terça-feira, 10 de junho de 2014

UMA MARQUESA ENTRE SANTOS, COISAS E DEMÔNIOS

Quanto perguntado da possibilidade de publicar as inúmeras cartas que trocou com o amigo  Godofredo Rangel (1884 - 1951), Monteiro Lobato (1882 - 1948) afirmou: "carta não é literatura". Passado certo tempo, o gênero "carta" passou a ser visto com outros olhos, propiciando estudos capazes de  contribuir para a compreensão de épocas, obras e personagens históricos. No entanto, não discorreremos aqui sobre a volumosa correspondência de Lobato, mas fazemos uso da sua afirmação apenas para introduzir os breves comentários que faremos sobre as obras Titília e  o Demonão - Cartas inéditas de D. Pedro I à Marquesa de Santos 2011) Domitila - A verdadeira história da marquesa de Santos (2012), de autoria do historiador Paulo Rezzutti.

O interesse pelos livros de Rezzutti, nasce do nosso interesse pelos trabalhos que tratam do período do primeiro império no Brasil, especialmente aqueles que abordam os personagens "periféricos" ou seja, aqueles homens e mulheres que, mesmo não estando à frente nas tomadas de decisões, estavam nas imediações do poder, influenciando as cabeças coroadas. Entre os trabalhos que nos chamam bastante atenção, estão dois do escritor Alberto Rangel (1871 - 1945). São eles: Dom Pedro I e a Marquesa de Santos (1969) e Cartas de Dom Pedro I à Marquesa de Santos ( 1984). O primeiro trabalho foi publicado pela primeira vez no ano de 1916, conforme nota à 3ª edição, pela Livraria Francisco Alves, impressa em Tours, assim como a segunda edição saída em 1928. A nota à edição que possuímos ( a 3ª, de 1969), não mente ao dizer que a referida obra de Alberto Rangel constitui fonte obrigatória para os que pretendem conhecer nos detalhes verídicos os passos do nosso primeiro imperador e da sua favorita. Aqui está, pois, continua a nota, a figura discutida de Domitila de Castro e Melo, depois Marquesa de Santos, a brasileira que foi o grande amor do Monarca e tantas vezes o inspirou.

O segundo livro de Alberto Rangel, por sua vez, traz um compilação de cartas de Dom Pedro I à Marquesa de Santos. Antes da publicação do referido trabalho houve uma primeira publicação de um conjunto de cartas de Dom pedro I à Domitila de Castro. Ao apontar os critérios da edição de 1984, Emanuel Araújo afirma que o organizador da primeira edição (aliás anônimo) esclarecia que os originais eram propriedade de Maria Isabel de Bourbon, condessa de Iguaçu, por ela confiados "a Júlio Ribeiro, que deles extraiu cópia fidelíssima, sem alterar uma palavra segundo a ortografia caprichosa do sr. dom Pedro I" (Cartas do imperador dom Pedro I a Domitila de Castro, Rio de Janeiro, Tip. Morais, 1896, p.3). Morto antes de ver seu trabalho concluído, os originais de Rangel foram adquiridos pelo Arquivo Nacional, tendo sido publicado pela primeira vez em 1974. A edição de 1984 traz 155 cartas, sendo duas delas inéditas não incluídas na primeira edição.

As cartas publicadas por Alberto Rangel, juntamente com as notas que as acompanham, são de extrema relevância para estudos que objetivem compreender o Primeiro Reinado. As observações feitas por Rangel cobrem os sete anos de romance entre o imperador e sua amada, abarcando não apenas a relação entre os dois, mas as questões de governo no que concerne à política interna e externa. Não apenas literatura, as cartas em questão constituem documentos importantes para a compreensão e constituição da sociedade brasileira.

E eis que no ano de 2011, o historiador Paulo Rezzutti publica Titília e o Demonão, um conjunto de cento e onze cartas inéditas do imperador Pedro I à Marquesa de Santos. As noventa e quatro cartas transcritas por Rezzutti foram escritas entre 1823 e 1827 e, desaparecidas desde então, foram encontradas em um museu nos estados Unidos, a Hispanic Society of America. Como bom historiador, Rezzutti rastreou os comentários que lera e ouvira sobre o assunto. O resultado foi a localização e posterior publicação das cartas do Demonão para sua Nhá Titília. As dezessete cartas que acompanham o volume, algumas inéditas, enriquecem a obra (há raras cartas da Marquesa para Dom Pedro I). Nas cartas publicadas por Rezzutti é possível perceber um imperador bastante à vontade na relação que mantém com a sua amada. Pela pena do imperador passam desde as questões de maior interesse para o Império como as questões do cotidiano, principalmente aquelas que tratam dos desejos sexuais de Vossa Alteza. Em determinada carta, o Demonão diz do seu interesse de ir "aos cofres" da sua amada, afirmando que o amor que faz com ela não é por obrigação, mas por devoção. E a título de curiosidade, "a tua coisa" era o apelido carinhoso com o qual o imperador se referia ao pênis real, quando dele falava à sua amada. Em algumas cartas, inclusive, é o desenho da própria "coisa" que vem no lugar da palavra que designa a "coisa" propriamente dita.

Titília e o Demonão, juntamente com as cartas compiladas por Rangel são um farto material de pesquisa para, através das figuras de Dom Pedro I e Domitila de Castro, se compreender o Brasil que começava a se esboçar. No ano de 2012, Paulo Rezzutti publica sua biografia sobre a famosa Marquesa. Em linguagem mais fluida que o livro de Rangel, o trabalho de Rezzutti vem acrescido de valiosas imagens  de documentos, propriedades e objetos pessoais da Marquesa. Além disso, traz imagens dos restos mortais de d. Leopoldina, quando da exumação do seu corpo, em 2012, para exames que pudessem comprovar a causa de sua morte. Na ocasião, os trabalhos foram conduzidos pela arqueóloga Valdirene do Carmo Ambiel. 

Em carta de D. Pedro  a Domitila, lê-se:

(...) há circunstâncias, e ocorrências e  azares, que às vezes fazem perder o juízo, excitar o ciúme, gerar-se a raiva, perpetrarem-se loucuras, e até mesmo coisas que só o desespero pode sugerir. (REZZUTTI, 2012:137)

Em carta à marquesa de Santos, de 4 maio de 1824, D. Pedro afirma:

Eu sou imperador, mas não me ensoberbeço com isso, pois sei que sou um homem como os mais, sujeito a vícios e a virtudes como todos o são (RANGEL, 1984:06)


E assim sendo, Domitila/Titília e Pedro/Demonão, nas obras de Alberto Rangel e Paulo Rezzutti nos mostram seus azares, ciúmes, loucuras e desesperos na constituição de um amor que tem resistido à transitoriedade da vida, mantendo-se atemporal.




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