Atores e atrizes costumam dizer que é muito mais fácil fazer chorar do que rir. Eles estão certos, pois fazer rir é uma arte que exige de todos aqueles que a exercem uma mestria que beira um dom, uma dádiva. No campo da literatura, o riso costuma exigir muito mais dos autores do que as construções semânticas que podem causar no leitor sensações de dor, nojo, indignação e cortes na carne de fazer espirrar sangue. E é esse tipo de riso que observamos nos contos “tortos” de Raymundo Netto, em seu Coisas engraçadas de não se rir (2024) que, feito faca, “cortam a carne” de leitoras e leitores, tirando-os de suas zonas de conforto e jogando-lhes na cara situações engraçadas de rir, mas também de não se rir.
Coisas engraçadas de não
se rir foi publicado no ano de 2024, com revisão de Mayara
Freitas, projeto gráfico de Dhara Sena, Raymundo Netto e Welton Travassos, com
ilustrações de Guabiras e design de Welton Travassos. O livro é constituído de 43 contos, sendo
alguns mais breves que outros, mas que seguem de muito próximo aquilo que nos
diz Edgar Allan Poe (1809 – 1849) em seu ensaio Filosofia da composição,
de 1846, ou seja, observam as questões relativas ao tamanho, unidade de efeito
e método lógico. É claro que os escritores não têm a obrigação de saber ou
seguir tais direcionamentos, mas escrever da melhor maneira que conseguir,
colocando no papel ou na tela aquilo que desejam, pois, como muito bem nos diz
Sérgio Sant’Anna (2021:157): “o conto não existe”. Assim, não deve ser
preocupação do contista dizer “o conto é isso”, “o conto é aquilo”. Mick
Jagger, acrescenta Sant’Anna, não fala sobre as coisas: ele é a própria coisa
acontecendo. E assim, mais importante que qualquer teorização, é fazer
literatura que esteja sempre na vanguarda e em conexão com a realidade que
insiste em esmagar o ser humano. No entanto, ainda conforme Sant’Anna
(2021:160), não adianta fazer arte de vanguarda se tiranizo as pessoas ao meu
redor e colaboro com o fascismo. Fazer literatura também é sobre isso.
Raymundo Netto é sabedor
dos caminhos que atravessam a cultura, a arte e a literatura. É um escritor
consciente das mudanças e dos impactos que um bom texto pode causar. Logo, ao
trançar suas narrativas com o fio do riso, Netto o faz com a semelhante
habilidade com a qual Dalton Trevisan costurava seus contos com o fio da dor,
da faca no coração. Assim, ao mergulhar nas histórias que compõem o livro de
contos em questão, percebe-se nitidamente o domínio da narrativa curta que o
autor de Os Acangapebas adquiriu ao longo do tempo. Percebe-se, a partir
de Coisas engraçadas de não se rir, um salto qualitativo na sua escrita,
que o coloca entre os melhores autores cearenses contemporâneos. Por ser
cronista (leiam do autor o livro Crônicas Absurdas de Segunda), Raymundo
Netto traz para o seu conto as minúcias que os olhos treinados do cronista e do
jornalista (o autor também é jornalista) conseguem capturar de maneira leve,
objetiva e sutil, fazendo com que suas histórias pareçam aquelas conversas que
ainda se dão a bordo de cadeiras na calçada.
E é usando de sua
habilidade enquanto escritor, que Raymundo Netto recorre ao riso como o élan
necessário para costurar as narrativas do seu mais recente trabalho. Dessa
forma, em Coisas engraçadas de não se rir, o riso se apresenta como
forma de subversão e corta tal qual a faca só lâmina de João Cabral de Melo
Neto, ou como na releitura de A palo seco, de Belchior, quando diz: “e eu
quero é que esse canto torto/feito faca corte a carne de vocês”. A subversão é,
conforme o dicionário Aurélio (2010), o ato ou o efeito de subverter (-se). É
ainda a insubordinação às leis ou às autoridades constituídas. É a revolta
contra elas. É a destruição, a transformação da ordem política, social e
econômica estabelecida. É uma revolução. Assim sendo, o verbo subverter abriga
o sentido de voltar de baixo para cima; revolver, agitar e, entre outros,
revolucionar. E é também pra isso que serve a literatura.
No conto de Raymundo
Netto, essa subversão se dá aos olhos do leitor quando o autor se utiliza do
cômico e do riso, unindo tudo aquilo a que se propõe na construção dos contos
que compõem o livro. Assim sendo, é preciso lembrar que conforme Henri Bergson
(1859 – 1941), em seu livro O Riso –
Ensaio sobre a significação da comicidade, de 1899, que apenas o humano é
cômico. Uma paisagem, afirma ele, poderá ser bela, graciosa, sublime,
insignificante ou feia; mas nunca será risível. Bergson lembra que é bastante
comum ouvirmos a expressão “o homem é o único animal que sabe rir”. Para ele,
essa expressão ficaria mais completa se a ela fosse acrescido outra que diz “um
animal que faz rir”. E assim teríamos: O homem é o único animal que ri e que
faz rir. Ainda conforme Bergson, o riso é sempre “o riso de um grupo” e “tem
uma função social”. Mas afinal, o que devemos compreender pela palavra “riso”?
O riso consiste no ato ou efeito de rir. Também pode ser compreendido como
alegria, satisfação ou coisa ridícula. Rir também significa zombar ou
ridicularizar. Destarte, o riso é por natureza, subversivo, ou seja, é algo
capaz de transformar ou destruir o que está posto, estabelecido.
Por muito tempo na
história da humanidade, o riso foi considerado pecado, coisa do diabo. Isso
ocorria, certamente, pela capacidade que tem o riso de ridicularizar;
subvertendo valores estabelecidos e tidos como imutáveis. Assim sendo, o riso
foi por muito tempo considerado não apenas um pecado mortal, mas imoral e
destruidor do Estado e da fé, por exemplo. Dessa forma, o riso foi censurado,
sendo punidos com a morte todos aqueles que ousassem desafiar a Inquisição.
Lembremos, por exemplo, das passagens nas quais os monges copistas são
assassinados no livro O Nome da Rosa (1980),
de Umberto Eco por, teoricamente estarem rindo a partir da leitura que faziam
do livro A comédia, supostamente o
segundo livro da Poética, escrito por
Aristóteles. Em tempos outros, sob
sistemas autoritários, o riso continuou a ser perseguido e criminalizado.
Muitos artistas, no entanto, utilizaram sua arte para fazer frente aos
desmandos das elites políticas, ao arcaísmo da sociedade, bem como ao Estado e
seus aparelhos ideológicos constituídos. Assim sendo, é possível afirmar que o
autor de Coisas engraçadas de não se rir se
utiliza do riso como forma de subverter determinados valores socioculturais
observáveis no espaço e no tempo da produção dos seus contos. O riso, tal como
está dito no livro de Umberto Eco, mata o temor.
E é por essa razão, entre
inúmeras outras, que Coisas engraçadas de não se rir, de Raymundo Netto, mostra-se em
consonância com seu tempo por seu caráter universal, contestatório e atemporal,
e assim o será enquanto houver alguém que, mesmo pelos cantos da boca, insista
em rir do que quer que seja.
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