domingo, 22 de junho de 2014

SEMÍRAMIS, DE ANA MIRANDA

Ana Miranda é uma das nossas melhores escritoras. Nascida em Fortaleza, Ceará, no ano de 1951, Ana cresceu em Brasília e morou por muito tempo no Rio de Janeiro e em São Paulo. Da sua pena, a literatura brasileira já foi agraciada com inúmeras obras de inestimável valor. Entre tantas: Boca do Inferno (1989), A última quimera (1995), Desmundo (1996), Dias e dias (o meu está autografado,2002) etc.


Ana Miranda também escreve poesia (Prece a uma aldeia perdida, 2004) literatura infantil (Flor do cerrado: Brasília, 2004)  e crônicas (Deus-dará. 2003), por exemplo. Contudo, ao nosso ver, é no romance que a autora melhor se mostra e se encontra. Optando por seguir pela vertente do romance histórico, Ana Miranda revê a Historia do Brasil pelo viés da literatura, aproximando História e Literatura como partes de uma mesma moeda; contradizendo posicionamentos vazios que insistem em afirmar que História e Literatura não podem caminhar juntas. Sabemos, no entanto, que a proximidade entre essas duas áreas de pesquisa remonta a um passado não tão distante, quando ambas se complementavam, constituindo um único discurso. Os referidos campos de estudo continuam complementares, embora raramente estudados em paralelo, como se distintos e alheios fossem. Sobre a vã discussão acerca da disputa inócua produzida por alguns representantes das duas áreas de conhecimento, convém ressaltarmos o que afirma Massaud Moisés (2000) acerca de Heródoto e a relação entre fato e ficção:

Heródoto, considerado o pai da História, misturava pormenores curiosos, propiciados por suas andanças, aos relatos míticos, e amparava-se tanto nas fontes escritas como na transmissão oral, não raro assumindo perante os acontecimentos, graças à liberdade inventiva (que mal permite saber onde para a verdade e onde principia a mentira), a perspectiva de um autêntico ficcionista. (MOISÉS, 2000, p. 166)


 A união entre História e ficção nada tem de recente, haja vista as narrativas épicas que objetivavam registrar os feitos heroicos de um determinado povo. Nesse caminho, têm-se entre os mais representativos poemas da literatura universal a Odisseia e a Ilíada (ambos do séc. VIII a.C), de Homero; Os Lusíadas(1572), de Camões, e Orlando Furioso(1516), de Ariosto; por exemplo.

Já no século XX, um dos pensadores que mais fez por aproximar a História da Literatura, observando seus desvelos e idiossincrasias, foi Gyorgy Lukács (1885-1971). Sobre essa questão, o filósofo húngaro publicou no ano de 1947 a obra O Romance Histórico. Tomando como eixo de análise a obra Ivanhoé (1819), de Walter Scott (1771-1832), Lukács não almeja esgotar as abordagens concernentes à História ou à Literatura, mas apontar a relação entre a realidade e a ficção; observando como a forma, o conteúdo, personagens e temáticas se interrelacionam, e com que tipo de questionamentos dialogam, levando-se em consideração o meio social no qual estão inseridos e os conflitos que possam se dar no tempo em que ocorrem.

E eis que no ano de 2014, Ana Miranda publica pela Companhia das Letras o romance Semíramis, com dedicatória a Rachel de Queiroz e epígrafe de José de Alencar. Em evento na Universidade Federal do Ceará, a autora afirmou que esse livro era uma espécie de resposta à autora de Memorial de Maria Moura (1992), quando aquela cobrou de Ana um livro sobre o Ceará. demorou um pouco, mas saiu. O romance está dividido em cinco partes e tem como objetivo principal contar a história do escritor José de Alencar desde seu nascimento até a sua maturidade intelectual, culminando no surgimento e estabilidade do escritor que plantou os pilares basilares da literatura brasileira. Para tanto, como se espera de um bom romance histórico, Ana Miranda discorre sobre os principais acontecimentos históricos que constituem o contexto político-social no qual o Brasil, o Ceará e, especificamente a família Alencar, estão inseridos.

