Alejandra Pizarnik |
A poesia de Alejandra Pizarnik
(1936-1972) ainda não é conhecida do grande público do Brasil. Só recentemente
é que sua obra começou a ser traduzida para o português brasileiro, com edições
publicadas pela editora Relicário, em tradução de Davis Diniz. Com maestria, Pizarnik
transitou pela poesia e pela prosa, com a mesma desenvoltura.
Antes das
publicações da poesia de Árvore de Diana (2018) e Os trabalhos e as
noites (2018), apenas a narrativa A condessa sangrenta (2011) havia
sido publicada no Brasil. No caso, pela editora Tordesilhas, com tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. Sobre a obra da poeta argentina, segue o texto "a cerimônia: os trabalhos e as noites, de Alejandra Pizarnik", de Ana Martins Marques, na apresentação do livro Os trabalhos e as noites.
* A
CERIMÔNIA
Ana
Martins Marques
Promovendo uma inversão no título clássico de Hesíodo, Os
trabalhos e os dias, poema épico composto entre o final do século 8 e o começo
do século 7 a.C., Proust publicou, em 1896, Os prazeres e os dias, uma reunião
de contos e poemas de juventude. Outra é a inversão operada no belo título
deste livro de Alejandra Pizarnik, Os trabalhos e as noites.
É possível que não haja melhor título para um livro de
poemas de Pizarnik, ou, talvez, para qualquer livro de poemas. Como indica o
verso de Emily Dickinson, “Good morning, Midnight!”, o poeta é trabalhador da
noite; seu labor é noturno, prefere o silêncio e a sombra.
Noite, silêncio, sombra são palavras-chave no vocabulário
da poesia de Pizarnik. Trata-se, aliás, de um vocabulário bastante restrito; os
poemas de Pizarnik giram em torno de um catálogo limitado de palavras e
imagens: pássaro, cinza, pedra, noite, alba, infância, vento, chuva, sombra,
silêncio, lilás… A partir de uma série reduzidíssima de elementos, Pizarnik
compõe, como num jogo combinatório, seus poemas quase sempre muito breves,
extremamente depurados, de uma terrível limpidez.
Alejandra Pizarnik nasceu Flora Pizarnik em 1936, em
Avellaneda, cidade localizada na área metropolitana de Buenos Aires. Era filha
de imigrantes russos judeus que haviam chegado à Argentina três anos antes. Seu
primeiro livro de poemas, La tierra más ajena (que assinou como Flora Alejandra
Pizarnik), foi publicado em 1955. A ele se seguiram La última inocencia, de
1956, e Las aventuras perdidas, de 1958. Em 1960, mudou-se para Paris, onde
viveria durante quatro anos e onde manteve contato com escritores como Julio
Cortázar e Octavio Paz, que escreveu uma introdução para seu livro seguinte,
Árvore de Diana (igualmente lançado pela Relicário Edições em tradução de
Davis Diniz).
Os trabalhos e as noites foi publicado em 1965, logo após o retorno de Pizarnik à Argentina. O livro é dividido em três partes, indicadas por números romanos. Ao contrário de Árvore de Diana, em que os poemas são apenas numerados, nesse livro todos os poemas têm título.
Encontram-se aqui vários dos elementos que marcam a
poética de Pizarnik: a extrema brevidade; poemas construídos em torno de um
número reduzido de palavras, quase sempre “nobres”, sem concessões ao
coloquialismo ou ao pop; a ausência quase total de lugares identificáveis,
referências históricas ou geográficas, cenas cotidianas; a atmosfera noturna (e
soturna); uma radical negatividade.
É “NO”, afinal, a palavra única, com sua única sílaba,
que a “dama pequeníssima/moradora no coração de um pássaro”, no poema Relógio,
sai à alba para pronunciar. NO de “Não”; NO de “Noche”. O fascínio da
negatividade marca a poesia de Pizarnik, em que a morte, o silêncio, o
esquecimento, a sombra estão insistentemente presentes, em que a própria
ausência está presente, e deixa, tatuada, sua marca no espaço: o ar é “tatuado
por um ausente”, o lugar é “de ausências”, o silêncio fala, fala como a noite,
fala do que não é.
