora Canal 6, em parceria com o Projeto Editorial Praxis e o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora. A publicação é de 2016 e conta com cento e três trabalhos, entre artigos e entrevistas, que discorrem acerca dos vários fios que constituem o novelo do golpe de 2016. A apresentação da obra é feita por Gisele Cittadino e, entre os vários autores, tem-se nomes como Aderbal Freire Filho, Leonardo Boff, Guilherme Boulos, Jandira Feghali, Moniz Bandeira, Miguel do Rosário, Roberto Amaral, Rubens Casara, Tarso Genro, Wadih Damous, Luiz Nassif e Mariana Souza Pereira.

O livro é bastante oportuno, uma vez, que se constitui como registro de um dos mais tristes momentos da história do Brasil (para alguns analistas, mais triste, inclusive, do que os anos de chumbo), quando o golpe parlamentar empurra o país para o abismo da ignorância, do retrocesso, do radicalismo e da intransigência e do obscurantismo; resultado um verdadeiro ataque fascista aos direitos do povo e à democracia brasileira.

Destarte, a leitura de A resistência ao golpe de 2016 se faz urgentemente necessária como forma de compreensão das causas que levaram ao golpe, os agentes envolvidos na sua elaboração e manutenção; assim como nos permite ter uma ideia dos resultados, nada animadores, daquilo que ainda está por vir.

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Link da editora: http://www.canal6editora.com.br/a-resistencia-ao-golpe-de-2016.html

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

KEITH RICHARDS: UMA VIDA ROCK 'N' ROLL


Keith Richards é uma das figuras mais importantes do século XX! É claro que afirmamos isso a partir do nosso ponto de vista, pois, para alguns (ou para muitos?), ele pode não ter nenhuma importância. Assim como para outros, também não têm importância Salvador Dalí, Pablo Picasso, Frida Khalo, Nelson Mandela ou Usain Bolt; por exemplo. Na verdade, todo ser humano, cada um a seu modo, é importante enquanto elemento constituinte da diversidade que compõe a vida no planeta Terra.

Alguns, como aqueles acima citados, acabam por se destacar de maneira a deixar seus nomes registrados na história da humanidade, fazendo o que melhor aprenderam e repassando esse aprendizado para as gerações posteriores. Certamente que nem sempre essas “gerações posteriores” conseguem perceber a dimensão humana de algumas dessas personagens, o que as torna muitas vezes, “invisíveis” a esses lassos e rasos olhos.

Aqueles que conseguem enxergar para além das falésias da mediocridade, compreendem a relevância de Keith Richards para a cultura do século XX. Se sua influência se manterá ao longo do século XXI, ainda é muito cedo para afirmar. Contudo, não é errado dizer que, enquanto se pretender falar de música, especificamente sobre o Rock, a história não estará completa se não se falar nos Rolling Stones e, obrigatoriamente, em Keith Richards.

O lendário guitarrista dos Rolling Stones parece não se render a determinadas conveniências, pois, como ele mesmo afirma em “Under the Influence” (2015), documentário dirigido por Morgan Neville, sempre esteve mais para o “Roll” do que para o “Rock”, o que, convenhamos, tem sido ao longo da vida e da carreira, sua identidade.

E é um panorama da história do homem-mito Keith Richard que nos é apresentado no livro Keith Richards: Uma vida rock’n’roll, publicado no Brasil no ano de 2013, pela Ediouro. Publicada originalmente em 2012 por Edizione White Star, a referida edição, de 207 páginas, traz o texto de Bill Milkowski, com tradução para o português brasileiro de Luis Fragoso. A edição é de Valéria Manferto de Fabrianis, enquanto o projeto gráfico ficou por conta de Paola Piacco.

Trata-se de uma belíssima edição de capa dura, ricamente ilustrada com fotos do artista ainda bebê (p.14) até os dias atuais; devidamente organizada em quatro partes, a saber: “Introdução - A importância de ser Keef” (p. 6-12); “Os anos iniciais – O garoto de Dartford encontra satisfação” (p. 13 – 44); “Na estrada com os Stones – Sucesso e encrencas pelo caminho” (p. 45 – 118) e “Uma vida dedicada ao Rock ‘n’ Roll – Depois de tantos anos, ainda nos riffs” (p. 119 – 205).

No que diz respeito ao conteúdo, quando se trata de uma figura como Keith Richards, é muito difícil não ser repetitivo, tendo em vista que determinadas informações sobre ele são indispensáveis em qualquer publicação que se pretenda minimamente abrangente. 

