quarta-feira, 20 de julho de 2016

COMO CONVERSAR COM UM FASCISTA

As pessoas que conhecem a história do Brasil, por tê-la vivido mais diretamente, como aqueles que foram vítimas da ditadura civil-militar que assombrou esse país por mais de vinte anos, assim como aqueles que se dedicam a ler, estudar e compreender a razão desse tipo de barbaridade, sabem muito bem o peso que a palavra "fascista" contém. É claro que alguns analfabetos políticos e muitos idiotas úteis  podem acreditar, do auge da sua estupidez, que aqueles foram os melhores tempos já vividos pelo Brasil. Isso se dá, entre outras coisas, pela desconstrução que, por muito tempo, tem sido operada na educação e na cultura do país, empurrando cada vez mais a população para a beira do abismo da ignorância e da idiotia. Uma telenovelinha alienante  aqui, um telejornalzinho medíocre ali e um futebolzinho também, pois, "sem um pouco de cachaça, ninguém segura esse rojão". E a quem interessa tudo isso? Aos donos do poder, certamente. Taí o Raymundo Faoro (1925 - 2003), que não me deixa mentir.

Um dia, porém, a corda da intolerância e do ódio tinha que arrebentar. Mas eis que ela ainda não arrebentou de vez; está se desfiando e seus resultados já podem ser observados nas inúmeras crises humanitárias ao redor do mundo. Das guerras e dos migrantes ao ódio contra as reformas político-sociais postas em prática em países como o  Brasil, por exemplo, o ódio disfarçado de "defesa dos direitos" e devidamente abençoado pela hipocrisia de algumas igrejas tem avançado de maneira assustadoramente rápida. E qual o objetivo? Derrubar, por meio dos chamados golpes "brandos", governos democraticamente eleitos", como o de Dilma Rousseff, no Brasil,  e desconstruir projetos notadamente voltados para as populações mais carentes.

No caso brasileiro, bem como nos casos do Paraguai e de Honduras, tudo se deu acordo com a Constituição. Essa é então a grande ameaça. O grande pânico! E assim, amparados pela lei, toda a sorte de delinquentes se acha no direito de usurpar os direitos alheios, criando todo um cotidiano baseado no autoritarismo que transforma ( ou seria transtorna?) a sociedade em uma verdadeira arena; um campo de barbárie que, embora situado no contexto da pós-modernidade, nada mais é do que a mais perfeita tradução da medievalidade em todo seu obscurantismo.

Atenta a esse circo de horrores, a esse "freak show" que tomou conta do Brasil,  é que Marcia Tiburi propõe em seu Como conversar com um fascista - Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, publicado pela editora Record no ano de 2015, confrontar o fascista com aquilo que ele mais detesta, que é o outro, por meio do diálogo. Claro está que não se trata de uma das propostas mais fáceis, uma vez que a ideia de diálogo implica em uma abertura de duas partes que desejam alcançar um mesmo objetivo, mesmo que por caminhos diferentes, sem que para isso nenhuma das partes envolvidas queira eliminar a outra, silenciando-o ou atacando-a em sus direitos. A proposta embutida no título do livro de Tiburi é provocadora, tendo em vista que aquele que age sem bases racionais não deve reconhecer o diálogo como forma racional de se chegar a um consenso sobre o que quer que seja. Rubens R. R. Casara, na apresentação que faz do livro, afirma: " (...) O fascismo, porém, não necessita de racionalizações, uma vez que se refere a dados intuitivos e imediatos, que não dependem de reflexão (ao contrário, o fascismo se alimenta de dados que não suportam qualquer juízo crítico), e, portanto,  aptos a serem incorporados por todos, com mais facilidade, pelos ignorantes" (p. 11-12). 