É uma poética que não recusa o sujeito, ao contrário,
mas, ao mesmo tempo, mostra-o sempre cindido, deslocado, nunca coincidente
consigo mesmo: “entre mim e a que me creio” (lê-se no poema Invocações deste
livro); “Dei o salto de mim à alba” (lê-se no primeiro poema de Árvore de
Diana). Ou ainda partindo de si mesmo, como neste poema do livro Árvore de
Diana que poderia ser tomado quase como uma definição da poesia e de sua
relação com o sujeito que escreve: “explicar com palavras deste mundo/que
partiu de mim um barco levando-me”.
Essa espécie de despossessão do sujeito de si mesmo se
traduz frequentemente numa duplicação (de que são emblema os numerosos espelhos
que se encontram na poesia de Pizarnik) ou numa descoincidência entre o “eu” e
seu corpo, ou o “eu” e seu nome: “Eu deixei meu corpo junto à luz” (poema 1 de
Árvore de Diana).
Além do “eu”, encontramos na poesia de Pizarnik uma série
de personas, figuras nas quais frequentemente se identificaram figurações da
própria poeta: a viajante, a menina muda, a adormecida, a princesa na torre
mais alta, a pequena morta, a pequena esquecida, a silenciosa no deserto, além
de toda uma série de bonecas, manequins e náufragas... Entre essas personas
está Alice, a célebre personagem de Lewis Carroll, que aparece neste livro
explicitamente no poema Infância, e também se insinua em outros poemas da
autora, em especial em textos de sua última fase, por exemplo nas referências a
jardins e à rainha louca nos Textos de sombra, publicados postumamente.
Aliás, se a de Pizarnik é uma poética muito própria, ela
não se furta, no entanto, ao diálogo com outros textos e autores, o que se
revela neste livro nas muitas dedicatórias (a Eva Durrell, Cristina Campo,
Antonio Porchia, Jorge Gaitán Durán, Ivonne A. Bordelois, Théodore Fraenkel…),
nas epígrafes (de Quevedo e Cervantes) e em alguns títulos (além da relação com
Hesíodo no poema que dá nome ao livro, o título Os passos perdidos é
provavelmente uma alusão a Nadja, de André Breton, que segundo César Aira era o
livro preferido da autora, a ponto de ele sugerir que toda a poesia de Pizarnik
poderia ser vista como “uma Nadja em primeira pessoa, escrita por sua
personagem, não pelo autor”, como afirma César Aira na biografia Alejandra
Pizarnik).
Em seu livro dedicado à poeta argentina, Aira critica
veementemente o uso, muito frequente na crítica, de epítetos como “a pequena
náufraga” ou “a menina extraviada” para se referir à autora. Se Pizarnik não
poupou metáforas autobiográficas em sua poesia, diz Aira, isso, no entanto,
“não é desculpa para usá-las contra ela, sobretudo porque ao fazê-lo se está
confundindo a poesia já feita e a poesia em vias de se fazer”. As figuras são
para Alejandra motor para a escrita, um modo de continuar fazendo poesia;
identificá-las à poeta já morta, diz Aira, impede a visão do seu processo de
escrita e é um modo de reduzi-la “a uma espécie de bibelô decorativo na estante
da literatura”.
Em Os trabalhos e as noites, essas figurações
autobiográficas dividem a cena da escrita com um “tu” insistente a que muitos
poemas do livro se dirigem. Um “tu” que parece oscilar entre alguém a quem o
poema se endereçaria (frequentemente num modo amoroso, muito acentuado neste
livro), o próprio enunciador, o leitor (que pela força do dêitico vem ocupar o
lugar daquele a quem o poema se destina) e o próprio poema.