Assim sendo, (re)encontramos coisas como: “Keith Richards é o 4º entre os cem melhores guitarristas de todos os tempos” (p.6); e que o guitarrista não tem “nenhuma pretensão de ser imortal” (p.6), o que é engraçado, uma vez que já o é, por ser herdeiro da tradição R&B, de Howlin’ Wolf, Muddy Waters e Chuck Berry. Sobre isso, Richards afirma: “Chuck herdou isso de T-Bone Walker; eu herdei isso de Chuck, Muddy Waters, Elmore James e B. B. King. Todos nós somos membros de uma família que remonta a milhares de anos atrás. E estamos passando isso adiante” (p.8).


Além de Keith Richards: uma vida rock ‘n’ roll, sugerimos também a leitura de Vida, (2010), biografia escrita em parceria com James Fox; Traduzido por Maria Silvia Mourão, Mário Fernandes e Renato Rezende e publicada no Brasil pela editora Globo. Leituras concluídas, definitivamente não restarão dúvidas sobre a importância de ser Keef Richards.

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Veja também:


Keith Richards: Under The Influence trailer > https://www.youtube.com/watch?v=NHh24Y9LrY0

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

XVIII PRÊMIO IDEAL DE LITERATURA - PRÊMIO BARROS PINHO

Muito se tem falado a respeito do desaparecimento do livro. No trabalho intitulado Não contem com o fim do livro  (2010), publicado pela editora Record, com tradução de André Telles, Jean-Philippe de Tonnac é o responsável por coordenar uma conversa a esse respeito, entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. No bate-papo, os dois grandes autores falam do papiro ao arquivo eletrônico, abordando os cinco mil anos da história do livro, culminando no óbvio, ou seja, que as revoluções tecnológicas não acabarão com o livro. 

Recorro ao Não contem com o fim do livro, com o intuito de  apontar que embora o livro, tal qual o conhecemos hoje, esteja assumindo uma outra forma de suporte, está longe de deixar de existir. Uma prova do que afirmo é que nunca se publicou tanto mundo afora. Dentre os vários tipos de publicações, pululam por todo o Brasil, coletâneas, antologias e premiações diversas; o que acabam por impulsionar o mercado editorial, assim como dar certo destaque para novos autores. Sabemos, no entanto, que não basta publicar sem que haja um plano de divulgação, principalmente para aqueles autores que não são "grandes" ou que não são indicados por aqueles que já são "grandes". Ser um novo escritor em um país onde ainda se lê muito pouco e no qual as editoras se agarram com unhas e dentes à mesmice, ou ainda onde os clássicos não lêm os contemporâneos, nem os contemporâneos lêm os clássicos,  fica tudo muito complicado.

Alguns autores têm conseguido se destacar, quando são agraciado em premiações literárias, principalmente naquelas de relevância nacional. Muitas vezes, no entanto, as premiações se resumem à uma edição tímida e, quando envolve dinheiro, a soma é mais tímida ainda. Seria de muito bom tom que esse tipo de premiação passasse por uma repaginada, deixando de ser apenas mais uma atividade social  na agenda de um Clube, de uma associação ou de uma universidade, por exemplo, passando a ser algo de caráter mais relevante. 

Essa  questão me vem à mente, enquanto leio a mais recente edição do Prêmio Ideal de Literatura, um dos prêmios mais prestigiados no meio literário cearense. A edição em questão, de 2016, foi dedicada à poesia e recebeu o nome de "Prêmio Barros Pinho", consistindo em uma homenagem ao poeta recentemente falecido. O grande vencedor da edição deste ano foi o poeta Felipe de Abreu Fortaleza, com o poema intitulado "Somente a vida" (p. 31 - 32) . Além do primeiro colocado, quinze poetas foram agraciados com menção honrosa e trinta e três como destaques.

A comissão julgadora do referido Prêmio foi composta pelos poetas Regine Limaverde, Dimas Carvalho e Hermínia Lima. A consultoria ficou sob a responsabilidade da poetisa Aíla Sampaio, enquanto a coordenação foi feita pelo poeta, membro da Academia Cearense de Letras, Carlos Augusto Viana. A edição do XVIII Prêmio Ideal de Literatura já está devidamente publicada e em circulação. 

Embora ainda engessadas, tais premiações são necessárias para que se mantenha certa movimentação cultural, especificamente literária, nas cidades do país. Dessa forma, é possível provocar diálogos entre escritores  municipais, estaduais e federais, sem a preocupação de se saber quem tira ou deixa de tirar ouro do nariz.









segunda-feira, 15 de agosto de 2016

SONO, DE HARUKI MURAKAMI

Diferentemente de Gregor Samsa, que acorda de sonhos intranquilos, a personagem do conto Sono (2015), de Haruki Murakami, vive seus sonhos intranquilos devidamente acordada, uma vez que há dias não consegue dormir. E o conto se inicia com a narradora dizendo: "É o décimo sétimo dia em que não consigo dormir" (p.5). 

