A
verdade é uma caverna nas montanhas negras (2015) é um conto do
escritor britânico Neil Gaiman, publicado pela editora Intrínseca, ilustrado
por Eddie Campbell e traduzido para o português por Augusto Calil. Trata-se de
uma bela edição em capa dura, que se aproxima tanto do livro ilustrado quanto
da graphic novel. Isso não surpreende, uma vez que Gaiman é o autor do cultuado
Sandman, enquanto Campbell já tem uma
histórica parceria com Alan Moore. A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras consiste
em um trabalho que expõe os “limites entre texto e imagem em uma explosão de
cor e sombra, memória e arrependimento, vingança e, acima de tudo, amor”.
O conto começa com a
pergunta: “indaga se sou capaz de me perdoar?”. E no decorrer das setenta e
nove páginas que compõem a narrativa, a vida dos dois principais personagens
vai se dirigindo até o ponto em que convergirão para o mesmo vazio existencial,
o qual só poderá ser preenchido (se é que o será) se devidamente acertadas as pesadas
pendências que suas almas carregam. Como já dito no título da obra, a verdade é
uma caverna, e é exatamente a verdade (ou a busca por ela) o leitmotiv da narrativa de Gaiman. Mas
onde residiria a tal da caverna senão dentro do próprio homem, essa "montanha
negra"? E o que seria, afinal, a verdade?
Ao seu estilo, Gaiman não
vai tecer um rosário de aplicações filosóficas para discorrer sobre sua concepção de verdade.
Contudo, não podemos desconsiderar o forte teor moral e ético constituinte da
referida narrativa. Os dois principais personagens, fisicamente diferentes, em
muito se aproximam no que concerne aos seus desejos, angústias e instintos. No âmago
de cada um deles, residem arrependimentos, buscas, ambições, desejos (sejam
quais forem) e infinitas razões pelas quais viver ou morrer.
Para alguns, determinadas
verdades jamais precisam vir à tona. Para outros, apenas o conhecimento da
verdade plena é capaz de redimir e aliviar dores por tanto tempo represadas. Em
João 8:32, lê-se: “conheceis a verdade, e a verdade vos libertará”. No conto de Gaiman, por sua vez, na busca
pela caverna (ou seria pela verdade?), as personagens discorrem sobre a verdade.
Lemos:
Pegamos
uma trilha aberta pela passagem de centenas de cascos de ovelhas e cervos, e
poucos homens.
__
também a chamamos de Ilha Alada. Alguns dizem que é porque, quando vista de
cima, a ilha parece ter o formato de asas de borboleta. E não sei qual é a
verdade nisso --- falou Calum. --- “Que
é a verdade?”, disse Pilatos.
É mais difícil descer do que subir.
----
Às vezes acho que a verdade é um lugar. Para mim, é como uma cidade: pode haver
uma centena de estradas, uma centena de caminhos que, no fim, nos levarão ao
mesmo lugar. Não importa de onde venhamos. Se seguirmos na direção da verdade,
vamos alcança-la, independentemente do rumo que tomarmos.
Calum MacInes olhou para mim e nada disse.
Então:
----
Está enganado. A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras. Há somente um
caminho até lá, e um caminho apenas. Um caminho árduo e traiçoeiro. E se seguir
na direção errada, vai morrer sozinho na montanha. (GAIMAN, 2015:27).
A referência que Gaiman faz
à pergunta de Pilatos pode ser identificada nas palavras do Evangelho de João,
quando Pilatos interroga Jesus. Tem-se:
Então
lhe disse Pilatos: Logo, tu és rei?
Respondeu
Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim
de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
(JOÃO, 18:37)
Perguntou-lhe
Pilatos: Que é a verdade? Tendo dito isso, voltou aos judeus e lhes disse: Eu
não acho nele crime algum. (JOÃO, 18:38)
É costume
entre vós que eu vos solte alguém por ocasião da Páscoa; quereis, pois, que vos
solte o rei dos judeus? (JOÃO, 18:39)
Então,
gritaram todos, novamente: Não este, mas Barrabás! Ora, Barrabás era salteador.
(JOÃO, 18:40)
Neil Gaiman |
Calum MacInes e o anão, são os dois principais personagens da narrativa de
Neil Gaiman. A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras
foi lido por seu autor, pela primeira vez, no festival Graphic, no Sydney Opera
House, no ano de 2010; tendo sido publicado em uma antologia chamada Stories, recebendo o Prêmio Locus e o Prêmio Shirley Jackson, ambos na categoria de Melhor
Conto. Ao final do conto, em texto
de 2014, Neil Gaiman diz:
As Montanhas
Negras são as Black Cuillins na Ilha de Skye, também conhecida como Ilha Alada,
ou talvez Ilha das Brumas. Dizem que há uma caverna cheia de ouro por lá, e que
aqueles que a procuram para levar parte do seu ouro se tornam um pouco malignos...
(GAIMAN, 2015:80)
E voltando ao texto de
ficção, observamos o seguinte diálogo:
---
E é verdade? Ela nos torna maus?
---
... Não. A caverna se alimenta de outra coisa. Pode levar seu ouro, mas, depois,
tudo fica... --- ele fez uma pausa --- tudo fica vazio. Há menos beleza no arco-íris,
menos significado em um sermão, menos alegria em um beijo... --- Ele olhou para
a entrada da caverna, e pensei ter visto medo em seus olhos. --- Menos. (GAIMAN, 2015:53)
Considerado
um dos autores mais relevantes da contemporaneidade, Neil Gaiman merece nossa
atenção enquanto leitores e observadores da literatura produzida no século XXI.
Ler seus trabalhos é uma das melhores maneiras de exercitarmos nossa imaginação.
Outras leituras de Neil Gaiman:
1. Frangile things - short fiction and wonders
2. Coraline
3. The ocean at the end of the lane
4. The graveyard book
5. The wolves in the wall
6. American gods
7. Smoke and mirrors - short fiction and illusions
8. Neverwhere
9. Anansi boys
10. Good omens (com Terry Pratchett)
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