domingo, 30 de abril de 2017

BELCHIOR: CADA UM GUARDA MAIS O SEU SEGREDO


Domingo, 23 de agosto de 2009. O programa Fantástico, da Rede Globo, noticia o desaparecimento de um ídolo da Música Popular Brasileira. Quando das chamadas para a matéria, pensei num daqueles grandes nomes que a mídia esquece por não vender mais tantos discos nem se curvar à idiotia que domina os meios de comunicação. Pensei também que o desaparecido fosse um desses "famosos" de ocasião, descoberto num desses, com o perdão das palavras, "reality shows".

Qual não foi minha triste surpresa ao saber, a palo seco, que o desaparecido em questão atendia pelo nome de Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, o Belchior, o Bel; nascido em 26 de outubro de 1946, em Sobral, interior do Ceará. E agora? Como começar a semana, sabendo que a voz que você ouve um dia sim, outro também, de manhã, de tarde e de noite, está desaparecida? Então, você começa a pensar um monte de besteiras: e se ele, por algum motivo, surtou e está andando aí pelas ruas desse imenso país, sem rumo, sem direção, sem ao menos uma fotografia 3x4 que o identifique? E se ele foi sequestrado, morto? E se está sendo mantido cativo em algum prédio abandonado, num apartamento, oitavo andar? Tudo bem, tudo bem; ele pode ter apenas viajado. E seu medo de avião? Quem ficou com madame Frigidaire? E Populus, seu cão? E agora, na hora do almoço? São perguntas que não querem calar.

A obra de Belchior é de extrema importância para a Música Popular Brasileira. Sobre ela, já começam a aparecer trabalhos que tentam esmiuçar seu caráter político, social, sentimental, poético. Entre eles, descansam sobre minha mesa uma cópia da dissertação de mestrado, de Lucílio Sérgio Bezerra Barbosa, intitulada "Pequeno perfil de um discurso (in)comum: Do sonho à queda na real na poética de Belchior" (2004), apresentada ao programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem do Departamento de Letras da UFRN. Bem como uma cópia da dissertação de mestrado, de Josely Teixeira Carlos, intitulada "Muito além de apenas um rapaz latino-americano vindo do interior: Investimentos interdiscursivos das canções de Belchior" (2007), apresentada ao programa de pós-graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará.

Estudos à parte, o certo é que Belchior simplesmente não pode sumir. Tem tanta gente nesse país que poderia sumir, desaparecer (pensou em algum político, não foi?), mas não o Belchior. E lembro daquele verso do Moraes Moreira quando da "aposentadoria" do Zico: "E agora como é que eu fico nas tardes de domingo, sem Zico no Maracanã?" Só agora entendo melhor o que o Moraes Moreira sentiu. A diferença é que o Zico apenas parara de jogar, não sumira. No meu caso, continuarei ouvindo a voz de Belchior, mas dói muito saber que ele está sumido. E agora, como é que eu fico?

Dono do verso mais bonito da Música popular Brasileira: "Estava mais angustiado, que o goleiro na hora do gol, quando você entrou em mim, como o sol no quintal", Belchior, espero, deve estar bem. Talvez, tenha apenas dado um tempo no país dos mesmos ídolos, nos filhos de Bob Dylan, nos clientes da Coca-Cola, nas aparências que já não enganam mais. Talvez Belchior tenha apenas tirado férias, para viver sua própria divina comédia humana, e não tarda voltar.

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Essa crônica está no livro Memória de peixe, de Carlos Carvalho, vencedor do Prêmio Unifor de Literatura, de 2010. Infelizmente, Belchior não voltará mais. O grande poeta da música brasileira foi encontrado morto em sua residência, hoje, 30/04/17, no Rio Grande do Sul. Sua poesia, no entanto, permanecerá sempre viva nos corações e nas cabeças daqueles que ainda não perderam a capacidade de reconhecer um grande poeta e uma bela poesia. Belchior vive!

sábado, 22 de abril de 2017

OUTROS JEITOS DE USAR A BOCA, DE RUPI KAUR

Tem-se tido a impressão de que o mundo está ficando cada vez mais hostil. Comportamentos que acreditávamos estarem mortos e sepultados surgem da tumba, para aterrorizar uma humanidade já para lá de aterrorizada. Em meio a tudo isso, sempre estiveram etnias, grupos e indivíduos para os quais esses tempos de ódio, perseguição e violência não consistem em nenhuma forma de surpresa, uma vez que sempre foram vítimas preferenciais de sistemas sócio-políticos pautados pela predominância do maior sobre o menor, do mais forte sobre o mais fraco. Dessa forma, ao longo da história da humanidade, a imposição da violência enquanto forma de dominação tem sido uma constante.

