João Ramalho é uma
daquelas figuras que rendem uma boa biografia. O problema, no caso de Ramalho,
é que muito pouco se sabe sobre ele. Não se pode dizer inclusive seu ano de
nascimento ou morte. Presume-se, afirma Vainfas, em seu Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808), publicado pela
editora Objetiva em 2000, que viveu no Brasil desde 1512 e faleceu em São Paulo
com idade muito provecta. Era, continua Vainfas, provavelmente um náufrago das
primeiras viagens portuguesas, talvez um degredado. O interessante é que João
Ramalho será, durante o período de colonização do Brasil, uma personagem de
extrema relevância. Infelizmente, passamos pela escola e nunca, sequer, em
momento algum, alguém fala sobre ele. João Ramalho continua sendo uma incógnita,
um homem sem passado, quase um fantasma.
Recentemente, no
entanto, alguns autores tem tentado buscar em personagens como João Ramalho,
outras formas de ver e contar a História do Brasil. Em sua maioria, não são
historiadores, mas jornalistas. O resultado está nas prateleiras das livrarias.
Alguns desses trabalhos, embora bem escritos, pecam pela ausência de uma metodologia
historiográfica que pode, a nosso ver, comprometer e induzir ao erro, aqueles
que se limitarem apenas às suas leituras. O “romancear” dos fatos torna
agradável a leitura, mas pode mascarar ou confundir o que deve ser mantido não
como ficção, mas como História puramente. Nessa seara, leva vantagem a
professora Mary Del Priore, por ter a possibilidade de aliar seus conhecimentos
acadêmicos como historiadora à arte de contar fatos sem os ranços
academicistas. Da sua pena já saíram, entre inúmeros outros trabalhos, A carne e o sangue (2002), O príncipe maldito (2006), A condessa de Barral (2008) e O castelo de papel (2013). Em 2014, Del
Priore lançou Do outro lado – a história
do sobrenatural e do espiritismo.
Entre os autores que
tem seguido pelo caminho de Mary Del Priore, podemos citar Eduardo Bueno,
Laurentino Gomes e Thales Guaracy; entre outros. Convém ressaltar que,
excetuando-se Bueno, esses autores tem optado por colocar “subtítulos
explicativos” em seus livros, o que constitui não apenas um diferencial, mas um
chamamento para o leitor. Isso já havia sido feito por Lira Neto, quando, ao
lançar a biografia de José de Alencar (1829 – 1877), a denominou de O inimigo do rei – uma biografia de José de
Alencar ou a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos,
azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil. A referida biografia
foi lançada no ano de 2006, pela editora Globo. Desde então, algumas das obras
publicadas sobre o Brasil tem trazido essa chamada, a qual nos remete tanto ao discurso
do cordelista quanto ao do pícaro. E assim, nessa linha, em 2007, pela editora
Planeta, Laurentino Gomes publicou: 1808
– Como uma rainha louca, um príncipe
medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de
Portugal e do Brasil. No ano de 2010, agora pela Nova Fronteira, Laurentino
Gomes publica 1822 – Como um homem sábio,
uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o
Brasil – um país que tinha tudo para dar errado. Em 2013, o autor de 1808 e
1822, lança pela Globo Livros, 1889 –
Como um imperador cansado, um marechal
vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação
da República do Brasil.
Em 2015 foi a vez de
Thales Guaracy fazer uso da mesma fórmula e publicar o seu A conquista do Brasil – 1500 – 1600 – Como um caçador de homens, um
padre gago e um exército exterminador transformaram a terra inóspita dos primeiros
viajantes no maior país da América Latina. O livro, publicado pela editora
Planeta, conta com o prefácio “Para entender o Brasil”, de Laurentino Gomes (p.
9 -11) e uma introdução do autor (p. 15 – 17); estando o livro organizado em
três partes, sendo elas: “Os donos da terra (p. 27 – 109), “Palavras na areia”
(p. 123 – 164) e “Berço de Sangue” (p. 173 -249). O livro se conclui com uma
parte denominada de “leituras” (p. 253 – 254), onde se tem uma espécie de “referências
bibliográficas”.
Já na introdução (p. 21), e ao longo do livro, nos chama a atenção às referências feitas aos relatos do padre
André Thévet (1516 – 1590), uma vez que é sabido, como bem afirma a antropóloga
Manuela Carneiro da Cunha, autora de Antropologia
do Brasil – Mito, História e Etnicidade (1986), que Thévet não era
confiável. Em artigo publicado na Revista Estudos Avançados da USP
(www.revista.usp.br), denominado de Imagens de índios do Brasil: O século XVI. A
autora afirma:
É somente a partir da década de
50 que o conhecimento do Brasil se precisará, e agora de maneiras divergentes.
Teremos duas linhas divisórias básicas: uma que passa entre autores ibéricos,
ligados diretamente à colonização – missionários, administradores, moradores –
e autores não ibéricos ligados ao escambo, para que os índios são matéria de
reflexão muito mais que de gestão; a outra que separa, nesse período de intensa
luta religiosa, autores usados por protestantes de autores usados por
católicos.
