quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O CONTO DA AIA, DE MARGARET ATWOOD

O presidente dos Estados Unidos é morto a tiros. O Congresso é metralhado. Seria obra de fanáticos islâmicos? O exército declara estado de emergência. A Constituição é suspensa. Esse é o mote que desencadeia toda a narrativa que nos é apresentada por Margaret Atwood, na obra The handmaid’s tale, publicada no ano de 1985. O referido trabalho foi traduzido para o português brasileiro, como O conto da aia, por Ana Deiró, e publicado pela editora Rocco. Falamos aqui da edição de 2017. A obra é composta de quinze partes, contendo ao todo quarenta e seis capítulos, acrescida de uma última parte denominada de “Notas históricas”.

A narradora de O conto da aia é Offred, uma das servas da República de Gilead, antigamente conhecida como Estados Unidos da América. A palavra “Gilead” é mencionada inúmeras vezes na Bíblia, significando, por exemplo, “Monte do testemunho” (Gênesis 31:21). Trata-se de uma região montanhosa no leste da Jordânia. É também conhecida como “A terra de Gilead” (Números 32:1) ou apenas "Gilead" (Salmos 60:7; Gênesis 37:25). Nos Estados Unidos, é uma cidade no condado de Oxford, no Maine.

A referência religiosa se faz necessária, tendo em vista que a antiga democracia norte-americana agora deu lugar a um Estado teocrático, no qual as mulheres não possuem outra função a não ser procriar. Na República de Gilead, as mulheres não podem ler, escrever ou amar. Qualquer mínimo desvio de conduta pode ser punido com a morte. Os preceitos religiosos sobre os quais se pauta Gilead são aqueles do velho testamento. Às aias é permitido rezar e agradecer a Deus por não terem tido um destino pior. As aias não são sujeitos, mas objetos a mercê dos desejos e interesses do comandante, a quem devem servir cegamente. Sua principal função, como mulheres férteis, é manter relações sexuais com os comandantes e prover-lhes filhos. Caso não consigam, serão consideradas “Não mulheres” e, consequentemente, banidas para para as colônias de trabalhos forçados, juntamente com as homossexuais, as adúlteras, viúvas e feministas.

Como dito, Offred é um dos pertences da casa do comandante Fred. Offred pertence a Fred (of Fred = de Fred ). Ao contrário dos homens, das aias não se sabe os nomes. Assim, na narrativa de Atwood, vemos os direitos das mulheres, conquistados a duras penas, serem simplesmente banidos, quando um grupo de religiosos extremistas assume o poder no que agora é conhecido como República de Gilead, uma sociedade teocrática fundada nos valores tradicionais e na dominação das mulheres pelos homens.

Embora Margaret Atwood prefira classificar sua literatura como “ficção especulativa”, O conto da aia é, na verdade, uma narrativa distópica (distopia como oposto de utopia. Utopia no sentido elaborado por Thomas More e distopia no sentido defendido por John Stuart Mill), como muitas daquelas publicadas na década de quarenta. Entre tantas, A revolução dos bichos (1945) e  1984, publicado em 1949 por George Orwell (1903-1950). Esse tipo de romance acabou por ficar limitado à década de quarenta, tendo renascido, de forma mais efetiva, após o atentado de onze de setembro. Um dos grandes exemplos de romance distópico desse período é A Estrada (2006), de Cormac McCarthy, no qual o autor situa sua narrativa em um cenário pós-apocalíptico.

Margaret Atwood
O diferencial que é trazido por Margaret Atwood em O conto  da aia é a apresentação da mulher como figura central da narrativa, apresentando-a como um ser humano que tem sido explorado e oprimido ao longo de toda a história da humanidade, haja vista a figura da aia/serva perpassar a história das mais variadas culturas/sociedades que precederam a Modernidade. Um outro aspecto que também merece ser mencionado é a capacidade que tem o ser humano de oprimir seu semelhante sempre que isso lhe proporcione alguma forma de ganho. Na narrativa em questão, as aias são oprimidas e coagidas por mulheres ( no caso, as tias) que, teoricamente, deveriam estar unidas em defesa de todas. E aí lembramos Orwell, quando o narrador de A revolução dos bichos em dado momento diz: “alguns animais são iguais, mas uns são mais iguais que outros”. O romance de Atwood ganhou enorme destaque na atualidade, quando da eleição de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos da América, se declarando contra as minorias, misógino, autoritário, em constante flerte com atitudes antidemocráticas e manifestações fascistóides. Para alguns, a República de Gilead pode saltar das páginas de Atwood e se concretizar bem no coração da América a qualquer momento. Exagero? Sabe-se lá.
O que podemos firmar é que O conto da aia tornou-se uma das mais relevantes obras a retratar tão bem uma sociedade totalitária, sendo, além disso, uma das raras narrativas distópicas  a deitar olhos sobre as relações entre gênero e política. As questões levantadas por Atwood estão longe de se manterem no campo da ficção. Sua leitura e seu necessário debate coloca a literatura da autora canadense no contexto do que melhor tem sido produzido nesse começo de século XXI.
Diante de uma obra de ficção que é praticamente uma reprodução de uma sociedade real, um pedido passou a ser recorrente nas manifestações pró-democracia e anti-Trump: “Façam com que Margaret Atwood volte a ser ficção”! 

É preciso manter os olhos bem abertos, pois Gilead pode não estar tão longe quanto se pensa.



Assista: 


A Decadência de uma espécie (filme, 1990): https://www.youtube.com/watch?v=SWQ4xnyLy1U


The Handmaid's Tale (série): https://www.hulu.com/the-handmaids-tale



 Veja também:

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/21/eps/1511282293_560656.html



http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/77-capa/2002-margaret-atwood-de-quanto-o-real-supera-a-fic%C3%A7%C3%A3o.html



https://www.youtube.com/watch?time_continue=27&v=PPPxR3PcXkQ

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