domingo, 24 de agosto de 2014

PEDRO: O RIOCORRENTE DE LUIZ TAQUES

Era o ano de 1939, quando James Joyce (1882 – 1941) publicara o seu último trabalho; denominado de Finnegans Wake. Riverrun é a palavra que abre o livro do referido escritor irlandês, tendo sido traduzida para o português pelos irmãos Campos como riocorrente. Tendo em vista que a circularidade e o recomeço podem ser consideradas como as principais marcas da narrativa de Finnegans Wake, logo se deduz que o livro não tem fim, mas sempre um novo começo. E é esse sempre recomeço, assim como o fluxo da narrativa, que vão dar o necessário sentido à palavra joyceana. Dessa forma, a caudalosidade da narrativa do autor de Ulisses  (1922) se assemelha ao fluxo de um rio que corre. Mas não exatamente de “um rio que corre”, mas de umrioquecorre. Um riocorrente. Neste caso, observa-se a constituição de uma unidade narrativa que se compara à correnteza natural de um rio. 

A experiência estilística levada a cabo por James Joyce, pode ser identificada, guardando-se as devidas proporções, na narrativa Pedro, do escritor Luiz Taques, publicado no ano de 2013, pela editora Kan. Taques não é marinheiro de primeira viagem, sendo autor de outras obras literárias e devidamente premiado como jornalista. A edição de 2013 tem capa elaborada por Regina Menezes e conta com gravuras do artista Beto, sendo a referida edição  apresentada por Luciano Schmeiske Pascoal. O livro de Taques contém vinte e dois capítulos e está devidamente catalogado como romance, embora sua estrutura formal, no que diz respeito à narrativa propriamente dita e a constituição das personagens, indique tratar-se, na verdade, de uma novela. Isso, no entanto, tendo-se em vista a hibridização dos gêneros na contemporaneidade, não depõe contra a obra. Mais que a forma, o que consideramos realmente relevante é o conteúdo. Assim sendo, Pedro consiste em uma narrativa bastante expressiva, tendo um narrador que conversa com o irmão distante, Pedro e, através dessa conversa iniciada e mantida como forma de desabafo acerca do descaso deles e da cidade para com o rio que “lambia” o quintal da casa da família, muitas outras questões, sejam elas políticas, sociais, econômicas, existenciais; vão tomando forma ao longo dessa conversa da qual, assim como no Dom Casmurro (1899), só temos conhecimento das coisas a partir de um único ponto de vista; no caso, o do narrador.

Como Pedro não se manifesta, temos somente o narrador a reclamar do abandono da casa, do distanciamento do irmão, da doença do outro irmão, bem como das irmãs consideradas um fardo para a família. Tudo isso é feito em uma constante de velocidade que aproxima a narrativa da fluidez de um rio. Pedro é, assim, o riocorrente de Luiz Taques, a margear, assorear, invadir ou recuar conforme os objetivos da narrativa. Dessa forma, o autor impõe à sua narrativa um fluxo de consciência (aquele mesmo fluxo criado por Joyce e retomado por Virginia Woolf e Clarice Lispector) que se assemelha ao fluxo de um rio. O resultado é positivo, constituindo-se como um diferencial se compararmos com outros recentes trabalhos na literatura brasileira. 

A novela de Taques é ambientada na cidade de Buraco Quente, da qual temos poucas informações, mas que nada deixa a dever às milhares de cidades espalhadas por esse país de mais de duzentos milhões de habitantes. Buraco Quente poderia ser vizinha de Comala, Torvelinho, Macondo, a Curitiba do vampiro Nelsinho ou simplesmente não existir. É pela boca do narrador que sabemos tudo que ocorre na cidade. Assim como o rio, a vida continua a correr, mesmo que seu quintal esteja dominado pelo mato. O rio na novela de Taques é a metaforização da própria vida, do próprio existir. A vida em termos bem amplos ou a vida em Buraco Quente ou, em termos bem mais específicos, a vida da família do narrador.

