A literatura de Érico
Veríssimo (1905 - 1975) é abissal, uma vez que se constitui de contos, romances, novelas,
literatura infanto-juvenil, narrativas de viagens, biografias, autobiografias,
traduções e ensaios. Mas
se fosse apenas pela quantidade, provavelmente não
estaríamos aqui discorrendo sobre a seu trabalho. O que sustenta sua
obra é aquilo que dá sustentação a um clássico, ou seja, a qualidade, que é,
por sua vez, o que faz com que uma obra se torne tanto atemporal quanto
universal.
Érico Veríssimo |
Era a década de 40 e
mundo vivia um caos generalizado. Em meio às atrocidades do período, Veríssimo
produz boa parte da sua obra. Em 1938 publica Olhai os lírios do campo. Em 1940, publica o romance Saga, tido por ele como o seu pior
romance. Em 1943, publica O resto é
silêncio e, em 1949, publica “O continente”, a primeira parte de O tempo e o vento. Note-se que, aqui, fazemos referência
somente aos romances, uma vez que nesse mesmo período o autor também se dedica à produção de outros
gêneros.
Nenhum autor escapa do
contexto histórico no qual está inserido. Se isso, de uma forma ou de outra vai
estar presente na produção literária da época, aí já é outro questionamento. O
que afirmamos é que nenhum artista pode se manter
neutro perante os acontecimentos do seu tempo. Você, como afirma o historiador
norte-americano Howard Zinn (1922-2010), não pode ser neutro em um trem em
movimento. E o que é a História se não um trem em movimento? E o que é a
literatura se não um imenso vagão no trem da Cultura, também um trem em movimento? Ou
podemos ainda retomar o filósofo Walter Benjamim (1892-1940), quando afirma que
o artista que não pode tomar posicionamento deve se calar.
Lembremos que é na
década de 40, período que vai de 40 a 49, que o mundo é assolado, de forma mais tenebrosa, pelos
conflitos armados que tinham começado na década anterior. Tem-se o Nazismo,
o Fascismo, a Segunda Guerra Mundial, as bombas em Hiroshima e Nagasaki e, mais
para o final, o surgimento da chamada Guerra Fria. No Brasil, tem-se o governo
ditatorial de Getúlio Vargas (1882-1954), o qual se estende de 1937 até 1945.
Insatisfeito com os desmandos da ditadura Vargas e, aproveitando o convite que
lhe fora feito pelo Departamento de Estado, dos Estados Unidos, no ano de 1941,
Érico Veríssimo mora por três meses nos Estados Unidos, onde, devido a chamada
“política da boa vizinhança” do governo de Franklin Roosevelt (1882-1945),
profere algumas conferências.
No ano de 1943, o
convite é refeito e Veríssimo volta aos Estados Unidos, onde ficará por dois
anos. Dessa vez, ministrará aulas de Literatura Brasileira na Universidade da
Califórnia, em Berkeley. O tempo que Érico Veríssimo passou no exterior
resultou na produção de Gato preto em
campo de neve (1941), A volta do gato
preto (1947) e Brazilian Literature -
an outline, de 1945. Parte das suas observações acerca do período em que
esteve fora do Brasil, também pode ser lida na sua obra memorialista Solo de clarineta, de 1973 e 1976,
especialmente a parte denominada “Velho mundo sem porteira”, que trata das suas
andanças por terras portuguesas.
Mas voltemos a
Berkeley. Como já dissemos, a estada de Érico Veríssimo na Universidade da
Califórnia resultou no livro Brazilian
Literature - an outline, escrito em inglês e publicado nos Estados Unidos
no ano de 1945, tendo sido traduzido para o Português apenas no ano de 1995,
por Maria da Glória Bordini, com o título de Breve história da literatura brasileira, publicado pela Editora
Globo, sendo livro original considerado, hoje, uma obra rara.