Sono, Nemuri, no original japonês, é um conto longo, de autoria do celebrado autor japonês Haruki Murakami, publicado no Brasil no ano de 2015, pela editora Objetiva, sob o selo da Alfaguara, com tradução de Lica Hashimoto e ilustrações de Kate Menschik. Com cento e dezesseis páginas, por pouco o conto não descamba para uma novela. Mas Murakami sabe muito bem o que faz, e assim mantém sua narrativa curta sob  controle, não permitindo que ela se alongue para além das dimensões e objetividades requeridas na construção de um conto.

Casada com um homem de rosto "esquisito", mãe de um garotinho, proprietária de um Honda City usado e dedicada a esporádicas braçadas na piscina do clube. É assim que o leitor é apresentado à personagem principal do conto Sono.Não há nada de errado com a personagem, a não ser o fato de não conseguir dormir. Diz ela: "Meu marido e meu filho nem sequer desconfiam que estou há dezessete dias sem dormir. Eu também não lhes disse nada" (p.12). Embora o leitor seja levado a crer que o problema da personagem seja a insônia; assim como o rosto do seu marido, a situação da personagem é tanto esquisita, quanto inqualificável. 

A leitura do conto de Murakami acaba por nos empurrar em direção à outra narrativa curta. Nesse caso, Bliss, da neozelandesa Katherine Mansfield (1888 - 1923), o que nos faz observar alguns pontos de aproximação entre ambas. Assim sendo, vejamos: A personagem de Murakami não tem nome, mas podemos ver que guarda inúmeras semelhanças e aproximações com a Bertha Young, do conto de Mansfield. Bertha tem marido e filho e, tal qual a personagem do conto em questão, parece viver num universo paralelo, indo e vindo de uma dimensão à outra. Certamente que tais similitudes não ocorrem por acaso e, muitas vezes, tem-se a impressão de que o conto de Murakami é uma narrativa dentro de outra narrativa, tendo uma personagem sem nome, "brincando" de ser Bertha Young. As semelhanças não param por aí, havendo outras pistas deixadas pelo autor ao longo do  texto. Talvez não seja à toa que a personagem de Sono tenha cursado letras - inglês na faculdade, apresentando uma monografia de conclusão de curso sobre Katherine Mansfield (p.48). 

Bliss se conclui com Bertha Young parada, em estado de contemplação, observando uma pereira em flor. Em Murakami, a personagem diz: "Quando dei por mim, eu observava uma árvore através da janela" (p.56). Mas em Sono, isso não é o fim, mas uma indicação de um rápido estado de fuga dentro de outros estados de fuga e sonolência vivenciados pela personagem. Diz ela: "Esse estado de indefinida sonolência persistia o dia todo. Minha mente estava enevoada. Era incapaz de discernir corretamente a distância, o peso e a textura dos objetos. A sensação era de que sem avisar a minha consciência se dissociava do corpo. O mundo ondulava isento de sons" (p.7). De um momento para o outro, no entanto, a personagem não consegue mais dormir e, assim, sua vida assume uma outra dinâmica, um outro sentido.

Nas noites insones, enquanto todos dormem, a personagem descobre o prazer de ler Anna Karenina (1817), acompanhada de generosas doses de conhaque. "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira"; dizem as primeiras linhas do romance de Tolstoi (1828 - 1910). Mas por qual razão essas palavras soaram tão forte aos ouvidos da narradora? Teria ela pensado no seu marido e no seu filho como exemplos de uma família (in)feliz? E o que dizer da semelhança de sua família com a de Bertha Young? Anna Karenina seguirá com a narradora por noites (e dias) a fio numa relação quase simbiôntica até o surpreendente desfecho da narrativa. 

Sono (2015), assim como Norwegian Wood (2008) e as demais obras de Murakami são como "pequenas" peças de um  imenso e respeitável work in progress literário capaz de abarcar as mais variadas temáticas, compondo um amplo leque de possíveis leituras e interpretações a partir da abertura proposta por suas narrativas, sejam elas longas ou curtas, as quais se mostram sempre em consonância com os mais profundos questionamentos do ser humano acerca da vida e da morte ou "apenas" das banalidades insólitas do cotidiano, a partir do ponto de vista de uma personagem que não consegue dormir.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

GRATIDÃO, DE OLIVER SACKS

Nenhum livro é grande por apenas ser um livro grande, mas por ser um grande livro. Trato aqui, obviamente, de qualidade e não de quantidade. Às vezes se escreve tanto, mas não se diz nada. Outras vezes, um universo é dito em tão poucas palavras. É claro que há a necessidade da dedicação aliada ao talento, que por sua vez precisa estar em consonância com a sensibilidade e com a percepção de tudo aquilo que nos circunda.