Na tentativa de confrontar tais forças hegemônicas, a Arte tem se mostrado uma grande aliada em uma guerra que não tem previsão de chegar ao seu final. O pior de tudo nessa guerra talvez seja a dificuldade de se precisar de onde virá o inimigo, o qual, inesperadamente, pode saltar de uma trincheira, de um avião, vir por meio de um drone ou estar tranquilamente acomodado na sua cama. De todos, o inimigo íntimo é, certamente, o mais letal. Seja como for, a Arte, especificamente a literatura, tem servido para dar voz aos silenciados. Contudo, a batalha não é nada fácil e, muitas vezes, é preciso lutar consigo mesmo para, só então, seguir adiante.

Nesse sentido, autores como Zygnunt Bauman, Chimamanda Ngozi Adiche, W.G. Sebald, Mia Couto, Svetlana Aleksiévitch e Teju Cole, por exemplo, são alguns dos autores cujas obras deitam olhos sobre questões que nem todo mundo deseja ver. Em meio a ensaios sociológicos, romances e novelas; a poesia tem apresentado suas armas. E assim, dos lugares mais diversos, geograficamente falando, poesias vão surgindo e vozes vão sendo ouvidas. Assim o é com a poesia de Angélica Freitas, Wislawa Szymborska, Warsan Shire e Rupi Kaur; entre muitas outras.

De Rupi Kaur, por exemplo, acaba de sair em português brasileiro o livro Outros jeitos de usar a boca (2017), publicado pela editora Planeta, com tradução de Ana Guadalupe. O referido trabalho foi publicado primeiramente de forma independente, tendo sido depois publicado nos Estados Unidos por Andrews McMeel, quando alcançou o primeiro lugar na lista do The New York Times, tendo vendido mais de um milhão de exemplares impressos. O que fez o livro de Kaur se tornar um best seller dificilmente foi o gênero poesia, mas provavelmente os temas dos quais trata a poeta, a saber: amor, sexo, liberdade, abuso, feminilidade, perda, trauma, superação etc. Assim, em um mundo de crescente misoginia e violência, a fortaleza da poesia simples de Rupi Kaur se constitui, certamente, como um diferencial para que sua leitura continue se espalhando por vários países, em diferentes idiomas.

Em língua inglesa, o livro de Kaur chama-se Milk and Honey, título que contém em si toda uma gama de significações históricas, bíblicas e mitológicas que, infelizmente, se perdem na tradução para o português brasileiro. De Leite e Mel para Outros jeitos de usar a boca, convenhamos, há uma distância bem grande. Ao longo da obra, as palavras “leite” e “mel” surgem em diversos poemas (p.66, p.99, p. 101, p.108, p. 199). A expressão “leite e mel” é bastante recorrente em textos do Oriente Médio antigo, bem como também o é na Índia, terra natal da poetisa. Para ficarmos apenas em um exemplo, na Bíblia, há passagens que fazem referência à “terra que mana leite e mel”. Em Êxodos, lê-se:

Disse ainda o SENHOR: Certamente, vi a aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento; por isso, desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-los subir daquela terra boa e ampla, terra que mana leite e mel (...). (ÊXODOS, 3.7-12)

E em Números, tem-se:

(...) por ventura, é coisa de somenos que nos fizeste subir de uma terra que mana leite e mel, para fazer-nos morrer neste deserto, senão que também queres fazer-se de príncipe sobre nós?
Nem tampouco nos trouxeste a uma terra que mana leite e mel, nem nos deste campos e vinhas em herança (...). (NÚMEROS, 16. 13-14)

Contudo, sabemos nós, que os meandros da tradução se dão em conformidade com uma série de questões editoriais das quais não temos interesse em tratar aqui. Dessa forma, o título que dá nome ao trabalho em português é adaptado do poema “Você fala demais” (os poemas não possuem títulos. Nesse caso, o título passa a ser o primeiro verso). Diz o poema: “Você fala demais/ele sussurra no meu ouvido/conheço jeitos melhores de se usar essa boca” (p.68). No Brasil, “Leite e Mel” não seria, convenhamos, tão “vendável” quanto Outros jeitos de usar a boca.
 
O livro de Rupi Kaur está dividido em quatro (04) partes: “a dor” (p. 9-42), “o amor” (p.43-78), “a ruptura” (p.79-144) e “a cura” (p.145-207). Ao todo são 186 poemas, distribuídos da seguinte forma: em “a dor” tem-se 31 poemas. Nas demais partes, respectivamente, tem-se: 33, 63 e 59. Os poemas de Kaur são geralmente curtos, alguns de apenas dois versos, mas carregados de uma força de considerável valor poético. Para tanto, a poeta não se esmerou em formas ricas ou raras; em vez disso, optou por uma escrita bastante simples, clara e objetiva sem, no entanto, perder de vista a essência subjetiva da poesia.  E embora o livro possa ser lido por partes, também pode ser lido como se fosse um único grande poema, uma vez que as temáticas tratadas se relacionam e se mostram como uma unidade. Quase todos os poemas são acompanhados de ilustrações feitas pela própria autora, as quais dialogam com o texto escrito, fazendo uma grande diferença no todo do trabalho.