O livro é uma coletânea de ensaios
resultantes das palestras ministradas pelo autor sulino. Contudo, mais que uma
coletânea de ensaios, Breve história da
literatura brasileira deve ser compreendido como um longo ensaio dedicado a
não apenas apresentar a literatura brasileira aos alunos norte-americanos, mas
também questioná-la e discuti-la dentro de um espectro mais amplo, ou seja, a
Cultura. E aqui poderíamos fazer uma extensa abordagem do que deva ser
compreendido por “cultura”, quando traríamos ao palco questões apresentadas e
defendidas por Manuela Carneiro da Cunha, Raymond Williams, Homi Bhabha e
Zygmunt Bauman; por exemplo. No entanto não é esse o objetivo do presente texto, e o viés de cultura ao qual se refere Érico Veríssimo pode muito
bem ser compreendido em trabalhos de menor fôlego, como O que é cultura, de José Luiz dos Santos (1983) e Cultura – um conceito antropológico (1986), de Roque de Barros Laraia; para
ficarmos apenas em alguns.
Breve
história da literatura brasileira está dividido em 12
partes ou 12 capítulos, mas como já aludimos aqui, também poderíamos dizer
tratarem-se de 12 ensaios que, em conjunto, constituem um único e longo ensaio.
As origens do ensaio, enquanto
gênero literário podem ser identificadas nas mais remotas manifestações do ser
humano, quando do exercício da oralidade. Sistematizado por volta de 1612, com
Bacon ( 1561 - 1626 ), o ensaio alcança melhor nível
de organização com Montaigne (1533 - 1592), quando afirma que um ensaio precisa ser de linguagem rica, demonstrar um estilo preciso,
e ter densidade de pensamento aliada a uma expressão que possa garantir a
perenidade dos textos.
Sobre o ensaio, Pedro
Paulo Montenegro (2010) afirma:
O
ensaio contém a discussão livre e
pessoal de um assunto. O ensaísta não busca provar ou justificar as suas
ideias, nem se preocupa em lastreá-las com erudição, nem esgotar o tema
escolhido. Escreve para divisar melhor o que pensa e saber se pensa
corretamente. Daí que o ensaio se
constitua numa manifestação de humildade e faça da brevidade e da clareza de
estilo os seus esteios máximos. (...). O ensaio
deve oferecer antes de tudo uma sensação de beleza da forma, porque o ensaísta,
por definição, deve ser um bom escritor e procurar menos persuadir que comover
(...). O Ensaio é um texto escrito
com os olhos voltados, ao mesmo tempo, para a beleza da expressão literária e a
beleza da verdade que exprime, porque a verdade intelectual do Ensaio jamais se
dissocia da perfeição da forma. (MONTENEGRO, 2010: 113).
Apresento essas
considerações apontadas por Montenegro, para mostrar que todas as observações
feitas pelo crítico podem ser identificadas pontualmente nos ensaios de Érico
Veríssimo. A humildade a qual se refere Montenegro pode ser observada ao longo
de todos os textos, mas já na apresentação do seu trabalho, o autor afirma que
não é, ele mesmo, um crítico, mas um contador de histórias. E afirma:
Esta não é uma versão sem preconceitos da literatura brasileira. Ao escrever este livro não tomei o lugar de Deus; contentei-me com o de um leitor comum, que às vezes pode estar errado, mas que não pretende jamais trair seus próprios gostos e desgostos. (VERÍSSIMO, 1995:14)
O primeiro ensaio do
livro chama-se “Tão boa é a terra”, no qual Veríssimo traça um panorama
(lembre-se que o termo outline em
português é “guia”) da literatura produzida no Brasil no período colonial,
pós-descobrimento, logo, ele está tratando da literatura de informação, tomando
como ponto de partida a Carta de Pero Vaz de Caminha. No entanto, o autor não
se limita apenas ao aspecto literário do período, mas dá conta de todos os
outros elementos culturais, constituintes da então sociedade local. E assim,
tal como faz no primeiro ensaio, Veríssimo vai discorrendo sobre cada um dos
períodos literários brasileiros, escolhendo um autor e uma obra que considera
mais representativa, passando a tecer comentários mais detidos a respeito.
