sábado, 24 de outubro de 2020

A poesia de Alejandra Pizarnik

 



Alejandra Pizarnik


A poesia de Alejandra Pizarnik (1936-1972) ainda não é conhecida do grande público do Brasil. Só recentemente é que sua obra começou a ser traduzida para o português brasileiro, com edições publicadas pela editora Relicário, em tradução de Davis Diniz. Com maestria, Pizarnik transitou pela poesia e pela prosa, com a mesma desenvoltura. 

Antes das publicações da poesia de Árvore de Diana (2018) e Os trabalhos e as noites (2018), apenas a narrativa A condessa sangrenta (2011) havia sido publicada no Brasil. No caso, pela editora Tordesilhas, com tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. Sobre a obra da poeta argentina, segue o texto "a cerimônia: os trabalhos e as noites, de Alejandra Pizarnik", de Ana Martins Marques, na apresentação do livro Os trabalhos e as noites.

 

* A CERIMÔNIA

Ana Martins Marques

 

Promovendo uma inversão no título clássico de Hesíodo, Os trabalhos e os dias, poema épico composto entre o final do século 8 e o começo do século 7 a.C., Proust publicou, em 1896, Os prazeres e os dias, uma reunião de contos e poemas de juventude. Outra é a inversão operada no belo título deste livro de Alejandra Pizarnik, Os trabalhos e as noites.

 

É possível que não haja melhor título para um livro de poemas de Pizarnik, ou, talvez, para qualquer livro de poemas. Como indica o verso de Emily Dickinson, “Good morning, Midnight!”, o poeta é trabalhador da noite; seu labor é noturno, prefere o silêncio e a sombra.

 

Noite, silêncio, sombra são palavras-chave no vocabulário da poesia de Pizarnik. Trata-se, aliás, de um vocabulário bastante restrito; os poemas de Pizarnik giram em torno de um catálogo limitado de palavras e imagens: pássaro, cinza, pedra, noite, alba, infância, vento, chuva, sombra, silêncio, lilás… A partir de uma série reduzidíssima de elementos, Pizarnik compõe, como num jogo combinatório, seus poemas quase sempre muito breves, extremamente depurados, de uma terrível limpidez.

 

Alejandra Pizarnik nasceu Flora Pizarnik em 1936, em Avellaneda, cidade localizada na área metropolitana de Buenos Aires. Era filha de imigrantes russos judeus que haviam chegado à Argentina três anos antes. Seu primeiro livro de poemas, La tierra más ajena (que assinou como Flora Alejandra Pizarnik), foi publicado em 1955. A ele se seguiram La última inocencia, de 1956, e Las aventuras perdidas, de 1958. Em 1960, mudou-se para Paris, onde viveria durante quatro anos e onde manteve contato com escritores como Julio Cortázar e Octavio Paz, que escreveu uma introdução para seu livro seguinte, Árvore de Diana (igualmente lançado pela Relicário Edições em tradução de Davis Diniz).

 


Os trabalhos e as noites foi publicado em 1965, logo após o retorno de Pizarnik à Argentina. O livro é dividido em três partes, indicadas por números romanos. Ao contrário de Árvore de Diana, em que os poemas são apenas numerados, nesse livro todos os poemas têm título.

 

Encontram-se aqui vários dos elementos que marcam a poética de Pizarnik: a extrema brevidade; poemas construídos em torno de um número reduzido de palavras, quase sempre “nobres”, sem concessões ao coloquialismo ou ao pop; a ausência quase total de lugares identificáveis, referências históricas ou geográficas, cenas cotidianas; a atmosfera noturna (e soturna); uma radical negatividade.

 

É “NO”, afinal, a palavra única, com sua única sílaba, que a “dama pequeníssima/moradora no coração de um pássaro”, no poema Relógio, sai à alba para pronunciar. NO de “Não”; NO de “Noche”. O fascínio da negatividade marca a poesia de Pizarnik, em que a morte, o silêncio, o esquecimento, a sombra estão insistentemente presentes, em que a própria ausência está presente, e deixa, tatuada, sua marca no espaço: o ar é “tatuado por um ausente”, o lugar é “de ausências”, o silêncio fala, fala como a noite, fala do que não é.

 

É uma poética que não recusa o sujeito, ao contrário, mas, ao mesmo tempo, mostra-o sempre cindido, deslocado, nunca coincidente consigo mesmo: “entre mim e a que me creio” (lê-se no poema Invocações deste livro); “Dei o salto de mim à alba” (lê-se no primeiro poema de Árvore de Diana). Ou ainda partindo de si mesmo, como neste poema do livro Árvore de Diana que poderia ser tomado quase como uma definição da poesia e de sua relação com o sujeito que escreve: “explicar com palavras deste mundo/que partiu de mim um barco levando-me”.

 

Essa espécie de despossessão do sujeito de si mesmo se traduz frequentemente numa duplicação (de que são emblema os numerosos espelhos que se encontram na poesia de Pizarnik) ou numa descoincidência entre o “eu” e seu corpo, ou o “eu” e seu nome: “Eu deixei meu corpo junto à luz” (poema 1 de Árvore de Diana).

