Quando políticos
autoritários assumem o poder, cultura e educação são as primeiras áreas
atacadas. Não poderia ser diferente, uma vez que são os artistas e os
educadores que doam suas vidas em defesa da formação do pensamento crítico,
sendo a principal barreira capaz de deter o avanço de políticas extremistas. A
arte é subversiva e, na cabeça dessas pessoas, deve ser destruída. Não custa
lembrar o que Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, disse: “a arte
alemã da próxima década será heroica e imperativa”, o que resultou na queima de
milhares de livros, bem como na perseguição, tortura e morte de inúmeros
artistas, pois, aqueles que queimam livros, mais cedo ou mais tarde começam a
queimar pessoas.
Não faz muito tempo, do
lado de baixo do equador, o secretário nacional da cultura daquele (des)governo
extremista, cujo líder máximo é hoje réu no STF por ter tramado um golpe de
estado, fez um discurso medonho em tudo semelhante ao do nazista Goebbels. Em
sua asquerosa fala, o “cidadão de bem” (Alma White gargalha) afirmou que a
“arte brasileira da próxima década será heroica e imperativa”. Certamente que todas
as semelhanças entre os dois discursos não passam de mera coincidência
retórica. Aham!
Recentemente, Donald
Trump censurou os museus do país e ordenou que as exposições exaltem a
“grandeza americana”. Estaria o “grande irmão” falando da imposição de uma arte
nacional, heroica e imperativa? Não sei.
Só sei que já vimos esse filme antes e sabemos bem como termina. No caso, o
nazismo foi derrotado, o tal do secretário de cultura voltou para a lata do
lixo da qual nunca deveria ter saído, e seu chefe está prestes a puxar uns
trinta anos de cana. Quanto ao pato manco, a derrocada parece vir a galope. O
“laranjão” desceu pra brincar no parquinho, mas não combinou com os chineses.
A arte sempre incomodou e
continuará incomodando essa gente autoritária e tacanha, que costuma puxar o
revólver sempre que se fala em cultura, uma vez que todos os seus acordos e
conchavos são baseados em dinheiro, não em arte. Arte é desacordo. E é falando
sobre arte (e política) que Bob Dylan inicia o ensaio sobre a música “Money
Honey” (p.35-38), de Bob Miller. Diz ele: “Arte é desacordo. Dinheiro é acordo.
Eu gosto de Caravaggio, você gosta de Basquiat. Nós gostamos de Frida Kahlo, e
Warhol não nos toca. E é assim que a arte prospera, com embates espirituosos. É
por isso que não pode haver uma forma nacional de arte. Se houver tentativas de
fazer isso, as arestas se dissolvem – o esforço para considerar todas as
opiniões, a vontade de não ofender ninguém. Em pouco tempo, tudo se transforma
em propaganda ou comercialismo”.
O texto em questão é apenas um dos 66 ensaios constituintes do livro A filosofia da música moderna (2022), publicado no Brasil no ano de 2023, com tradução de Bruna Beber e Julia Debasse. Trata-se do primeiro livro que Dylan publica depois de receber o prêmio Nobel de literatura em 2016. A obra, como afirmam as tradutoras, é “uma aula magistral sobre a arte e o ofício da composição”, cujos textos abarcam canções de Elvis Presley, Nina Simone, The Who, Hank Williams, The Clash e Johnny Cash, por exemplo. Além disso, os ensaios de Dylan discorrem sobre como o compositor pode fugir da armadilha das rimas fáceis, e ensina como uma única sílaba pode causar um impacto para melhor ou para pior na letra de uma canção. Como se isso fosse pouco, o autor de Tarântula (1970) e Crônicas (2004) ainda discorre sobre as relações observáveis entre o bluegrass e o heavy metal, costurando tudo isso com informações que comprovam seu amplo conhecimento sobre os mais variados assuntos da cultura universal.
Como a arte,
e mais especificamente a música, não está “perdida no espaço” nem brota no
canteiro da rua, antes de mergulhar nas análises Bob Dylan contextualiza a
canção a ser abordada, traçando conexões com a realidade e tomando com eixo de
sustentação tudo aquilo que implica naquilo que se compreende por condição
humana. E assim sendo, não é nenhum exagero afirmar que A filosofia da
música moderna é uma obra de arte em todos os seus aspectos, inclusive os gráficos,
escrita na prosa inconfundível de Bob Dylan. Ao final da leitura de cada texto,
percebe-se que aqueles ensaios não são “apenas” ensaios, mas poemas em prosa
paridos pela mente única de um dos artistas mais relevantes de todos os tempos.