Nesta última categoria, temos o
detestável, pedante, condescendente e – segundo o huguenote Léry – o mentiroso,
franciscano André Thévet, que afirma ter visto o que não viu, ter estado onde
não esteve e preenche as lacunas com fastidiosos e desconexos exemplos
clássicos para cada uma das instituições descritas. Contrapondo-se a Thévet,
direta ou indiretamente, temos também dois autores excepcionais que estiveram
entre os Tupinambá mais ou menos na mesma época, mas em posições simétricas, um
como inimigo destinado a ser comido, outro como aliado: o artilheiro do Hesse,
Hans Staden, que viveu prisioneiro dos Tupinambá, e os descreve com
inteligência e pragmatismo em livro publicado originalmente em 1557 que
conheceu imediato sucesso – quatro edições em um ano -, e o calvinista Jean de
Léry que passa alguns meses, em 1557, com os mesmos Tupinambá quando a
perseguição que Villegagnon move aos huguenotes os obriga a se instalarem em
terra firme (...). (CUNHA, 1990:95-96)
Ainda sobre Thévet, em
nota de rodapé à citação anterior, Manuela Carneiro da Cunha afirma:
Thévet conseguiu, com tudo isso,
uma consagração invejável: nomeado “cosmógrafo do rei”, conservador do “Cabinet
do rei”, ou seja um museu de curiosidades, ele foi comparado por Ronsard a Ulisses, aliás mais do que Ulisses,
por ter visto e por ter escrito o que viu: “Ainsi tu as sur luy um double d’avantage, C’est
que tu as plus veu, et nous a ton Voyage Escrit de ta main propre et non pas
luy du sien” (apud N. Broc 1984:153). Mas Montaigne não se ilude e
publica, nos seus “Canibais”, um trecho ferino provavelmente dirigido a Thévet,
preferindo-lhe seu próprio informante, o normando seu empregado que havia
passado de dez a doze anos na França Antártica. “Ainsi je me contente de cette
information, sans m’enquérir de c eles cosmographes em disent”.
(Montaigne, 1952 (1580): 233 – 234).
O livro de Guaracy toma
como recorte o período que vai de 1500 até 1600. Sobre esta época, período
colonial brasileiro, os dados são discordantes sobre o tamanho da população
brasileira, especificamente no ano de 1500. Os números mais aceitos, conforme
Oliveira (apud Fragoso e Gouvêa 2014), são os do historiador John Hemming
(1978). Hemming, afirma Oliveira, tomou por base tanto as fontes quinhentistas
e seiscentistas quanto criou índices de densidade populacional consoante a
fertilidade e potencialidade de 28 nichos ecológicos em que dividiu o
território brasileiro. Como resultado, as estimativas do referido historiador
apontam para uma população de 2,4 milhões de pessoas no Brasil de 1500. Setenta
anos depois, em 1570, Oliveira afirma que a população indígena era de
aproximadamente 800 mil, ou seja, estava reduzida a um terço de seu volume
demográfico do início do século XVI. Em função dessa violenta redução
populacional, o pesquisador afirma que o termo descoberta tem sido evitado por
estudiosos contemporâneos, como Hemming (1978) e Todorov (1983), por exemplo,
que preferem falar em “conquista”, enquanto Marcílio (2000) fala em
“holocausto”. Por nosso turno, “extermínio”.
Thales Guaracy, assim
como John Hemming em Ouro vermelho- A
conquista dos índios brasileiros (2007) e Tzvetan Todorov, em A conquista da América – A questão do outro (2010),
opta pelo termo “conquista”. No seu recorte, João Ramalho, o homem sem passado,
é o caçador de homens. Manuel da Nóbrega é o padre gago e Mem de Sá é o comandante
em chefe do exército exterminador dos nativos brasileiros. Ao longo de toda a
narrativa de Guaracy, percebemos o desenrolar das atividades
político-econômicas de interesse da Coroa Portuguesa acerca da Colônia, em
aliança com a igreja católica, representada pela Companhia de Jesus,
especificamente nas figuras do padre Manuel da Nóbrega e de José de Anchieta. A
conquista e a dominação da terra e de todas as suas riquezas dependiam em muito
da conversão dos gentios. Como nem todos os índios tinham a “síndrome de
Tibiriçá”, era preciso “convencê-los”, não importando como. Escreve Anchieta, o
apóstolo do Brasil:
Parece-nos agora que estão as
portas abertas nesta capitania para a conversão dos gentios, se Deus Nosso
Senhor quiser dar maneira com que sejam postos debaixo de jugo, porque para
este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro, na qual mais do que em
nenhuma outra é necessário que se cumpra o compelle
eos intrare”.(GUARACY, 2015: 170)
O compelle eos intrare, mencionado por Anchieta, nos remete ao que
Agostinho (354 – 430) acreditava. Para ele, a fé cristã deveria ser espalhada a
qualquer custo, ou seja, a igreja deveria usar o medo, a força, e até a dor
para conquistar seguidores. Depois de dominados e subjugados é que estariam
aptos para receber os ensinamentos divinos. Tal qual Agostinho, Anchieta faz
uma leitura equivocada, mas consciente, da parábola do banquete (ou a parábola
da grande ceia), conforme Lucas 14:16-24. Dessa forma, se os gentios não
aceitavam o jugo pelo bem, o aceitariam pela força. E assim, o poder da Coroa,
a determinação da igreja e a força do exército de Mem de Sá, fez com que em
esplêndido berço de sangue surgisse o país que somos.
E, Sabe-se lá de onde, João Ramalho gargalha, gargalha e gargalha.
Boa leitura!
E, Sabe-se lá de onde, João Ramalho gargalha, gargalha e gargalha.
Boa leitura!
Outras leituras:
CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
__________________________. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
FRAGOSO,
João; GOUVEIA, Maria de Fátima (Orgs). O
Brasil Colonial: volume 2 (ca. 1580 – ca. 1720). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil (10 vols.). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.
MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil - um banquete no trópico. São Paulo: SENAC, 2000.
NASH, Roy. The Conquest of Brazil. New York, 1926.
NASH, Roy. The Conquest of Brazil. New York, 1926.
SCHWARCZ, Lilia M; STARLING Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.