Os poemas de Outros jeitos de usar a boca abrangem muitos dos questionamentos acerca do empoderamento feminino no turbulento contexto do século XXI. Dessa maneira, o eu-lírico se multifaceta, embebendo-se em solilóquios, fazendo referências às figuras do pai, da mãe, do homem, e da mulher enquanto sujeito da sua vida, do seu corpo e dos seus atos. 

A leitura da poesia de Rupi Kaur é necessária, entre outras coisas, para a discussão das relações humanas na contemporaneidade. 

Boa leitura!





segunda-feira, 10 de abril de 2017

LITERATURA E OUTRAS LINGUAGENS

Publicado pela editora Bagagem, de Campina Grande, mais um trabalho organizado pelas pesquisadoras Jaquelânia Aristides Pereira e Maria Valdênia da Silva. Trata-se do livro Literatura e outras linguagens (2016), contendo 12 (doze) artigos, produzidos por relevantes estudiosos acerca dos diálogos possíveis entre a literatura e as demais formas de linguagem. O trabalho se insere na Coleção Crítica e Ensino, objetivando não apenas apontar as aproximações das várias formas de arte e suas relações com a palavra escrita, mas também pô-las em conexão com a sala de aula, em uma demonstração de “casamento” entre teoria e prática, o que, obviamente, contribui para que a práxis pedagógica se dê de forma dialógica (como deve ser), possibilitando que o educando perceba toda a amplitude das discussões que se dão no ambiente escolar.

Dessa maneira, são variadas e oportunas as abordagens apresentadas pelos autores quando, a partir dos temas por eles escolhidos, tecem toda uma rede de possibilidades de se compreender e trabalhar a literatura em consonância com outras áreas do conhecimento. Assim sendo, o que esses educadores estão reafirmando é a necessidade de se evitar o engessamento, bem como o consequente engaiolar das diferentes epistemologias (usamos “epistemologias” aqui, no sentido apontado por Boaventura de Sousa Santos em Epistemologias do Sul, de 2010), que se dão no processo de aprendizagem-ensino nas escolas brasileiras. Por isso só, a publicação de Literatura e outras linguagens já se constitui de enorme relevância para o debate que tem se dado acerca da socialização e do compartilhamento do conhecimento como forma de formação crítica e desenvolvimento ético do educando, enquanto agente transformador da sociedade na qual está inserido.

Em uma tentativa de compreendermos o que aqui está sendo 
dito, apresentamos os artigos e seus autores na sequência em que aparecem na obra: “Poesia e dança” (p. 13 – 28), de Helder Pinheiro, “A tessitura lítero-musical de “Debussy” (p. 29 – 52), de Jaquelânia Aristides Pereira, “O texto literário e suas múltiplas linguagens” (p. 53 – 74), de Maria Valdênia da Silva, “Literatura e cinema contando as mesmas histórias: uma análise da adaptação de O segredo de Brokeback Mountain” (p. 75 – 92), de Francisco Jardes Nobre de Araújo, “A adaptação de Vidas Secas para as telas e a construção da personagem Sinhá Vitória” (p. 93 – 106), de autoria de Ailton Monteiro de Oliveira e Carlos Augusto Viana da Silva, “Na escola, Esperando Godot” (p. 107 – 124), de Francisco Carlos Carvalho da Silva e Geórgia Gardênia Brito Cavalcante Carvalho, “Contos de fadas e cinema de animação contemporâneo: reflexões sobre a formação leitora do espectador infantil” (p. 125 – 141), “Pluft, o fantasminha: a criança e o teatro em poesia” (p. 141 – 156), de Marcília Nogueira do Nascimento e Jaquelânia Aristides Pereira, “Entre rosas e espinhos: o jardim das infâncias de Guimarães Rosa e Clarice Lispector” (p.157 – 174), de Sarah Diva da Silva Ipiranga, “A leitura de romances sentimentais” (p. 175 – 186), de Kercya Nara Felipe de Castro Abrantes e Maria Valdênia da Silva, “O sentimento de estranheza do mundo: uma leitura de A paixão segundo G.H, de Clarice Lispector” (p. 187 – 200), de Paula Érica Lopes de Melo e Jaquelânia Aristides Pereira e, concluindo, “O selvagem da ópera: aspectos do romance pós-moderno” (p. 201 – 218), de José Wellington Dias Soares.

Os artigos que constituem o referido trabalho são acompanhados das referências bibliográficas que lhes deram sustentação teórica, o que contribui para que o leitor possa, caso deseje, recorrer às fontes e ampliar suas informações. A obra traz ainda notas informativas sobre os autores (p. 219 – 222), assim como uma relevante apresentação (p. 7 – 12) feita pela professora Maria Marta dos Santos Silva Nóbrega, do Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, da Universidade Federal de Campina Grande, tecendo detidos comentários acerca de cada um dos artigos presentes na obra em questão.

Assim sendo, Literatura e outras linguagens (2016) vem preencher um espaço ainda carente de trabalhos que privilegiem o interculturalidade, indispensável ao processo de aprendizagem - ensino, em uma tentativa de barrar, conter ou, quem sabe, eliminar, a imposição do pensamento abissal que se instalou no espaço das nossas salas de aula.