Embora o romance receba o nome de Semíramis, é Iriana, sua irmã, quem narra toda a história. Todavia, grande parte do que nos conta Iriana é resultado do que Semíramis lhe diz. A história que lemos em Semíramis é ambientada no interior do Ceará, no Crato, na região do Cariri; no Alagadiço Novo, em Fortaleza e no Rio de janeiro. Sabemos pela boca de Iriana que Semíramis tem o dom de iludir, dizendo ou não a verdade. No que diz respeito à estrutura organizacional da referida obra, consideramos positiva  o tamanho dos capítulos. Por serem bastante curtos, tal qual já havia feito em Dias e dias (2002), Ana Miranda faz com que a leitura se dê de maneira mais fluida e rápida, o que não obstaculiza de forma alguma a apreensão da narrativa, muito pelo contrário. Outro ponto positivo na obra em questão, é a riqueza do léxico usado pela autora. Tratam-se de termos que abarcam a fauna, a flora, os hábitos do povo, bem como a culinária comuns aos rincões do sertão cearense. A pesquisa feita pela escritora demandou, certamente, muito tempo e dedicação. Convém ressaltar que a narrativa em estudo é permeada por nomes e trechos de obras de José de Alencar, constituindo uma espécie de "roteiro de leitura" e orientação historiográfica para o leitor.

No que concerne a constituição da personagem Semíramis, observamos que a autora foi buscar referências na História, quando essa nos diz que Semíramis foi a lendária rainha assíria, conhecida por sua enorme beleza e força política. A História afirma ainda, que Semíramis teria sido a idealizadora de uma das sete maravilhas do mundo antigo, os "Jardins Suspensos da Babilônia". Para os assírios, a pomba era a imagem usada como representação da sua rainha. Dizem alguns, inclusive, que essa seria a significação original do seu nome, uma vez que a mitologia afirma que ela teria sido criada por pombas e que, ao morrer, teria subido aos céus em forma de uma dessas aves. 

É relevante observar, que Ana Miranda retoma o mito e o recria na sua narrativa. Dessa forma, a Semíramis de Ana Miranda guarda em si muitas das características nobres e divinais da personagem mitológica. Dessa forma, no capítulo Arrumação do Céu (p.249), no qual trata da morte de Semíramis e sua consequente chegada ao céu, lê-se: Semíramis foi enterrada no Cemitério São João Batista, disse o padre, sua alminha alva e límpida está com os anjos. Com as as de um anjo voou para o céu em forma de pomba como a rainha antiga.

Como está dito na "orelha" de Semíramis: "a obra de Ana Miranda nasce de sua  relação pessoal com a história literária brasileira, e trabalha pela preservação do nosso tesouro linguístico". Sem tirar nem por, é tudo isso que se deduz com a leitura da mais recente narrativa de Ana Miranda, eivada de beleza e poesia. Que venha o próximo!

terça-feira, 10 de junho de 2014

UMA MARQUESA ENTRE SANTOS, COISAS E DEMÔNIOS

Quanto perguntado da possibilidade de publicar as inúmeras cartas que trocou com o amigo  Godofredo Rangel (1884 - 1951), Monteiro Lobato (1882 - 1948) afirmou: "carta não é literatura". Passado certo tempo, o gênero "carta" passou a ser visto com outros olhos, propiciando estudos capazes de  contribuir para a compreensão de épocas, obras e personagens históricos. No entanto, não discorreremos aqui sobre a volumosa correspondência de Lobato, mas fazemos uso da sua afirmação apenas para introduzir os breves comentários que faremos sobre as obras Titília e  o Demonão - Cartas inéditas de D. Pedro I à Marquesa de Santos 2011) Domitila - A verdadeira história da marquesa de Santos (2012), de autoria do historiador Paulo Rezzutti.

O interesse pelos livros de Rezzutti, nasce do nosso interesse pelos trabalhos que tratam do período do primeiro império no Brasil, especialmente aqueles que abordam os personagens "periféricos" ou seja, aqueles homens e mulheres que, mesmo não estando à frente nas tomadas de decisões, estavam nas imediações do poder, influenciando as cabeças coroadas. Entre os trabalhos que nos chamam bastante atenção, estão dois do escritor Alberto Rangel (1871 - 1945). São eles: Dom Pedro I e a Marquesa de Santos (1969) e Cartas de Dom Pedro I à Marquesa de Santos ( 1984). O primeiro trabalho foi publicado pela primeira vez no ano de 1916, conforme nota à 3ª edição, pela Livraria Francisco Alves, impressa em Tours, assim como a segunda edição saída em 1928. A nota à edição que possuímos ( a 3ª, de 1969), não mente ao dizer que a referida obra de Alberto Rangel constitui fonte obrigatória para os que pretendem conhecer nos detalhes verídicos os passos do nosso primeiro imperador e da sua favorita. Aqui está, pois, continua a nota, a figura discutida de Domitila de Castro e Melo, depois Marquesa de Santos, a brasileira que foi o grande amor do Monarca e tantas vezes o inspirou.