Como
um bom pesquisador, Veríssimo também se detém em obras e autores menos
conhecidos e que, até hoje, não compõem o cânone da nossa literatura, como
Botelho de Oliveira (1636-1711), autor do poema A ilha de Maré (disponível em http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=27992) , por
exemplo. A acuidade intelectual, o trato com a língua, a crítica mordaz e a
recorrente ironia são elementos observáveis nos ensaios em questão. Além disso,
Érico Veríssimo demonstra vasto conhecimento da história e da cultura
brasileira, e em específico, da literatura.
Chama-nos atenção o
ensaio intitulado “uma literatura chega à maioridade” (p.119), texto no qual o
autor discorre sobre a geração de 30 sem, no entanto, citar os grandes nomes dessa geração,
incluindo o dele. Por outro lado, prefere discorrer sobre os trabalhos de
Sérgio Buarque de Holanda (1902 - 1982), Gilberto Freyre (1900 - 1987), Caio Prado Júnior ( 1907 - 1990), Vianna Moog (1906 - 1988 ),
Anísio Teixeira ((1900 - 1971) e Oliveira Viana (1883 - 1951); por exemplo,
bem como apontar ficcionistas mais à margem.
Sobre o comprometimento político do escritor brasileiro,Veríssimo afirma:
Posso
dizer que, depois de 1930, os escritores em meu país começaram a se interessar
pelos problemas sociais e filosóficos de seu tempo. Os horizontes da crítica se
expandiram. A maioria de nossos romancistas agora escrevem suas histórias em
torno de problemas sociais. E aqueles que pensam não serem capitais os fatores
econômicos aderem ao romance psicológico. De qualquer modo, sabem que um
romance é mais do que um enredo inteligente ou uma série de eventos contados
com graça só para fins de entretenimento. (VERÍSSIMO, 1995:120)
O último texto de Breve história da literatura brasileira
chama-se “A colcha de retalhos”, expressão muito usada em língua inglesa para
dar ideia de algo que ainda não se mostra de forma clara, mas confusa e em
desalinho, apesar das suas micro partes se mostrarem em união. E é com essa imagem metafórica que o autor define a literatura brasileira em
finais do ano de 1944, mostrando da impossibilidade de se apontar qual o
romance mais representativo do Brasil. No referido ensaio, o autor apresenta
escritores que até hoje ainda são grandes “desconhecidos” para a maioria dos leitores brasileiros. Entre os já conhecidos, tece elogios aos
trabalhos de Rachel de Queiroz (1910 -2003) e Clarice Lispector (1920 - 1977), e reafirma Gilberto Freyre
como o principal intérprete da sociedade brasileira, especificamente a
nordestina. Érico Veríssimo conclui o capitulo, afirmando:
(...) Quanto à literatura de meu país – seu traço proeminente nos últimos dez anos é que os escritores brasileiros deixaram de ser meros malabaristas verbais, imitadores esnobes das modas literárias européias ou tíbios elfos, habitantes da torre de marfim; pisaram na terra e deram as mãos ao homem comum nessa cruzada universal por um mundo melhor de paz, fraternidade e liberdade. (VERÍSSIMO, 1995:153)
De forma bem sucinta, eis uma noção dos ensaios presentes em Brazilian literature, an outline. E foi assim que a
Literatura Brasileira foi apresentada por Érico Veríssimo, na década de 40, em Berkeley, na
Califórnia.
Leituras:
MONTENEGRO, Pedro Paulo. Euclides da Cunha - o ensaísta. In: Academia Cearense de Letras: José de Alencar e Euclides da Cunha. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.
VERÍSSIMO, Érico. Brazilian literature, an outline. New York: The Macmillan Company, 1945.
______________.Breve história da literatura brasileira. Trad. Maria da Glória Bordini. São Paulo: Globo, 1997.
Leituras:
MONTENEGRO, Pedro Paulo. Euclides da Cunha - o ensaísta. In: Academia Cearense de Letras: José de Alencar e Euclides da Cunha. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.
VERÍSSIMO, Érico. Brazilian literature, an outline. New York: The Macmillan Company, 1945.
______________.Breve história da literatura brasileira. Trad. Maria da Glória Bordini. São Paulo: Globo, 1997.