Tem-se tido a
impressão de que o mundo está ficando cada vez mais hostil. Comportamentos que
acreditávamos estarem mortos e sepultados surgem da tumba, para aterrorizar uma
humanidade já para lá de aterrorizada. Em meio a tudo isso, sempre estiveram etnias,
grupos e indivíduos para os quais esses tempos de ódio, perseguição e violência
não consistem em nenhuma forma de surpresa, uma vez que sempre foram vítimas
preferenciais de sistemas sócio-políticos pautados pela predominância do maior
sobre o menor, do mais forte sobre o mais fraco. Dessa forma, ao longo da
história da humanidade, a imposição da violência enquanto forma de dominação
tem sido uma constante.
Na tentativa de
confrontar tais forças hegemônicas, a Arte tem se mostrado uma grande aliada em
uma guerra que não tem previsão de chegar ao seu final. O pior de tudo nessa
guerra talvez seja a dificuldade de se precisar de onde virá o inimigo, o qual,
inesperadamente, pode saltar de uma trincheira, de um avião, vir por meio de um
drone ou estar tranquilamente acomodado na sua cama. De todos, o inimigo íntimo
é, certamente, o mais letal. Seja como for, a Arte, especificamente a literatura,
tem servido para dar voz aos silenciados. Contudo, a batalha não é nada fácil
e, muitas vezes, é preciso lutar consigo mesmo para, só então, seguir adiante.
Nesse sentido, autores
como Zygnunt Bauman, Chimamanda Ngozi Adiche, W.G. Sebald, Mia Couto, Svetlana
Aleksiévitch e Teju Cole, por exemplo, são alguns dos autores cujas obras
deitam olhos sobre questões que nem todo mundo deseja ver. Em meio a ensaios
sociológicos, romances e novelas; a poesia tem apresentado suas armas. E assim,
dos lugares mais diversos, geograficamente falando, poesias vão surgindo e vozes
vão sendo ouvidas. Assim o é com a poesia de Angélica Freitas, Wislawa Szymborska,
Warsan Shire e Rupi Kaur; entre muitas outras.
De Rupi Kaur, por
exemplo, acaba de sair em português brasileiro o livro Outros jeitos de usar a boca (2017), publicado pela editora
Planeta, com tradução de Ana Guadalupe. O referido trabalho foi publicado
primeiramente de forma independente, tendo sido depois publicado nos Estados
Unidos por Andrews McMeel, quando alcançou o primeiro lugar na lista do The New
York Times, tendo vendido mais de um milhão de exemplares impressos. O que fez
o livro de Kaur se tornar um best seller dificilmente
foi o gênero poesia, mas provavelmente os temas dos quais trata a poeta, a
saber: amor, sexo, liberdade, abuso, feminilidade, perda, trauma, superação
etc. Assim, em um mundo de crescente misoginia e violência, a fortaleza da poesia
simples de Rupi Kaur se constitui, certamente, como um diferencial para que sua
leitura continue se espalhando por vários países, em diferentes idiomas.
Em língua inglesa, o
livro de Kaur chama-se Milk and Honey, título que contém em si toda uma gama de significações históricas, bíblicas e
mitológicas que, infelizmente, se perdem na tradução para o português
brasileiro. De Leite e Mel para Outros jeitos de usar a boca, convenhamos, há uma distância bem grande. Ao longo
da obra, as palavras “leite” e “mel” surgem em diversos poemas (p.66, p.99, p.
101, p.108, p. 199). A expressão “leite e mel” é bastante recorrente em textos
do Oriente Médio antigo, bem como também o é na Índia, terra natal da poetisa. Para ficarmos apenas em um exemplo, na Bíblia, há passagens que fazem referência à “terra que mana leite e mel”. Em
Êxodos, lê-se:
Disse
ainda o SENHOR: Certamente, vi a aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi
o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento; por isso,
desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-los subir daquela terra boa e ampla, terra que mana leite e
mel (...). (ÊXODOS, 3.7-12)
E em Números, tem-se:
(...)
por ventura, é coisa de somenos que nos fizeste subir de uma terra que mana leite e mel, para fazer-nos
morrer neste deserto, senão que também queres fazer-se de príncipe sobre nós?
Nem
tampouco nos trouxeste a uma terra que
mana leite e mel, nem nos deste campos e vinhas em herança (...). (NÚMEROS,
16. 13-14)
Contudo, sabemos nós, que
os meandros da tradução se dão em conformidade com uma série de questões
editoriais das quais não temos interesse em tratar aqui. Dessa forma, o título
que dá nome ao trabalho em português é adaptado do poema “Você fala demais” (os
poemas não possuem títulos. Nesse caso, o título passa a ser o primeiro verso).
Diz o poema: “Você fala demais/ele sussurra no meu ouvido/conheço jeitos
melhores de se usar essa boca” (p.68). No Brasil, “Leite e Mel” não seria,
convenhamos, tão “vendável” quanto Outros
jeitos de usar a boca.
O livro de Rupi Kaur está
dividido em quatro (04) partes: “a dor” (p. 9-42), “o amor” (p.43-78), “a ruptura”
(p.79-144) e “a cura” (p.145-207). Ao todo são 186 poemas, distribuídos da
seguinte forma: em “a dor” tem-se 31 poemas. Nas demais partes, respectivamente,
tem-se: 33, 63 e 59. Os poemas de Kaur são geralmente curtos, alguns de apenas
dois versos, mas carregados de uma força de considerável valor poético. Para tanto,
a poeta não se esmerou em formas ricas ou raras; em vez disso, optou por uma
escrita bastante simples, clara e objetiva sem, no entanto, perder de vista a essência
subjetiva da poesia. E embora o livro
possa ser lido por partes, também pode ser lido como se fosse um único grande
poema, uma vez que as temáticas tratadas se relacionam e se mostram como uma
unidade. Quase todos os poemas são acompanhados de ilustrações feitas pela
própria autora, as quais dialogam com o texto escrito, fazendo uma grande
diferença no todo do trabalho.
Os poemas de Outros jeitos de usar a boca abrangem
muitos dos questionamentos acerca do empoderamento feminino no turbulento contexto
do século XXI. Dessa maneira, o eu-lírico se multifaceta, embebendo-se em
solilóquios, fazendo referências às figuras do pai, da mãe,
do homem, e da mulher enquanto sujeito da sua vida, do seu corpo e dos seus atos.
A leitura da poesia de Rupi Kaur é necessária, entre outras coisas, para a discussão das relações humanas na contemporaneidade.
Boa leitura!
A leitura da poesia de Rupi Kaur é necessária, entre outras coisas, para a discussão das relações humanas na contemporaneidade.
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