            Casara afirma ainda que:
O fascismo possui inegavelmente uma ideologia: uma ideologia de negação. Nega-se tudo (as diferenças, as qualidades dos opositores, as conquistas históricas, a luta de classes etc.), principalmente, o conhecimento e, em consequência, o diálogo capaz de superar a ausência de saber. O fascismo é cinza e monótono, enquanto a democracia é multicolorida e em constante movimento. A ideologia fascista, porém,  deve ser levada a sério, pois, além de nublar a percepção da realidade, produz efeitos concretos contrários ao projeto constitucional de vida digna para todos. (CASARA in TIBURI, 2015:12-13)
A observação feita por Casara é elucidadora de como tem se dado o processo sócio-político no Brasil, desde que forças ditas de esquerda conseguiram chegar ao poder, tendo as atitudes fascistas se exacerbado nos governos de Lula e Dilma. A disposição da plutocracia brasileira em não abrir mão de absolutamente nada que consista em alguma possibilidade de ascensão social dos menos favorecidos é notória. E é por esse viés que Marcia Tiburi discute a necessidade de se refletir acerca do autoritarismo que tem esparramado seus tentáculos, tal qual metástase, pelos mais variados setores da sociedade brasileira, a qual ainda é tão pueril na vivência da sua extremamente instável democracia.

Marcia Tiburi
Além da apresentação de Casara (p. 11 - 15), Como conversar com um fascista conta ainda com o prefácio "Este livro é para o que nasce" (p. 17 - 21), de autoria de Jean Wyllys, além de uma bibliografia (p. 193 - 194). Ao todo,o livro é composto de 67 (sessenta e sete) artigos escritos de maneira bastante didática, possibilitando que a densidade das questões abordadas não se constitua como obstáculo à apreciação do leitor comum. O livro de Marcia Tiburi é bastante oportuno e de leitura obrigatória para todos aqueles que ainda acreditam que um bom diálogo, seja lá com quem for, ainda pode ser uma maneira bastante eficaz de se apontar, encontrar caminhos e seguir juntos na defesa de direitos multicoloridos.


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Veja também:

Marcia Tiburi: "Autoritarismo virou a regra do nosso modo de pensar". Disponível em http://www.ocafezinho.com/2016/07/15/marcia-tiburi-autoritarismo-virou-a-regra-do-nosso-modo-de-pensar/

domingo, 10 de julho de 2016

NILTO MACIEL ENTRE MACHADOS E PERDIDOS

Os escritores, com raríssimas exceções, gostam muito de conversar. E se as conversas puderem ser acompanhadas de comida e bebida, o que não faltará é assunto. Às vezes os encontros entre escritores são meras reuniões sem a necessidade de aprofundamentos de cunho academicista, o que não impede que, tendo em vista, o nível que se espera daqueles que trabalham com a palavra, discussões aprofundadas acerca de questões universais tomem palco. Um exemplo do que afirmamos, foram as reuniões que congregavam inúmeros escritores e intelectuais na casa, especificamente na biblioteca, do bibliófilo Plínio Doyle (1906 - 2000), no Rio de Janeiro. Por essa razão e por ocorrem sempre aos sábados, as reuniões receberam o apelido de "Sabadoyles". Os encontros daquilo que se convencionou denominar de " o último salão literário do Brasil" começaram como que por acaso, no dia 25 de dezembro do ano de 1964, encerrando suas atividades no ano de 1998. Deles participaram, entre outros, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Pedro Nava e Gilberto Mendonça Telles. 

Reuniões como os "Sabadoyles" são importantes à medida que podem aproximar autores mais jovens daqueles já estabilizados no mercado editorial. Não se deve desconsiderar, contudo, a necessidade de alguns autores em ter, em alguns casos, jovens candidatos a escritores gravitando em sua órbita. Seja lá como for, encontros como aqueles promovidos por Doyle, não constituíam (nem constituem) exceção no mundo literário brasileiro. 

No Ceará, por exemplo, reuniões com o objetivo de reunir jovens (e velhos ?) escritores, costumavam acontecer na casa do escritor Nilto Maciel (1945 - 2014). O referido escritor, quase sempre por intermédio do contista Pedro Salgueiro (ou Sangreiro?), costumava abrir as portas da sua casa, para receber todos aqueles que desejavam trocar umas ideias que fossem acerca da literatura, da vida e, claro, das mulheres. Tudo, como não poderia deixar de ser, acompanhado de uns petiscos, boas doses de cerveja e, para alguns apenas, Whisky. O registro dos encontros de Nilto Maciel com seus colegas escritores está devidamente registrado na obra Como me tornei imortal - Crônicas da vida literária, publicada pela editora Armazém da cultura, no ano de 2013, em Fortaleza. Mais que um "diário de bordo" mantido por um dos autores mais representativos da literatura cearense, a obra em questão consiste em um fonte indispensável para todos aqueles que desejem conhecer a literatura produzida em terras de Alencar.

