Todo bom leitor de
literatura brasileira tem certa predileção por um ou outro trabalho de José de
Alencar. Você pode até nem gostar. Pode até ser indiferente, mas isso não
diminuirá a relevância da obra alencarina. Ao contrário, só depõe contra você
enquanto leitor. Ouso dizer que, quem não gosta de José de Alencar, bom sujeito não é.
Brincadeiras à parte, não se pode compreender a dimensão da literatura produzida
em língua portuguesa sem passar pela compreensão do que significa a obra de
Alencar na constituição da nossa literatura, bem como da própria língua portuguesa que,
para Alencar, seria, na verdade, a língua brasileira, uma vez que essa era a
sua intenção, e pela qual foi duramente criticado.
Mas Alencar, como todo
grande gênio, era um homem à frente do seu tempo. Ser um gênio, no entanto, não
retira de ninguém a qualidade humana. Daí, o romancista ter se equivocado em
determinadas questões relativas à escravidão, por exemplo, que, de forma
alguma, o exime de responsabilidades. Alencar só viveu quarenta e oito anos.
Durante sua maturidade como escritor e político viveu sob intenso bombardeio
dos críticos e opositores.
Quando da sua famosa querela com o Imperador, por
exemplo, é Machado de Assis (1839 - 1908) quem sai em sua defesa, afirmando:
“contra a conspiração da indiferença um aliado invencível: a conspiração da
posteridade”. Admirador declarado de José de Alencar, Machado de Assis já
registra aí que o autor cearense seria um clássico. Como o autor de Dom Casmurro (1899) não costumava errar,
Alencar se fez clássico. E um clássico, em termos bem objetivos, é aquela obra
literária que permanece na história por seu caráter universal e atemporal.
Sua principal obra é, sem sombra de dúvidas, Iracema (1865). Não temo em dizer, inclusive, que, de uma forma ou outra, somos todos Iracemas, pois, de alguma maneira, guardamos parentescos e aproximações com essa obra que tem sido ao
longo da História do Brasil (quando falo em História do Brasil, me refiro a
todas as formas de manifestações culturais nacionais, ou seja, literatura,
artes plásticas, música, arquitetura etc.) um mito em constante reestruturação,
uma referência perene da cultura brasileira, assim como também o é a Carta, de Pero Vaz de Caminha, o
Abaporu, da Tarsila do Amaral ou as Bachianas brasileiras, de Villa-Lobos.
Embora haja uma
insistente e recorrente tentativa de se discutir a forma, a estrutura
organizacional de Iracema, uma vez que alguns dizem ser, um romance, um poema
ou uma lenda, como afirmara o próprio Alencar. Assim sendo, não nos deteremos nesse aspecto por considerarmos uma questão menor, quase desnecessária. Sigo, no entanto, Andrade Furtado, quando classificou Iracema, como um
romance-poema (o maior poema em prosa da literatura brasileira), rico em tudo, especialmente em musicalidade. Como comprovação do que afirmo, não é preciso ir tão longe, bastando apenas atentarmos para a maneira como o romance-poema se inicia: "Verdes mares bravios de minha terra natal,onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba.Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros...". Dessa forma, reafirmo que, mais importante
que a forma, é o conteúdo. É claro que uma obra-prima requer uma relação de simetria entre conteúdo e estrutura. E isso, não se pode negar, também foi alcançado por Alencar, ao elaborar Iracema, obra com a qual finca no coração da cultura brasileira, o livro fundador da literatura nacional.
A palavra
Iracema é um anagrama, ou seja, a partir de uma reordenação das suas letras,é possível se construir a palavra América, e é ingênuo querer acreditar que isso
se dá por mera coincidência do acaso. Claro que não. Com Iracema, Alencar pretendia não apenas fundar as
bases da literatura brasileira, mas também da literatura americana. Daí o novo
mundo, a América, está embutida em Iracema e vice-versa, como forma de
nascimento e simbiose. Note-se ainda que, ao unir as línguas nativas
(representadas por Iracema) com a língua portuguesa (com Martim), Alencar, de uma tacada só, proporciona questionamentos acerca da multiculturalidade que, somente meio século depois, seriam sociologicamente levantados por Gilberto Freyre (1900 - 1987), em seu livro Casa Grande & Senzala (1933).
