Já vai longe o tempo em que uma
crônica terminava sua vida, embrulhando peixe em um mercado qualquer. Também já
foi o tempo em que poderia, como já se disse, considerar a crônica como “a
prima pobre” dos demais gêneros literários. Graças aos grandes cronistas
brasileiros, sendo Rubem Braga o maior deles, a crônica cresceu sadia e seguiu
seu próprio destino. Por suas linhas, cabem dos assuntos mais leves aos mais
complexos. Trata-se de um gênero que se permite dar abrigo às mais variadas
temáticas. Se Paulo Mendes Campos (1922 – 1991) nos encanta com seus textos
sobre bares, patos e mulheres; Margarida Sabóia de Carvalho (1905 – 1975)
prefere discorrer sobre questões mais puramente existenciais. A crônica tem
estado em nosso meio desde que os velhos viajantes passaram por essas terras,
registrando informações sobre a fauna, flora e hábitos dos nativos; alcançando
seu ápice com a histórica Carta escrita por Caminha, certidão de nascimento do
Brasil.
O passar dos tempos e o
advento da Internet proporcionaram o surgimento de inúmeros cronistas dispostos
a escrever sobre tudo e sobre todos. E no universo dessa “geleia geral”, nem
todos conseguem colocar no papel (ou na tela) aquilo que percebem em meio ao
ambiente que os circunda. E não importa se são cronistas profissionais ou de
ocasião. Os jornais abrigam, já faz muito tempo, muitos dos grandes cronistas.
Em meio aos bons, também estão aqueles não tão bons. O que diferencia os
primeiros dos segundos, é a visão crítica e cidadã da vida, bem como a
necessária formação político-cultural. O bom cronista não pode, postado
confortavelmente sobre o muro da indiferença, ver a vida simplesmente passar. Para
todo aquele que escreve, também se faz necessária a indignação e a
sensibilidade; instrumentos indispensáveis para ler, compreender e, sempre que
possível, por meio da palavra, interferir naquilo que está posto e, aparentemente,
imutável. Em meio à essa seara, o texto de Eliane Brum tem se destacado pela
qualidade da sua escrita, assim como pelas temáticas que costuma abordar. Um bom
exemplo do que aqui afirmamos é o seu trabalho intitulado A menina quebrada e outras colunas de Eliane Brum.
O livro é de 2013 e foi
publicado pela Arquipélago Editorial, de Porto Alegre. Trata-se de uma reunião
dos seus melhores textos, publicados em sua maioria na coluna de opinião que
manteve por muito tempo na revista Época. Os textos de Eliane Brum não existem,
como ela mesma afirma na apresentação de A
menina quebrada, para apaziguar a quem quer que seja, mas para desacomodar,
perturbar e inquietar. Sua pena não se pauta pela polêmica fácil e fútil tão
comum ao nosso tempo, mas traz em si o desejo “pela busca honesta por compreender
a época em que vivemos”. Eliane Brum tem a clara consciência de que seu
trabalho não se dá apartado do seu tempo e, para falar daquilo que fala,
precisa realmente acreditar no poder que uma narrativa calcada na
responsabilidade e na seriedade tem. Somente assim, em suas palavras, a
narrativa pode transformar e transtornar a vida.
A obra contém sessenta e
quatro crônicas, abordando os mais variados assuntos. A leveza da escrita de
Brum, no entanto, não ameniza a dor, a perda, o estranhamento e a desilusão que
por vezes surgem em seus textos. Sua escrita é incisiva. Assim sendo, em A menina quebrada e outras colunas de Eliane
Brum, a cronista discorre sobre cultura, política, identidade (ou seria (des)
identidade?); assuntos que, de uma forma ou outra, estão na constituição do
homem brasileiro; homem esse que vem perdendo, já faz muito tempo, sua condição
de “cordial”, como preconizara Sérgio Buarque de Holanda.
A primeira crônica “Escrivaninha
xerife” (p.19 – 24) é de primeiro de março de 2010, enquanto a última “A menina
quebrada” (p. 425 – 428) é de vinte e oito de janeiro de 2013. Entre uma e
outra lá se vão várias, recheadas de questionamentos e provocações sobre a
relação entre as pessoas, a relação dessas pessoas com o Estado, os políticos,
a religião, ética, o sexo, memória, censura, tortura e língua; entre tantos
outros. As narrativas embora não mirem em um alvo específico, acabam por
acertar muitos alvos, móveis e imóveis. Esse é um dos poderes da palavra.
Consciente disso, Eliane Brum, para o prazer daqueles que apreciam um bom
texto, continua escrevendo por aí, podendo ser lida (as segundas?) em www.elpais.com. No mais, o que às vezes nos
resta, é ler aqueles que ainda têm muito a nos dizer. Leiamos Eliane Brum!