O segundo livro de Alberto Rangel, por sua vez, traz um compilação de cartas de Dom Pedro I à Marquesa de Santos. Antes da publicação do referido trabalho houve uma primeira publicação de um conjunto de cartas de Dom pedro I à Domitila de Castro. Ao apontar os critérios da edição de 1984, Emanuel Araújo afirma que o organizador da primeira edição (aliás anônimo) esclarecia que os originais eram propriedade de Maria Isabel de Bourbon, condessa de Iguaçu, por ela confiados "a Júlio Ribeiro, que deles extraiu cópia fidelíssima, sem alterar uma palavra segundo a ortografia caprichosa do sr. dom Pedro I" (Cartas do imperador dom Pedro I a Domitila de Castro, Rio de Janeiro, Tip. Morais, 1896, p.3). Morto antes de ver seu trabalho concluído, os originais de Rangel foram adquiridos pelo Arquivo Nacional, tendo sido publicado pela primeira vez em 1974. A edição de 1984 traz 155 cartas, sendo duas delas inéditas não incluídas na primeira edição.

As cartas publicadas por Alberto Rangel, juntamente com as notas que as acompanham, são de extrema relevância para estudos que objetivem compreender o Primeiro Reinado. As observações feitas por Rangel cobrem os sete anos de romance entre o imperador e sua amada, abarcando não apenas a relação entre os dois, mas as questões de governo no que concerne à política interna e externa. Não apenas literatura, as cartas em questão constituem documentos importantes para a compreensão e constituição da sociedade brasileira.

E eis que no ano de 2011, o historiador Paulo Rezzutti publica Titília e o Demonão, um conjunto de cento e onze cartas inéditas do imperador Pedro I à Marquesa de Santos. As noventa e quatro cartas transcritas por Rezzutti foram escritas entre 1823 e 1827 e, desaparecidas desde então, foram encontradas em um museu nos estados Unidos, a Hispanic Society of America. Como bom historiador, Rezzutti rastreou os comentários que lera e ouvira sobre o assunto. O resultado foi a localização e posterior publicação das cartas do Demonão para sua Nhá Titília. As dezessete cartas que acompanham o volume, algumas inéditas, enriquecem a obra (há raras cartas da Marquesa para Dom Pedro I). Nas cartas publicadas por Rezzutti é possível perceber um imperador bastante à vontade na relação que mantém com a sua amada. Pela pena do imperador passam desde as questões de maior interesse para o Império como as questões do cotidiano, principalmente aquelas que tratam dos desejos sexuais de Vossa Alteza. Em determinada carta, o Demonão diz do seu interesse de ir "aos cofres" da sua amada, afirmando que o amor que faz com ela não é por obrigação, mas por devoção. E a título de curiosidade, "a tua coisa" era o apelido carinhoso com o qual o imperador se referia ao pênis real, quando dele falava à sua amada. Em algumas cartas, inclusive, é o desenho da própria "coisa" que vem no lugar da palavra que designa a "coisa" propriamente dita.

Titília e o Demonão, juntamente com as cartas compiladas por Rangel são um farto material de pesquisa para, através das figuras de Dom Pedro I e Domitila de Castro, se compreender o Brasil que começava a se esboçar. No ano de 2012, Paulo Rezzutti publica sua biografia sobre a famosa Marquesa. Em linguagem mais fluida que o livro de Rangel, o trabalho de Rezzutti vem acrescido de valiosas imagens  de documentos, propriedades e objetos pessoais da Marquesa. Além disso, traz imagens dos restos mortais de d. Leopoldina, quando da exumação do seu corpo, em 2012, para exames que pudessem comprovar a causa de sua morte. Na ocasião, os trabalhos foram conduzidos pela arqueóloga Valdirene do Carmo Ambiel. 

Em carta de D. Pedro  a Domitila, lê-se:

(...) há circunstâncias, e ocorrências e  azares, que às vezes fazem perder o juízo, excitar o ciúme, gerar-se a raiva, perpetrarem-se loucuras, e até mesmo coisas que só o desespero pode sugerir. (REZZUTTI, 2012:137)

Em carta à marquesa de Santos, de 4 maio de 1824, D. Pedro afirma:

Eu sou imperador, mas não me ensoberbeço com isso, pois sei que sou um homem como os mais, sujeito a vícios e a virtudes como todos o são (RANGEL, 1984:06)


E assim sendo, Domitila/Titília e Pedro/Demonão, nas obras de Alberto Rangel e Paulo Rezzutti nos mostram seus azares, ciúmes, loucuras e desesperos na constituição de um amor que tem resistido à transitoriedade da vida, mantendo-se atemporal.