No dia a dia, costumamos desejar, cobrar e reclamar de uma pá de coisas. No entanto, raramente, somos impelidos a agradecer. A gratidão tem sido substantivo subutilizado, quando não ignorado, no universo lexical das nossas conversações. Em tempos líquidos, de comportamentos e pré-conceitos cada vez mais sólidos e tacanhos, a leitura de Gratidão (2015), de Oliver Sacks se impõe como uma daquelas leituras que não se podem guardar na cabeceira, em uma mesa ou uma prateleira que seja, por tempos sem fim. O "livrinho" de Sacks é daqueles grandes livros que nos provocakm a partir de cada uma das palavras milimetricamente pensadas para estarem exatamente onde estão, causando o impacto que faz do leitor, não mais o mesmo, mas outro.

O livro de Sacks (1933 - 2015), publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Laura Teixeira Motta (o título original é Gratitude), é composto de quatro textos que muito se aproximam do ensaio, mas que não o são na sua totalidade, tendo em vista o teor informal que os permeia. Certamente que essa questão de forma não era nem de longe a preocupação de Sacks ao se dedicar a escrever tais textos. Sua intenção, claro, era estabelecer um diálogo com a vida e com o estar-no-mundo. Estar no mundo que ele estava deixando, consumido por uma doença que o impedia de seguir. Isso é notório, quando a epígrafe escolhida para abrir o livro diz: "Agora estou face a face com a morte, mas isso não quer dizer que não quero mais nada com a vida". Os textos são "Mercúrio" (p.13 - 22), "My own life" (p. 23 - 30), "Minha tabela periódica" (p. 31 - 42) e "Shabat" (p. 43 - 60). Além dos quatro textos, a edição em questão também traz um prefácio escrito por Kate Edgar e Bill Hayes (p.9 - 11), assim como notas sobre o autor (p. 61) e algumas fotos ao logo do livro.

Os textos constantes na edição brasileira foram originalmente publicados no jornal The New York Times, como "The Joy of My Old Age" (06/07/13), "My Own Life" (19/02/15), "My Periodic Table" (24/07/15) e "Sabbath" (14/08/15). Os artigos dos quais tratamos aqui constituem os últimos escritos de Oliver Sacks, uma vez que o referido autor faleceu no final do mês de agosto de 2015. Nesses escritos, o autor discorre sobre a vida, a morte, a velhice e a doença de uma maneira pra lá de extraordinária. 

Em sua corrida contra o relógio, Sacks escreve com a determinação de quem já não tem mais nenhum tempo. "Sabbath", seu último texto foi publicado no dia 14 de agosto de 2015. Sacks morre no dia 30. Se há algo que une os últimos  textos de Oliver Sacks é exatamente a gratidão.


Em "My Own Life", ele diz: "Não consigo fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca, li, viajei, pensei, escrevi. Tive meu intercurso com o mundo, o intercurso especial dos escritores e leitores. Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal que pensa, neste belo planeta, e só isso já é um enorme privilégio e uma aventura" (p. 30).

"Sabbath", por sua vez, é tanto revelador quanto redentor. Ao concluir o texto, no auge do falecimento de suas forças, diz:
"E agora fraco, sem fôlego, os músculos antes firmes derretidos pelo câncer, encontro meus pensamentos cada vez mais, não no que se quer dizer com levar uma vida boa, que valha a pena - alcançar a sensação de paz dentro de si mesmo. Encontro meus pensamentos rumando em direção ao Shabat, o dia de descanso, o sétimo dia da semana, e talvez o sétimo dia da nossa vida também, quando podemos sentir que nosso trabalho está feito e, com a consciência em paz, descansar" (p. 58).
Os textos de Oliver Sacks, constituintes de Gratidão, são de caráter universal por abordarem questões que não são apenas do homem Oliver Sacks, mas de todo e qualquer homem em sintonia com o seu tempo, espaço e consciência da finitude da vida. Dessa forma, também se mostram perenes e atemporais pelo conteúdos e provocações que podem causar no leitor, independentemente da época da  qual seja sujeito.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

SUBMISSÃO, DE MICHEL HOUELLEBECQ

Michel Houellebecq é daqueles autores que imprimem ao seu texto o impacto necessário, para tirar o leitor da sua zona de conforto. Considerado um dos autores mais importantes da literatura francesa contemporânea, Houellebecq consegue, como poucos, caminhar pelos gêneros da poesia, do romance e do ensaio; trazendo para o centro do debate literário questionamentos culturais que, para alguns, não deveriam sair da caixinha da mesmice. Vencedor do Prêmio Goncourt, de 2010, Houellebecq já se estabeleceu no panteão da literatura universal por produzir obras como, Partículas elementares (1998), Plataforma (2001), A possibilidade de uma ilha ( 2005 ) e O mapa e o território, de 2010.