A miscigenação cultural apresentada por Alencar, na maioria dos seus romances indianistas, fez com que muitos dos seus críticos o acusassem de ter se apropriado das
ideias literárias de outros autores. Do francês François-René de Chateaubriand (1768 - 1848), por exemplo, o
qual havia escrito a novela Atala (1801), que tem como enredo, a história de Atala, filha de um europeu e uma índia que se envenena para
não ceder ao desejado amor de Chactas, uma vez que prometera à mãe moribunda, morrer
virgem. Outros, por sua vez, viam em seus trabalhos da fase indianista, aproximações com os trabalhos do escritor norte-americano, James Fenimore Cooper (1789 – 1851), especificamente sua obra mais conhecida, O último dos moicanos, de 1726. Contudo, se José de
Alencar recorre à figura dos nativos e, através da sua narrativa, aponta para
uma separação intelectual do Brasil em relação a Portugal, Cooper vê, nos índios peles vermelhas, a possibilidade de liberação intelectual dos Estados Unidos
em relação à Inglaterra. Seja como for, os dois nomes representativos do Indianismo nas Américas são Alencar, no Brasil, e Cooper, nos Estados Unidos. Dessa forma, falar em plágio ou apropriação é para lá de descabido.
Disse anteriormente que
não se deve insistir em discussões acerca da forma, mas no conteúdo de Iracema.
Digo isso, pois, assim como Jorge Luis Borges (1899 - 1986), vejo o livro como
um instrumento diferente de todos os outros já criados pelo homem.
Era o ano de
1978, quando Jorge Luis Borges foi convidado a proferir cinco palestras na
Universidade de Belgano, na Argentina. Na ocasião, o autor falou sobre cinco
temas pelos quais sempre teve grande paixão: o livro, a imortalidade, Emanuel
Swendenborg, Edgar Allan Poe e o tempo. Essas palestras resultaram no livro Cinco visões pessoais, publicado no
Brasil no ano de 2002.
Sobre o livro, afirma Borges:
“Dos diversos instrumentos utilizados pelo
homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de
seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é
a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu
braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da
imaginação”. (BORGES, 2002:13)
E continua ele:
“Se lemos um livro antigo é como
se lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito
e nós. Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode conter muitos
erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas ainda
assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não como um tipo de respeito
supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar
sabedoria”. (BORGES, 2002:20)
Dessas falas de Jorge
Luis Borges ressalto o trecho que diz: “o livro é uma extensão da memória e da
imaginação”. E retomo Iracema, para perguntar o quanto da “índia dos lábios de
mel” se mantém na nossa memória, individual ou coletiva, todas aquelas vezes
que ouvimos o nome de José de Alencar, caminhamos pelo calçadão da Praia de
Iracema ou simplesmente pelos atos de estar ou viver em Fortaleza, terra defortes
ventos, sol intenso e verdes mares bravios. Mas o livro, nos lembra o escritor argentino, também é uma extensão da
imaginação. E assim sendo, Iracema é um “prato cheio” (Umberto Eco chama esse
meu “prato cheio” de obra aberta) para que se possa imaginar o ambiente social
no qual a índia tabajara estava inserida, sua função social na tribo, a beleza do seu
corpo, seu caráter, sua identidade feminina, bem como da sua capacidade de se deslocar da
serra do Ipu até o mar de Fortaleza. Nestes termos, Iracema é um desses livros
sagrados, divinos, propiciadores da alegria, da felicidade, da sabedoria e do
deleite.Iracema faz 150 anos, mas nem parece.
Leia também:
1. ACADEMIA CEARENSE DE LETRAS. Alencar 100 depois. Fortaleza: ACL, 1977.
2. _____________________________.José de Alencar e Euclides da Cunha. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.
3.BORGES, jorge Luis. Cinco visões pessoais. Trad. Maria Rosinda Ramos da Silva. Brasília:editora Universidade de Brasília, 2002.
4. NETO, Lira. O inimigo do rei: uma biografia de José de Alencar, ou, a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava Dom Pedro II e acabou inventando o Brasil. São Paulo: Globo, 2006.
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