Como me tornei imortal - Crônicas da vida literária (2013) é composto de uma apresentação, escrita por Paulo Bentancur, seguida de 32 (trinta e duas crônicas).  O volume se encerra com algumas notas sobre o autor. Das trinta e duas crônicas em questão, 28 (vinte e oito) delas são perfis de escritores cearenses vistos pela ótica pra lá de particular do autor de Luz vermelha que azula (2011), quando opta por apresentar tais escritores a partir de características que lhes são bastante peculiares, ou seja, há aqueles escritores que se destacam por sua idiossincrasia sexual, aqueles dados às teorias de perseguição e desconexão discursiva; assim como aqueles (a maioria) que não resistem a uma boa cerveja gelada, não importando a hora ou local.

Nilto Maciel 
Pelo agradabilíssimo e muito bem escrito texto de Nilto Maciel, surgem Moreira Campos, Francisco Carvalho, Sânzio de Azevedo, Raymundo Netto, Carlos Nóbrega, Gilmar de Carvalho e José Alcides Pinto; entre outros. No entanto, nos chama a atenção, que apenas duas escritoras tenham recebido a atenção do cronista. São elas: Tércia Montenegro (p. 96 - 101) e Carmélia Aragão (p. 130 - 133). O que se pode deduzir a partir daí? Que o meio literário cearense ainda é dominado por escritores, ignorando que há uma enorme quantidade de mulheres (Natércia Campos, Ana Miranda, Socorro Acioli, Natércia Pontes, Fernanda Meireles, Vânia Vasconcelos), produzindo excelente literatura ou que o cronista só manteve contato mais próximo com as duas autoras citadas? A questão está posta!

As quatro crônicas que não tratam especificamente de perfis de escritores cearenses são: "Como me tornei imortal" (p. 9 - 12), "Meus amigos pelo Brasil (p. 13 - 17 ), "A velha guarda da literatura cearense" (p. 18 - 22) e "Esse mato baixo" (p. 143 - 147). Com exceção da crônica "Mestre Moreira Campos" (p. 23 - 26), sem data, todas as outras estão datadas, com local (Fortaleza), dia, mês e ano; estando todas compreendidas entre os anos de 2009 e 2011. Dessa forma, 10 (dez) crônicas são do ano de 2009, 08 (oito) de 2010, 01 (uma) sem data e 13 (treze) de 2011; perfazendo um total de 32 crônicas.

Também nos chama atenção que as crônicas da obra em análise não obedeçam uma ordenação cronológica. O que nos causa certo estranhamento, tendo em vista que, além de escritor, Nilto Maciel conhecia, como poucos, os meandros dos processos de edição de um livro. Logo, não nos é claro a razão que levou Maciel, um dos criadores da revista O Saco e membro do grupo Siriará  organizar as crônicas de Como me tornei imortal da seguinte forma: As 03 (três) primeiras crônicas são de 2010. A quarta não traz a data. Da quinta até a nona , 2009. A décima é de 2010. 11ª e 12ª são de 2009. Da 13ª até a 18ª, 2011. As 03 (três) seguintes são de 2010. As outras 03 (três), de 2009. Da 25ª até a 31ª, 2011. A 32ª, fechando o livro, é de 2010.

A ordem pensada por Nilto Maciel, para a composição estrutural das suas "crônicas da vida literária", por mais anárquica que possa parecer, não impede que tenhamos, enquanto leitores, uma compreensão da literatura cearense da segunda metade de século XX pra cá.

Trata-se de um livro leve, proporcionador de deleite e crescimento intelectual do inicio ao fim. Como me tornei imortal - Crônicas da vida literária além de indispensável, já nasceu imortal. Os leitores, os escritores, os pesquisadores e os bares, agradecidos, dizem amém!