No Brasil há um velho
ditado que diz que “uma andorinha só não faz verão”. O ditado não diz, no
entanto, que uma andorinha só não possa começar um verão. A andorinha, conforme
dizem os dicionários, é uma ave pequena, migratória, de asas longas e
pontiagudas, que vive em bandos e se alimenta de insetos. Como todo conceito é
ao mesmo tempo delimitador e limitador, uma andorinha é isso, mas não apenas
isso. Na dúvida, é só nos atermos ao livro As
andorinhas, de Paulina Chiziane, publicado no Brasil em 2013, pela editora
Nandyala, de Belo Horizonte.
Paulina Chiziane nasceu
em Manjacaze (Moçambique), e é autora de inúmeros trabalhos literários, tendo
sido a primeira mulher moçambicana a escrever um romance. No caso, Balada de amor ao vento, de 1990. Autora
premiada, Chiziane tem vários dos seus trabalhos nos Estados Unidos, Europa, no
Brasil e em Cuba; por exemplo. As temáticas exploradas por Chiziane na sua obra
não se apartam da sua história de militante política em Moçambique, nem da sua
luta pela emancipação da mulher. Em termos bem gerais, a temática maior
recorrente na obra da referida autora é a própria condição humana no que diz
respeitos aos avanços, entraves e reveses que estão na constituição do homem do
século XX.
Da obra de Paulina
Chiziane, elencamos ventos do apocalipse (1992),
O sétimo juramento (2000), Niketche (2002), O alegre encanto da perdiz (2008), As heroínas sem nome (2008), em parceria com a escritora angolana
Dya Kassembe; As andorinhas (2009), Quero ser alguém (2010), Mão de Deus (2012), coprodução com Maria
do Carmo da Silva; Por quem vibram os
tambores do além (2013) e Eu,
mulher... por uma nova visão do mundo(2013), entre outros.
Embora Moçambique não
seja tão longe, a literatura de Paulina Chiziane ainda não alcançou, no Brasil,
o mesmo “status” que tem alcançado os trabalhos de Pepetela, José Eduardo
Agualusa e Mia Couto; por exemplo. Isso, contudo, não é um problema da autora,
mas nosso, leitores, que estamos nos privando do contato com obra tão
relevante. Mas aos poucos, Paulina Chiziane vai chegando, vai chegando. E, como
diz aquela canção de Alan Mendonça, “vou chegando, vou chegando. Trago em mim o
mundo inteiro”.
Dos livros de Paulina Chiziane
publicados no Brasil, nos chama especial atenção As andorinhas, obra constituída de três contos, sendo o primeiro
“Quem manda aqui?”, “Maundlane, o Criador” e “Mutola”. O livro é dedicado à
memória de Ricardo Chiziane, e conta, ao final, com um pequeno glossário com
termos da cultura Chope. Mas não é apenas da cultura Chope e das tradições do
povo africano que falam os textos de Chiziane. Ao longo das suas narrativas, é
possível identificar uma escrita em consonância com o amplo espectro da cultura
universal, o que põe o conto da autora, não em um patamar meramente local, como
possam querer alguns, mas em um nível universal como bem permite a constituição
e abertura da obra. Dessa forma, vemos surgirem na contística de Chiziane,
referências à guerra de Troia, quando Matibyana, o rei dos Rongas, tal qual o
famoso cavalo de Troia, se insere nos domínios do imperador, causando-lhe a
derrocada (p.34). As narrativas de As
andorinhas são recheadas de referências bíblicas quando, por exemplo,
tem-se: “Nguyuza, por que me abandonaste” (p.37), “Faz o ato de contrição e se
arrepende (p.37), “... e num barco que caminhou sobre as águas divinas” (p.41),
“... de um homem que não morre” (p.42), “De repente, ressuscitou” (p.42); entre
outros. Como não lembrar Encontro em Samarra
(1963), de John O’Hara, quando lemos: “Vou partir. Para onde? Para um lugar
onde a maldição não me alcance” (p.42). E ainda em “O que diferencia aqui e
além é a leveza e o peso” (p.75), identificam-se na mesma frase referências à
primeira parte do romance A insustentável
leveza do ser (1984 ), de Milan Kundera, denominada de “a leveza e o peso”;
bem como à primeira proposta “Leveza”, constante das Seis propostas para o próximo milênio (1990), de Italo Calvino (1923 – 1985).