 

Além do “eu”, encontramos na poesia de Pizarnik uma série de personas, figuras nas quais frequentemente se identificaram figurações da própria poeta: a viajante, a menina muda, a adormecida, a princesa na torre mais alta, a pequena morta, a pequena esquecida, a silenciosa no deserto, além de toda uma série de bonecas, manequins e náufragas... Entre essas personas está Alice, a célebre personagem de Lewis Carroll, que aparece neste livro explicitamente no poema Infância, e também se insinua em outros poemas da autora, em especial em textos de sua última fase, por exemplo nas referências a jardins e à rainha louca nos Textos de sombra, publicados postumamente.

 

Aliás, se a de Pizarnik é uma poética muito própria, ela não se furta, no entanto, ao diálogo com outros textos e autores, o que se revela neste livro nas muitas dedicatórias (a Eva Durrell, Cristina Campo, Antonio Porchia, Jorge Gaitán Durán, Ivonne A. Bordelois, Théodore Fraenkel…), nas epígrafes (de Quevedo e Cervantes) e em alguns títulos (além da relação com Hesíodo no poema que dá nome ao livro, o título Os passos perdidos é provavelmente uma alusão a Nadja, de André Breton, que segundo César Aira era o livro preferido da autora, a ponto de ele sugerir que toda a poesia de Pizarnik poderia ser vista como “uma Nadja em primeira pessoa, escrita por sua personagem, não pelo autor”, como afirma César Aira na biografia Alejandra Pizarnik).

 

Em seu livro dedicado à poeta argentina, Aira critica veementemente o uso, muito frequente na crítica, de epítetos como “a pequena náufraga” ou “a menina extraviada” para se referir à autora. Se Pizarnik não poupou metáforas autobiográficas em sua poesia, diz Aira, isso, no entanto, “não é desculpa para usá-las contra ela, sobretudo porque ao fazê-lo se está confundindo a poesia já feita e a poesia em vias de se fazer”. As figuras são para Alejandra motor para a escrita, um modo de continuar fazendo poesia; identificá-las à poeta já morta, diz Aira, impede a visão do seu processo de escrita e é um modo de reduzi-la “a uma espécie de bibelô decorativo na estante da literatura”.

 

Em Os trabalhos e as noites, essas figurações autobiográficas dividem a cena da escrita com um “tu” insistente a que muitos poemas do livro se dirigem. Um “tu” que parece oscilar entre alguém a quem o poema se endereçaria (frequentemente num modo amoroso, muito acentuado neste livro), o próprio enunciador, o leitor (que pela força do dêitico vem ocupar o lugar daquele a quem o poema se destina) e o próprio poema.

 

“Tu” é, aliás, a primeira palavra do primeiro texto do livro Poema. Um “tu” que, aqui, parece referir-se ao próprio poema (o título funcionando então como uma espécie de vocativo): “Tu fazes de minha vida/ esta cerimônia demasiado pura”. A demanda/exigência de pureza parece atravessar a escrita de Pizarnik, com seus versos concisos, rigorosos, reduzidos a uma espécie de limpidez elementar: pedras preciosas. Que aqui essa exigência, associada à vida, pareça “demasiada”, é indicativo do caráter sempre problemático da relação entre literatura e vida, o que, no caso de Pizarnik, adquire um viés trágico, se se leva em conta seu suicídio, em 1972, aos 36 anos.

 

A tentação biográfica em que frequentemente recaem as leituras de sua obra é compreensível: a morte está no centro da poesia de Pizarnik. “O desejo de morrer é rei”, lê-se no segundo poema deste livro, Revelações. Em Infância, “alguém entra na morte/com os olhos abertos/como Alice no país do já visto”. E em Silêncios, a morte, “sempre ao lado”, é afinal identificada à própria voz que fala no poema: “A morte sempre ao lado/Escuto seu dizer/Só me ouço”. Em Os trabalhos e as noites, no entanto, a morte divide a cena com o amor, ainda que ausente, ainda que apenas evocado ou lembrado…

 

Nomear o ausente parece ser a tarefa, sempre malograda, a que esta poesia se lança. Não por acaso, grande parte dos poemas gira em torno da própria linguagem, e sua contraparte, o silêncio (numa dinâmica de contrastes e inversões que também abarca outros pares na poesia de Pizarnik: memória/olvido, morte/vida, presença/ausência, liberdade/prisão, pássaro/gaiola...). O poema como cerimônia de nomeação (e como seu fracasso). Recusando a bela formulação de Breton – Les mots font l’amour (As palavras não fazem amor) –, Alejandra, que tanto bebeu do surrealismo, dirá, no poema intitulado En esta noche, en este mundo, que “las palabras/ no hacen el amor/ hacen la ausencia/ si digo agua ¿beberé?/ si digo pan ¿comeré?”.