Os trabalhos de Houellebecq abordam temáticas como pornografia, aborto, clonagem e religião. Contudo, o leitor precisa ficar atento para não cair na armadilha de achar que são temas superficiais. Na verdade, o autor francês se utiliza de tais temáticas para explorar o que lhe é mais caro na narrativa. Em outras palavras, o que está na base do "iceberg  narrativo houellebecquiano" é toda uma discussão acerca da condição humana. E assim sendo, sua narrativa se constrói na base da elipse, do corte e da provocação; seja uma provocação ao homem, enquanto indivíduo, seja uma provocação ao Estado. 

Em perfeita sintonia com as questões do seu tempo, Houellebecq abarca, no contexto da sua narrativa, questionamentos que ditam os caminhos do ser humano na contemporaneidade, sem no entanto resvalar para o panfletário ou para a simplória reprodução de notícias jornalísticas requentadas. Esse, entre outros aspectos, é o que faz da prosa do romancista francês uma das mais relevantes da atualidade.

No ano de 2015, Houellebecq lançou o romance Submissão (Soumission), publicado no Brasil pela editora Objetiva, sob o selo Alfaguara e traduzido por Rosa Freire d'Aguiar. O trabalho é constituído de 251 páginas (a página 253 é dedicada aos agradecimentos que o autor faz a Agathe Novak-Lechevalier) e é calcado em uma forma narrativa que o aproxima de obras de caráter satírico e distópico. Houellebecq, no entanto, vai além de Huxley, Orwell, Burgess e Bradbury. Ao seu modo, e isso faz toda a diferença na sua obra, Houellebecq constrói uma narrativa que obriga o leitor a se questionar sobre as mutações que estão se dando na sociedade contemporânea, tanto em seus aspectos mais íntimos e individuais, quanto naqueles de caráter universal.

Organizado em cinco grandes partes, Submissão é narrado em primeira pessoa e tudo que sabemos, enquanto leitores, é o que nos conta François, um professor universitário,  narrador do romance. A narrativa é ambientada na França, no ano de 2022. Terminado o segundo turno de acirradas eleições presidenciais,  sagra-se vencedor Mohammed Ben Abbes, candidato da Fraternidade Muçulmana, constituindo-se, assim, na França, um regime islâmico, o que acarretará inúmeras mudanças político-sociais naquela sociedade.

O eixo da narrativa de Submissão se constrói a partir das primeiras reflexões acadêmicas de François, quando, como professor que é, discorre sobre os meandros do objeto de pesquisa usado por ele para a elaboração do seu trabalho de Tese, denominado de Joris-Karl Huysmans, ou a saída do túnel, defendida "numa tarde de junho de 2007... na Paris IV-Sorbone" (p.9). 

Embora se trate de um texto de ficção, o romance de Houellebecq é permeado por nomes e acontecimentos da vida real. Huysmans (1848 -1907), para ficarmos apenas em um nome, é um dos grandes autores da literatura universal. No Brasil, a Companhia  das Letras publicou, no ano de 2011, pelo selo Peguin, À rebours, (Às avessas), de 1884, traduzido por José Paulo Paes. E é a partir da tese de François e do regime político instaurado na França que Michel Houellebecq costura toda a narrativa de Submissão. E embora a palavra "submissão" dê nome ao romance, essa palavra só aparece na narrativa, primeiramente, na página 219. 

As questões que permanecem após a conclusão da leitura de Submissão vão no sentido de se perguntar: O que é submissão?, A que tipo de submissão se refere a narrativa? Como lidar com o outro? A nova realidade que se impõe aos franceses do ano de 2022 está apenas no âmbito da ficção ou é uma provocação que o autor nos faz acerca das mudanças que se dão, quando fingimos não vê-las?

Assim sendo, o romance Submissão é eivado de ambiguidades e ironias, que apontam para situações de pesadelos, medos e dúvidas; que estão postos na  compleição da condição humana e em seu assombro perante uma civilização que,em crise, tateia as gigantescas paredes do labirinto que construiu para si, buscando o fio de Ariadne que, sabemos, há muito tempo se perdeu.