“Tu” é, aliás, a primeira palavra do primeiro texto do
livro Poema. Um “tu” que, aqui, parece referir-se ao próprio poema (o título
funcionando então como uma espécie de vocativo): “Tu fazes de minha vida/ esta
cerimônia demasiado pura”. A demanda/exigência de pureza parece atravessar a
escrita de Pizarnik, com seus versos concisos, rigorosos, reduzidos a uma
espécie de limpidez elementar: pedras preciosas. Que aqui essa exigência,
associada à vida, pareça “demasiada”, é indicativo do caráter sempre
problemático da relação entre literatura e vida, o que, no caso de Pizarnik,
adquire um viés trágico, se se leva em conta seu suicídio, em 1972, aos 36 anos.
A tentação biográfica em que frequentemente recaem as
leituras de sua obra é compreensível: a morte está no centro da poesia de
Pizarnik. “O desejo de morrer é rei”, lê-se no segundo poema deste livro,
Revelações. Em Infância, “alguém entra na morte/com os olhos abertos/como Alice
no país do já visto”. E em Silêncios, a morte, “sempre ao lado”, é afinal
identificada à própria voz que fala no poema: “A morte sempre ao lado/Escuto
seu dizer/Só me ouço”. Em Os trabalhos e as noites, no entanto, a morte divide
a cena com o amor, ainda que ausente, ainda que apenas evocado ou lembrado…
Nomear o ausente parece ser a tarefa, sempre malograda, a
que esta poesia se lança. Não por acaso, grande parte dos poemas gira em torno
da própria linguagem, e sua contraparte, o silêncio (numa dinâmica de
contrastes e inversões que também abarca outros pares na poesia de Pizarnik:
memória/olvido, morte/vida, presença/ausência, liberdade/prisão,
pássaro/gaiola...). O poema como cerimônia de nomeação (e como seu fracasso).
Recusando a bela formulação de Breton – Les mots font l’amour (As palavras não
fazem amor) –, Alejandra, que tanto bebeu do surrealismo, dirá, no poema
intitulado En esta noche, en este mundo, que “las palabras/ no hacen el amor/
hacen la ausencia/ si digo agua ¿beberé?/ si digo pan ¿comeré?”.
Essa dinâmica de presença/ausência, palavra/silêncio
encontra na poesia da autora, e em especial neste livro, uma imagem poderosa no
repetido elemento “muro”. O muro é superfície da escrita (e do desenho, ainda
que feito pelo tempo, como “a cor do tempo em um muro abandonado” no poema que
encerra este livro, como as fissuras que em Quarto só formam, em uma velha
parede, “rostos, esfinges/ mãos, clepsidras”...), mas também parece ser o
obstáculo contra o qual a linguagem se bate (“é muro é mero muro é mudo mira
morre”, lê-se no poema que toma seu título do poema anterior, A verdade desta
velha parede). No poema Madrugada (para além da noite, há neste livro muitas
alusões a essas horas de transição ou passagem entre o dia e a noite: a alba, o
crepúsculo, a madrugada...), é o próprio apagamento do “eu” que se identifica
ao apagamento da escrita, ao apagamento do poema escrito num muro:
[...]
O vento e a
chuva me apagaram
como a um
fogo, como a um poema
escrito num
muro
Numa entrevista, o poeta norte-americano Ben Lerner
afirma que o fracasso do poema em alcançar a margem direita da página é para
ele uma forma quase definidora do modo como a poesia faz com que a ausência
seja sentida como presença. Essa capacidade de presentificar a ausência pelo
vazio da página se faz sentir radicalmente nos brevíssimos poemas de Pizarnik:
a abertura de espaços em branco, a “aeração da página” (como diz Barthes do
haicai), o espaçamento em torno desses poemas sempre reduzidos parece funcionar
como materialização, presente, de algo ausente (desaparecido ou inexistente),
que os próprios poemas se esforçam por nomear.
O que se oferece, aqui, a nós, leitores, nestas primeiras
edições brasileiras da poesia de Pizarnik, é, como no poema Em teu aniversário,
uma espécie de presente negativo, presente de ausências. Agora nossa solidão
não está só.
*Texto de apresentação de Os trabalhos e
as noites, escrito para a edição da Relicário Edições (2018), por Ana Martins Marques.