 

Essa dinâmica de presença/ausência, palavra/silêncio encontra na poesia da autora, e em especial neste livro, uma imagem poderosa no repetido elemento “muro”. O muro é superfície da escrita (e do desenho, ainda que feito pelo tempo, como “a cor do tempo em um muro abandonado” no poema que encerra este livro, como as fissuras que em Quarto só formam, em uma velha parede, “rostos, esfinges/ mãos, clepsidras”...), mas também parece ser o obstáculo contra o qual a linguagem se bate (“é muro é mero muro é mudo mira morre”, lê-se no poema que toma seu título do poema anterior, A verdade desta velha parede). No poema Madrugada (para além da noite, há neste livro muitas alusões a essas horas de transição ou passagem entre o dia e a noite: a alba, o crepúsculo, a madrugada...), é o próprio apagamento do “eu” que se identifica ao apagamento da escrita, ao apagamento do poema escrito num muro:

 

[...]

 

O vento e a chuva me apagaram

como a um fogo, como a um poema

escrito num muro

 

Numa entrevista, o poeta norte-americano Ben Lerner afirma que o fracasso do poema em alcançar a margem direita da página é para ele uma forma quase definidora do modo como a poesia faz com que a ausência seja sentida como presença. Essa capacidade de presentificar a ausência pelo vazio da página se faz sentir radicalmente nos brevíssimos poemas de Pizarnik: a abertura de espaços em branco, a “aeração da página” (como diz Barthes do haicai), o espaçamento em torno desses poemas sempre reduzidos parece funcionar como materialização, presente, de algo ausente (desaparecido ou inexistente), que os próprios poemas se esforçam por nomear.

 

O que se oferece, aqui, a nós, leitores, nestas primeiras edições brasileiras da poesia de Pizarnik, é, como no poema Em teu aniversário, uma espécie de presente negativo, presente de ausências. Agora nossa solidão não está só.

 

*Texto de apresentação de Os trabalhos e as noites, escrito para a edição da Relicário Edições (2018), por Ana Martins Marques. 


terça-feira, 20 de outubro de 2020

Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus.

 


O livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), faz 60 anos em 2020. Observadora atenta da realidade nacional, Carolina tinha importantes percepções acerca da sociedade brasileira, especificamente, sobre a cidade de São Paulo, os políticos e a política. A primeira entrada no diário de Carolina data de 15 de julho. A última, de 1 de janeiro de 1960. Como registro da atualidade do seu trabalho, listamos 20 passagens retiradas do seu diário.

As citações (mantivemos a ortografia original) constam da edição de 2014, da editora Ática. Assim, fazemos a referência completa apenas na primeira citação. Nas demais, indicamos somente as páginas. Vejamos o que diz Carolina sobre:

O espaço

1.       “... eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam lixo”. (JESUS, 2014, p. 32).

2.      : “... Havia pessoas que nos visitava e dizia: - Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo” (p.35)

3.      “... e quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo... Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (p. 37).

4.      “Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas” (p.85). 

Os políticos

5.      “E falamos de políticos. Quando uma senhora perguntou-me o que acho do Carlos Lacerda, respondi concientemente:

- Muito inteligente. Mas não tem inducação. É um político de cortiço. Um agitador...” (p.15).

6.      “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, nas crianças” (p.29).

7.      “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura – a fome” (p.32).

8.      “Eu quando estou com fome quero matar o Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos” (p.33).

9.      “... O que o senhor Juscelino tem te aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome” (p.35).

10.  “... Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política para melhorar nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade” (p.38).

A política

11.  “... A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia” (p.39).

12.  “Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre (...). Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores” (p.39).

13.  “... De quatro em quatro anos muda-se os políticos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as sucursais nos lares dos operários” (p.40).

14.  “... Mas o povo não está interessado nas eleições, que é o cavalo de Troia que aparece de quatro em quatro anos” (p.43).

15.  “Os políticos só aparece aqui no quarto de despejo, nas épocas eleitorais” (p.45).

16.  “Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajédias que os políticos representam em relação ao povo” (p.53).

17.  “O custo de vida faz o operário perder a simpatia pela democracia” (p.112).

18.  “... Quando eu fui almoçar fiquei nervosa porque não tinha mistura. Comecei a ficar nervosa. Vi um jornal com o retrato da deputada Conceição da Costa Neves, rasguei e puis no fogo. Nas epocas eleitoraes ela diz que luta por nós” (p.113).

19.  “O povo não sabe revoltar-se. Deviam ir no Palacio do Ibirapuera e na Assembleia e dar uma surra nestes políticos alinhavados que não sabem administrar o país” (p.129).

20.  “Você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica rodando sem pegá-la? É igual o governo do Juscelino” (p.134).

Uma das principais obras da literatura brasileira, Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, constitui-se como leitura necessária não apenas para a compreensão do Brasil dos anos cinquenta, mas para o Brasil que se vê ainda hoje, imerso em contradições e desigualdades sociais extremas. Desta forma, em meio à liquidez do século XXI, a leitura da obra de Carolina Maria de Jesus impõe-se como indispensável e urgente, pois que é um continuado e lancinante grito de alerta e denúncia.