Em As cidades invisíveis (1990), de Ítalo Calvino, a cidade não é
apresentada como um conceito geográfico, mas como um organismo vivo e pulsante
que em tudo se assemelha ao próprio ser humano. Cada capítulo do livro de
Calvino é dedicado a uma determinada cidade. Cada uma dessas cidades possui
nome de mulher. Sobre elas, o que se sabe é aquilo que Marco Polo conta ao
poderoso Kublai Khan. Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz
Marco Polo, quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões
diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem
veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus
enviados ou exploradores (CALVINO, 1990:9).
O que faz com que Khan
continue ouvindo Marco Polo talvez resida na maneira como o veneziano faz seus
relatos. As cidades, sejam quais forem, são o que são. Contudo, o que se dá aos
olhos depende em muito de quem vê. Assim, as cidades podem ser masculinas,
femininas ou até genderless. As
cidades podem ser feias, belas ou malditas. As cidades também podem ser, como
naquela canção de Aroldo e Moraes Moreira, uma representação do amor e da
liberdade. A cidade pode ser uma moça. Pode não ter idade. As cidades comportam
mundos. Abrigam, agridem, amedrontam. Mas afinal, o que é a cidade? Uma maneira
de responder tal questionamento é fugindo dos muros e das grades que nos
“protegem” de quase tudo. Mas, Humberto Gessinger já nos alertou que o quase
tudo, quase sempre é quase nada. Dessa forma, é necessário sair à rua e ver a
cidade fluir, de perto, com seus odores, suas flores e seus desvãos.
E me parece que foi
exatamente isso que os escritores Carlos Nóbrega e O Poeta de Meia-Tigela
resolveram fazer. O resultado dessa empreitada é o livro Acidade, de 2016, publicado pela Expressão Gráfica e Editora. O
livro tem 156 páginas. O prefácio foi escrito por Bárbara Costa Ribeiro,
enquanto o posfácio ficou a cargo de Li Lê Santos. O título do trabalho traz em
si um trocadilho entre “a cidade” e “acidade” (acidez), ao mesmo tempo em que
reconhece na cidade, a acidade.
CAENS
DE RUA
A
cidade é um lugar anormal,
Uma
guerra entre o mau e o mau
Vence
quem late mais au
Perde
quem perde o sinal. (p.43)
Dizer que Acidade é um livro de poesias seria
ignorar todos os recursos multimodais que compõem o referido trabalho,
encarcerando-o em apenas uma das inúmeras prateleiras do cânone literário. O
livro de Nóbrega e Meia-Tigela vai muito além, fazendo-nos lembrar do icônico Zero – romance pré-histórico, de Ignácio
de Loyola Brandão. O romance de Loyola, após ser recusados inúmeras vezes pelas
editoras brasileiras, acabou sendo publicado na Itália, no ano de 1974, por
Giangiacomo Feltrinelli. Como o Brasil insiste na sua “viralatice”, Zero só foi publicado por aqui no ano
seguinte, pela editora Brasília/Rio. As justificativas para não se publicar o Zero se baseavam na alegação de que
“dificuldades gráficas” impediriam a boa execução da obra. Ninguém dizia, no
entanto, que a obra era revolucionária e questionadora. E um livro que pudesse
ser usado como provocação não poderia, obviamente, vir a público naqueles
tempos sombrios nos quais o Brasil vivia soterrado.
Zero é considerado, hoje, um romance de caráter pós-moderno. Os
tempos, conforme disse Raduan Nassar ao receber o Prêmio Camões, continuam
sombrios. Dessa forma, toda e qualquer obra verdadeiramente artística corre
seríssimos riscos de enfrentar “dificuldades gráficas”, para que possa chegar
ao público leitor. Ainda bem que isso não aconteceu com Acidade, tendo em vista a acidade das
decisões político-jurídico-midiáticas que têm assolado o país.
?
aos
teus pés
morrem
dois
morrem
dez
e
depois
morrem
cem
morrem
mil
que
que tem?
é
brasil
são
inúmeros
são
antônios
são
só números
só
anônimos (p.50)
Mas afinal, o que Acidade?
A ficha catalográfica do livro “entrega o jogo”. Lá, lê-se: “Acidade é um
Livro-Zine, um Livro-Zona, um Livro-Zão, um Livro-Zen como qualquer outra
cidade”. Acreditamos que poderia se afirmar que Acidade também
pode ser um Zine-Livro, ou seja, um fanzine em forma de livro capaz de abarcar
tudo aquilo que não seria possível de ser colocado, por questão de espaço, em
um zine tradicional.
CIDADE
o clube é vizinho do açougue
o clube é vizinho do açougue
que
é vizinho da igreja
vizinha
à cadeia
à
esquerda do bordel
que
dá frente ao hospício
ao
lado do bar
nossa
casa no meio
somos
todos vizinhos
somos
todos vizinhos
de
nós mesmos. (p.105)
Mais importante que a
forma, a nosso ver, é o conteúdo. Assim, pelas cento e cinquenta e seis páginas
de Acidade, a cidade de Fortaleza,
habitat dos autores, aparece em situações que são belas, tristes e revoltantes.
O descaso com o homem e o meio é denunciado pelos poemas e imagens fotográficas
de placas, logomarcas, pichações, monumentos e anúncios que constituem a obra.
Mas não é apenas Fortaleza que surge em Acidade.
Nesse mais recente trabalho de Nóbrega e Meia-Tigela, está todo um Brasil
que não se mostra no horário nobre da tevê. Está o submundo, a vida e o
cotidiano das coisas e das pessoas que jamais caberiam numa poesia bela,
recatada e do lar. Em Acidade está a
poesia propriamente dita. Aquele canto poético torto, feito faca, pronto para
desafiar o coro e cortar a carne dos contentes.
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