O livro Quarto de despejo:
diário de uma favelada (1960),
de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), faz 60 anos em 2020. Observadora
atenta da realidade nacional, Carolina tinha importantes percepções acerca da sociedade
brasileira, especificamente, sobre a cidade de São Paulo, os políticos e a
política. A primeira entrada no diário de Carolina data de 15 de julho. A
última, de 1 de janeiro de 1960. Como registro da atualidade do seu trabalho,
listamos 20 passagens retiradas do seu diário.
As citações (mantivemos a ortografia original) constam da edição de 2014, da editora Ática. Assim, fazemos a referência completa apenas na primeira citação. Nas demais, indicamos somente as páginas. Vejamos o que diz Carolina sobre:
O espaço
1.
“...
eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a
sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam lixo”.
(JESUS, 2014, p. 32).
2.
: “... Havia pessoas que nos visitava e
dizia: - Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o
chiqueiro de São Paulo” (p.35)
3.
“... e quando estou na favela tenho a
impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de
despejo... Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se
ou joga-se no lixo” (p. 37).
4.
“Aquelas paisagens há de encantar os olhos
dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América
do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas” (p.85).
Os políticos
5.
“E falamos de políticos. Quando uma
senhora perguntou-me o que acho do Carlos Lacerda, respondi concientemente:
-
Muito inteligente. Mas não tem inducação. É um político de cortiço. Um
agitador...” (p.15).
6.
“O Brasil precisa ser dirigido por uma
pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende
a pensar no próximo, nas crianças” (p.29).
7.
“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu
lutava contra a escravatura – a fome” (p.32).
8.
“Eu quando estou com fome quero matar o
Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o
afeto do povo pelos políticos” (p.33).
9.
“... O que o senhor Juscelino tem te
aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E
agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá,
para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as
aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome” (p.35).
10.
“... Quando um político diz nos seus
discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política para
melhorar nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os
preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas.
Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um
orgulho que fere a nossa sensibilidade” (p.38).
A política
11.
“... A democracia está perdendo os seus
adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A
democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um
dia” (p.39).
12.
“Quem deve dirigir é quem tem capacidade.
Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro,
quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre (...). Precisamos
livrar o paiz dos políticos açambarcadores” (p.39).
13.
“... De quatro em quatro anos muda-se os
políticos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as
sucursais nos lares dos operários” (p.40).
14.
“... Mas o povo não está interessado nas
eleições, que é o cavalo de Troia que aparece de quatro em quatro anos” (p.43).
15.
“Os políticos só aparece aqui no quarto de
despejo, nas épocas eleitorais” (p.45).
16.
“Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas
dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do
lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as
trajédias que os políticos representam em relação ao povo” (p.53).
17.
“O custo de vida faz o operário perder a
simpatia pela democracia” (p.112).
18.
“... Quando eu fui almoçar fiquei nervosa
porque não tinha mistura. Comecei a ficar nervosa. Vi um jornal com o retrato
da deputada Conceição da Costa Neves, rasguei e puis no fogo. Nas epocas
eleitoraes ela diz que luta por nós” (p.113).
19.
“O povo não sabe revoltar-se. Deviam ir no
Palacio do Ibirapuera e na Assembleia e dar uma surra nestes políticos
alinhavados que não sabem administrar o país” (p.129).
20. “Você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica rodando sem pegá-la? É igual o governo do Juscelino” (p.134).
Uma das principais obras da literatura
brasileira, Quarto de
despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus,
constitui-se como leitura
necessária não apenas para a compreensão do Brasil dos anos cinquenta, mas para
o Brasil que se vê ainda hoje, imerso em contradições e desigualdades sociais
extremas. Desta forma, em meio à liquidez do século XXI, a leitura da
obra de Carolina Maria de Jesus impõe-se como indispensável e urgente, pois que
é um continuado e lancinante grito de alerta e denúncia.
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