sábado, 22 de abril de 2017

OUTROS JEITOS DE USAR A BOCA, DE RUPI KAUR

Tem-se tido a impressão de que o mundo está ficando cada vez mais hostil. Comportamentos que acreditávamos estarem mortos e sepultados surgem da tumba, para aterrorizar uma humanidade já para lá de aterrorizada. Em meio a tudo isso, sempre estiveram etnias, grupos e indivíduos para os quais esses tempos de ódio, perseguição e violência não consistem em nenhuma forma de surpresa, uma vez que sempre foram vítimas preferenciais de sistemas sócio-políticos pautados pela predominância do maior sobre o menor, do mais forte sobre o mais fraco. Dessa forma, ao longo da história da humanidade, a imposição da violência enquanto forma de dominação tem sido uma constante.

Na tentativa de confrontar tais forças hegemônicas, a Arte tem se mostrado uma grande aliada em uma guerra que não tem previsão de chegar ao seu final. O pior de tudo nessa guerra talvez seja a dificuldade de se precisar de onde virá o inimigo, o qual, inesperadamente, pode saltar de uma trincheira, de um avião, vir por meio de um drone ou estar tranquilamente acomodado na sua cama. De todos, o inimigo íntimo é, certamente, o mais letal. Seja como for, a Arte, especificamente a literatura, tem servido para dar voz aos silenciados. Contudo, a batalha não é nada fácil e, muitas vezes, é preciso lutar consigo mesmo para, só então, seguir adiante.

Nesse sentido, autores como Zygnunt Bauman, Chimamanda Ngozi Adiche, W.G. Sebald, Mia Couto, Svetlana Aleksiévitch e Teju Cole, por exemplo, são alguns dos autores cujas obras deitam olhos sobre questões que nem todo mundo deseja ver. Em meio a ensaios sociológicos, romances e novelas; a poesia tem apresentado suas armas. E assim, dos lugares mais diversos, geograficamente falando, poesias vão surgindo e vozes vão sendo ouvidas. Assim o é com a poesia de Angélica Freitas, Wislawa Szymborska, Warsan Shire e Rupi Kaur; entre muitas outras.

De Rupi Kaur, por exemplo, acaba de sair em português brasileiro o livro Outros jeitos de usar a boca (2017), publicado pela editora Planeta, com tradução de Ana Guadalupe. O referido trabalho foi publicado primeiramente de forma independente, tendo sido depois publicado nos Estados Unidos por Andrews McMeel, quando alcançou o primeiro lugar na lista do The New York Times, tendo vendido mais de um milhão de exemplares impressos. O que fez o livro de Kaur se tornar um best seller dificilmente foi o gênero poesia, mas provavelmente os temas dos quais trata a poeta, a saber: amor, sexo, liberdade, abuso, feminilidade, perda, trauma, superação etc. Assim, em um mundo de crescente misoginia e violência, a fortaleza da poesia simples de Rupi Kaur se constitui, certamente, como um diferencial para que sua leitura continue se espalhando por vários países, em diferentes idiomas.

Em língua inglesa, o livro de Kaur chama-se Milk and Honey, título que contém em si toda uma gama de significações históricas, bíblicas e mitológicas que, infelizmente, se perdem na tradução para o português brasileiro. De Leite e Mel para Outros jeitos de usar a boca, convenhamos, há uma distância bem grande. Ao longo da obra, as palavras “leite” e “mel” surgem em diversos poemas (p.66, p.99, p. 101, p.108, p. 199). A expressão “leite e mel” é bastante recorrente em textos do Oriente Médio antigo, bem como também o é na Índia, terra natal da poetisa. Para ficarmos apenas em um exemplo, na Bíblia, há passagens que fazem referência à “terra que mana leite e mel”. Em Êxodos, lê-se:

Disse ainda o SENHOR: Certamente, vi a aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento; por isso, desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-los subir daquela terra boa e ampla, terra que mana leite e mel (...). (ÊXODOS, 3.7-12)

E em Números, tem-se:

(...) por ventura, é coisa de somenos que nos fizeste subir de uma terra que mana leite e mel, para fazer-nos morrer neste deserto, senão que também queres fazer-se de príncipe sobre nós?
Nem tampouco nos trouxeste a uma terra que mana leite e mel, nem nos deste campos e vinhas em herança (...). (NÚMEROS, 16. 13-14)

Contudo, sabemos nós, que os meandros da tradução se dão em conformidade com uma série de questões editoriais das quais não temos interesse em tratar aqui. Dessa forma, o título que dá nome ao trabalho em português é adaptado do poema “Você fala demais” (os poemas não possuem títulos. Nesse caso, o título passa a ser o primeiro verso). Diz o poema: “Você fala demais/ele sussurra no meu ouvido/conheço jeitos melhores de se usar essa boca” (p.68). No Brasil, “Leite e Mel” não seria, convenhamos, tão “vendável” quanto Outros jeitos de usar a boca.
 
O livro de Rupi Kaur está dividido em quatro (04) partes: “a dor” (p. 9-42), “o amor” (p.43-78), “a ruptura” (p.79-144) e “a cura” (p.145-207). Ao todo são 186 poemas, distribuídos da seguinte forma: em “a dor” tem-se 31 poemas. Nas demais partes, respectivamente, tem-se: 33, 63 e 59. Os poemas de Kaur são geralmente curtos, alguns de apenas dois versos, mas carregados de uma força de considerável valor poético. Para tanto, a poeta não se esmerou em formas ricas ou raras; em vez disso, optou por uma escrita bastante simples, clara e objetiva sem, no entanto, perder de vista a essência subjetiva da poesia.  E embora o livro possa ser lido por partes, também pode ser lido como se fosse um único grande poema, uma vez que as temáticas tratadas se relacionam e se mostram como uma unidade. Quase todos os poemas são acompanhados de ilustrações feitas pela própria autora, as quais dialogam com o texto escrito, fazendo uma grande diferença no todo do trabalho.

Os poemas de Outros jeitos de usar a boca abrangem muitos dos questionamentos acerca do empoderamento feminino no turbulento contexto do século XXI. Dessa maneira, o eu-lírico se multifaceta, embebendo-se em solilóquios, fazendo referências às figuras do pai, da mãe, do homem, e da mulher enquanto sujeito da sua vida, do seu corpo e dos seus atos. 

A leitura da poesia de Rupi Kaur é necessária, entre outras coisas, para a discussão das relações humanas na contemporaneidade. 

Boa leitura!





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