Saber contar uma boa
história é uma das características que torna um escritor magistral. Nesse
quesito, poderíamos elencar milhares de autores e, certamente, entre eles,
estariam inúmeros russos. As traduções da literatura russa para o português
brasileiro eram feitas a partir dos textos em francês, o que acabava por se
perder muita coisa. Hoje elas já são feitas diretamente do russo, o que ajuda
bastante no aumento da qualidade dos textos traduzidos. É o caso do romance O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov
(1891 – 1940), publicado no ano de 2009, pela editora Alfaguara/Objetiva. Nesse
caso, a tradução, diretamente do russo, ficou a critério de Zoia Prestes, tendo
sido revisada por Graziela Schneider e Irineu Franco Perpetuo.
Em O mestre e Margarida, Bulgákov nada deixa a dever aos grandes
mestres russos da narrativa. A história, ou melhor, as histórias que são
contadas no decorrer do romance são resultado da arquitetura de uma narrativa
que traz em si toda uma constelação de elementos característicos da mais pura
prosa moderna.
A história trata de um
personagem pra lá de conhecido, o próprio diabo, e é ambientada na Moscou comunista dos anos de
1930, em pleno regime stalinista de perseguições, desaparecimentos e mortes. Na
comitiva de satanás, recém-chegado a Moscou, há uma feiticeira, um homem com monóculo rachado e um gato
negro de proporções fora do comum. A chegada do “ coisa ruim” começa a provocar
uma sucessão de acontecimentos pra lá de suspeitos. Algumas pessoas começam a
ser traídas pelos seus próprios instintos, desejos e ambições. Outras enlouquecem,
adoecem, somem ou morrem. É primavera em Moscou!
De forma extremamente
original, Bulgákov traça um panorama político-cultural da sociedade russa
submetida à mão de ferro de Stalin, na qual a liberdade escasseia e a população
come, desculpe o trocadilho, o pão que o diabo amassou. Bulgákov viu tudo isso
de muito perto, o que o deixou bastante insatisfeito. Sua crescente insatisfação,
explicitada por meio de sua obra, acabou por transformá-lo em inimigo do Estado,
passando a sofrer toda sorte de censura e perseguição.
Bulgákov era contista,
dramaturgo e romancista. Entre seus trabalhos tem-se: Os dias dos Turbin (1926), A
debandada (1927)e Molière (1936);
entre inúmeros outros. A perseguição a qual foi submetido o obrigou a escrever,
secretamente, aquela que viria a ser a
sua obra máxima: O mestre e Margarida,
publicada primeiramente em forma de fascículos, pela revista soviética Moskva,
entre novembro de 1966 e janeiro de 1967. Note-se que o autor já havia
morrido no ano de 1940, mas a censura imposta à sua pessoa e à sua obra não
permitiu que o livro viesse à tona mais cedo.
Mikhail Bulgákov |
Na constituição de seu
romance, Bulgákov lança mãos dos recursos da sátira, como forma de denunciar a
vida sob o regime stalinista. Woland, o diabo, é temido por todos. Um mínimo
gesto seu é o suficiente para que um homem seja decapitado, considerado insano
e, logo, perca sua liberdade. Na Moscou de Woland, a cultura e as arte são uma ameaça. A literatura, um crime de
lesa pátria. Os artistas, subversivos. O amor, proibido. O
séquito do demônio não tem aparente controle. Não teme ninguém, a não ser o
mestre.
Como obra aberta, muitas
são as leituras que podem ser feitas a partir da obra O mestre e Margarida. No decorrer da narrativa, diversos são as
temáticas trazidas à tona. Entre tantas: o
bem, o mal, a bondade, o amor, a liberdade e a covardia. A maestria de
Bulgákov se mostra de várias maneiras, como na construção de um romance dentro
do romance; assim como na criação de diálogos e imagens, quando se contrapõem
personagens como Jesus, Pôncio Pilatos e o diabo, ou quando são colocadas lado
a lado as cidades de Moscou e Jerusalém.
Woland, o diabo, seria
uma representação de Stálin? Seu séquito aterrorizador seria sua polícia
política? Não temos como afirmar isso. O máximo que podemos dizer, e nisso
Jesus e o diabo concordam conosco, é que não existe nem o bem nem o mal, pois
nada é absoluto. E, das fraquezas humanas, a pior é a covardia.
E se numa primavera qualquer, lhe chegarem e disserem algo como: “Please, allow me to introduce myself/I’m a man of wealth and taste...”. Sugiro que você não dê atenção, pois pode ser aquela “parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente faz o bem”. Em caso de dúvida, como está dito no primeiro capítulo do romance de Bulgákov: “Nunca falem com estranhos”.