O conto “Quem manda
aqui?” (p.9 – 44) já é, a partir do próprio título, um indicativo da figura do imperador
que, mesmo tendo o poder de Ngungunhar todos os homens e todas as mulheres do
planeta, não sabia que poderia ser ridicularizado, humilhado e destituído do
seu trono a partir de uma caganita que uma andorinha resolvera mandar direto no
seu olho. A narrativa desenvolvida por Chiziane toma por base a história de
Gaza, atual Moçambique, quando esteve sob o reinado do ditador Frederico Gungunhana (1850 – 1906),
cognominado o Leão de Gaza. O reinado de Mundugazi, o Ngungunhana durou de 1884
a 1895, quando foi destituído e feito prisioneiro por Joaquim Augusto Mouzinho
de Albuquerque (1855 – 1902). O desejo do imperador de se vingar de todas as
andorinhas, mantendo-as em silêncio ou exterminando-as é o leitmotiv metafórico que conduz a referida narrativa. O povo chope,
tal qual simples andorinhas consegue fazer o verão que até então se acreditava
impossível.
“Maundlane, o Criador”
(p.45 – 88), por sua vez, tem como figura principal Eduardo Chivambo Mondlane
(1920 – 1969), um dos fundadores e primeiro presidente da FRELIMO – Frente de
Libertação de Moçambique, grupo do qual a própria Chiziane fez parte, e que
lutou pela libertação de Moçambique do domínio português. Em meio às galinhas,
Chitlango se assume águia e decide que deve “perseguir a primavera como todas
as andorinhas”, pois sabe que “o ser humano não tem asas, mas voa, e a mente
foi feita de liberdade”. Dessa forma, a autora conta a história do herói moçambicano
desde o seu nascimento, vitória, traição e morte. No que diz respeito às
questões estruturais, o referido conto é longo, e a narrativa se mostra lenta e
cansativa; uma vez que a autora força a mão, em uma tentativa de liricizar os
fatos históricos, não pondo em prática a objetividade e brevidade requeridas
quando da narrativa breve, tal qual preconizam Edgar Allan Poe (1809 – 1849) e
Anton Tchekhov (1860 – 1904), por exemplo, o que não ajuda na recepção que se
tem do referido conto.
O terceiro conto,
denominado “Mutola” (p.89 – 95) é uma narrativa na qual Paulina Chiziane retoma
a metáfora da águia e da galinha, para nos contar a história de Maria de Lurdes
Mutola. A história da águia e da galinha vem da África e, possivelmente, a
autora ouviu dos seus antepassados e, por sua vez, contou e recontou para
outras gerações. A história da águia e da galinha nos foi também recontada por
James Aggrey (1875 – 1927), bem como por Leonardo Boff no seu A águia e a galinha – uma metáfora da
condição humana (1997). Na narrativa de Paulina Chiziane, a águia é a
atleta moçambicana Maria de Lurdes Mutola, que se tornou campeã de atletismo,
tendo sido a primeira moçambicana a conquistar uma medalha de ouro para
Moçambique. Nascida em Maputo, no ano de 1972, Mutola é detentora de todos os
recordes de Moçambique relativos às categorias em que concorre no atletismo. “As
águias, como as andorinhas, são filhas da liberdade” (p.90).
E é assim, pautada pela
simbologia da andorinha, que a liberdade perpassa a contística de Paulina
Chiziane na obra em questão. No que concerne à qualidade literária, o primeiro
conto consegue alcançar todos os detalhes, formais e conteudísticos, que se
espera de um grande conto. Os dois contos seguintes, “perdem” no quesito
estético-literário, mas ganham no quesito ético e moral; o que enriquece a
literatura de Paulina Chiziane. Dessa forma, a literatura da autora de Niketche é um indicativo da boa
literatura que vem de Moçambique. Como acessá-la? Simples. É só se inspirar nas
andorinhas, correndo às voltas no céu. Como toda boa literatura, a de Paulina Chiziane traz em si o mundo inteiro.
Paulina Chiziane é uma autora surpreendente, lírica e forte nas suas construções. Estive com ela em Brasília, Carlos, interessa-se sobre o Brasil. Lamento que seja tão difícil conseguir suas obras mais antigas.Parabéns pelo artigo, também gostei muito das 'Andorinhas'
ResponderExcluirQuerida Vânia, obrigado por sua visita ao blog, bem como por suas considerações sobre Paulina Chiziane. Abração.
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