E já que tocamos no assunto “narrador” é bom deixarmos bem claro que narrador e autor são pessoas diferentes. É por isso que aceitamos o narrador, erroneamente afirmar que crianças de 13, 14 e 15 sejam prostitutas, quando na verdade são vítimas de exploração sexual (p.24). O narrador, por vezes demonstra um  caráter conservador e preconceituoso, o que o faz destoar da qualidade vanguardista da estrutura narrativa escolhida pelo autor. Em outras palavras, o narrador quase  não dá conta da história que tem que narrar. E, retomando a metáfora do rio, parece-nos que o narrador estava sentado em um barranco, quando de repente cai na água e passa a perder o controle do que faz em um misto do desespero e do medo que antecedem um afogamento. Mas ainda bem que ele se agarra a um galho e volta para a margem, retomando o controle da narrativa.

Luiz Taques 
O Pedro, de Luiz Taques, também guarda aproximações com a novela Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo (1917 – 1986), no que diz respeito tanto a sua estrutura quanto à forma de narrar, bem como a linguagem utilizada. As duas novelas também se aproximam, no que concerne ao vazio que tomara conta da vida de Pedro Páramo, assim como o vazio que agora preenche a vida do narrador de Pedro. Isso é perceptível quando, nas páginas de abertura, diz: “Lembra do lugar onde ficavam as bananeiras?”. “Plantamos o vazio no lugar das bananeiras!”. No decorrer da narrativa, o leitor perceberá que o vazio, além de ter sido plantado no lugar das bananeiras, também foi plantado no íntimo de cada membro daquela família, sendo mais que urgente capinar o quintal, (re)ver o rio (a vida) com novos olhos, extirpar o vazio e replantar o pomar. Voltando ao Pedro Páramo, sabemos que a personagem mais relevante na narrativa de Rulfo é a própria Comala, cidade de mortos-vivos. Isso, no entanto, não pode ser afirmado em relação a Buraco Quente, cidade que respira desejo por todos os seus poros. No caso de Pedro, é o rio que se mostra como personagem principal da narrativa, tal qual o Cão sem Plumas, do poema de João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999). E se para alguns, as surpresas, estripulias e sobressaltos da vida podem ser tudo; para outros elas nada mais são do que aquilo que diz aquele bom e velho samba do Paulinho da Viola: “...Foi um rio que passou em minha vida/e meu coração se deixou levar”. Quem sabe não seja essa a trilha sonora da vida de Pedro? E assim sendo, nunca seria demais perguntar ao rio, pois, como naquela máxima de Heráclito: "o mesmo homem nunca se banha duas vezes no mesmo rio, pois, da segunda vez, homem e rio não mais serão os mesmos, mas outros".



Além de Pedro (2013), Luiz Taques também publicou dois volumes de contos O casamento vai acabar com o poeta (2002), Madá (2011) e o infanto-juvenil A história de Zé Vida de Barraca (1997). E assim sendo, lá do seu cantinho, na bela Londrina (PR), desejamos que Luiz Taques continue produzindo. Daqui, ficamos na expectativa, aguardando o que de mais dele virá. Leiamos Pedro, de Luiz Taques!



domingo, 10 de agosto de 2014

TOPOFILIA


O Planeta Terra, devido em grande parte à ganância do ser humano, agoniza a olhos vistos. Pouco tem sido feito para evitarmos que o nosso habitat entre em colapso. Caso isso ocorra, a humanidade perecerá; mas séculos e séculos depois o planeta se recomporá, voltando a ser o que fora na sua origem. Embora muito esteja sendo dito, quase nada tem sido efetivamente feito para combatermos a proximidade do fim. E assim sendo, o homem continua cavando em tudo quanto é lugar, em busca de petróleo para enchermos nossos tanques e pormos nossas usinas em funcionamento. Nada tem escapado à ambição cega desse homem que, mesmo contemporâneo, age como se um primata fosse.

Alguns autores apresentam constantes contribuições, em tentativas de levar o ser humano a compreender suas relações como seu meio ambiente. Esses objetivos nem sempre são
Yi-Fu Tuan
alcançados, uma vez que geralmente nem temos tido tempo para percebermos o quão longe estamos dos nossos semelhantes. E aqui me vem uma máxima de Saramago, quando diz que chegamos muito mais rapidamente a Marte do que ao nosso próprio semelhante. Na linha daqueles que demostram preocupações com o mundo tal qual o conhecemos, atentamos para os estudos propostos pelo professor Yi-Fu Tuan, "Prêmio Nobel da Geografia", de 2012 (trata-se, na verdade, do Prêmio Vautrin Lud). A obra do professor Tuan nos tem obrigado a perceber o pensamento geográfico humanista na medida em que proporciona estudos mais amplos e conscientizadores acerca da percepção do ambiente. 

Embora seja um homem da Geografia, seus trabalhos não se limitam a essa ou aquela questão em específico. Sua obra aponta para um pensar amplo e irrestrito, aproximando a geografia de inúmeras outras áreas do conhecimento. Entres seus vários trabalhos, o Professor Emérito da Universidade de Winsconsin-Madison (EUA), publicou Espaço e lugar: a perspectiva da experiência (1983) e Paisagens do medo (2005). O primeiro foi publicado, no Brasil, pela editora Difel, enquanto o segundo foi publicado pela Editora da UNESP. Antes desses, no entanto, o professor Tuan publicou Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. A obra em questão foi publicada pela primeira vez em 1974. No Brasil, pela EDUEL, no ano de 2012. Excetuando-se alguns problemas, mais de impressão do que de tradução (a tradução é de Lívia de Oliveira), trata-se de uma publicação das mais relevantes sobre a temática da relação homem/meio.

No diz respeito à estrutura da obra, além dos agradecimentos e do prefácio, o livro traz uma divisão em capítulos. Quinze ao todo. O último denomina-se “Resumo e conclusões” e não traz as referências bibliográficas.  Ao longo dos catorze capítulos principais, o autor traça um amplo painel das relações estabelecidas entre o ser humano e o meio ambiente, relações essas quase sempre violadas pelo homem. Consideramos amplo o painel proposto
pelo professor Tuan, uma vez que o referido autor abarca desde a percepção que o homem tem dos próprios sentidos, passando pelas questões psicológicas, bem como acerca de considerações sobre o etnocentrismo, a simetria do espaço, subúrbios, cidades, meio ambiente e cosmo. Na introdução ao seu trabalho, Yi-Fu Tuan discorre sobre como estão organizados os capítulos, descrevendo e explicitando o que trata cada um deles. Na ocasião, o professor faz uma definição daquilo que deva ser compreendido como Topofilia. Diz: “Topofilia é o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito, vivido e concreto como experiência pessoal...”.

Em breve apresentação, na orelha esquerda do livro, Lúcia Helena Batista Gratão (2012), da Universidade Estadual de Londrina, afirma:


Do amor ao sentimento de Topofilia. Esse é o princípio fundante da obra que o geógrafo Yi-Fu Tuan compôs para explorar as ligações afetivas dos seres humanos com o meio ambiente. Que belo neologismo de uma palavra para compreender os laços que se (entre)laçam entre meio ambiente e visão do mundo! Nos (entre)meios e (entre)laços, os sentimentos topofílicos se revelam de maneira profundamente diferente em intensidade, sutileza e modo de expressão. Do efêmero prazer que se tem de uma vista, até a sensação de beleza, igualmente fugaz, mas muito mais intensa. Das sensações de deleite ao sentir o ar, a água, a terra no contato físico. (GRATÃO, 2012)

E continua ela:

Mais permanentes e mais difíceis de expressar, são os sentimentos que temos para com um lugar, por ser o lar, o locus de reminiscências e o meio de se ganhar a vida. Em qualquer lugar onde haja seres humanos, haverá o lar de alguém – como todo o significado afetivo da palavra. A Topofilia é um sentimento de que a Terra é um relicário de lembranças e (res)guarda a esperança. Sentimento expresso de que a Terra é uma obra de apreciação estética e, ao mesmo tempo, substractum da vida, parte do ser, lugar da vida. Tudo isso que contém a palavra Topofilia por toda a beleza de ver e de estar no mundo. Terra nosso lar. (GRATÃO, 2012)




Da primeira publicação de Topofilia (1974) ao momento em que escrevo essa resenha (2014), lá se vão quarenta anos; o que nos faz questionar a razão pela qual as palavras do professor Tuan continuam a reverberar em nossos sentidos. Uma resposta possível talvez esteja calcada na força que essas palavras trazem em si. São palavras que, ao mesmo tempo em que nos escancaram a beleza do planeta em que vivemos, também nos alertam para a responsabilidade que temos sobre esse mesmo planeta enquanto morada de todos. No entanto, serão as urgentes mudanças na relação homem/Terra que decidirão como  será o futuro que nos aguarda.