terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O CHIAROSCURO DO DRAMA BECKETTIANO

Samuel Beckett
Samuel Beckett disse certa vez, que preferia a França em guerra à Irlanda em paz. Essa forte relação do autor com França talvez sirva para justificar o motivo que levou o escritor irlandês a escrever quase toda sua obra, primeiramente em francês. Muitos são os motivos, que contribuem para que um escritor opte por escrever em uma língua, que não a sua. Isso se dá, na maioria das vezes, por questões político-ideológicas ou ainda quando aquele escritor é membro de uma comunidade linguística pequena. Contudo, não era esse o caso do autor em questão, uma vez que este não era, nesse sentido, um exilado, conforme lembra Martin Esslin (1968). Perguntado certa vez sobre o motivo que o levara a escrever primeiramente em francês, Beckett respondeu: “Parce qu’em français c’est plus facile d’ecrire sans style”. Com isso, Martin Esslin compreende que, ao escrever na sua própria língua, o escritor corre o risco de se deixar levar pela liberdade que esta permite. Ao contrário, escrevendo em outra língua, este mesmo escritor seria forçado a exigir de si mesmo uma maior disciplina, objetivando dizer o que pretende com o máximo de clareza e economia de expressão. E se assim o é, acreditamos, como Esslin, que os objetivos de Beckett foram alcançados. Observando-se os principais trabalhos do autor irlandês tem-se a constatação de uma maior preocupação
por parte dele com a forma, sem, no entanto se descuidar do conteúdo. O drama beckettiano é pleno de tormentos, angústias e fantasias. Os seres humanos postos nas tragicomédias (ou seriam comitragédias?) beckettianas estão absortos em suas desequilibradas ilusões e fantasias, forçados a vivenciar o sofrimento até o máximo dos seus limites. Aos leitores de plantão, aconselha-se, no entanto, não
perder tempo tentando descobrir, compreender, explicar ou demonstrar o que, conforme Steiner (1990), esse “Mestre da nuance e do crepúsculo” quer dizer. Qualquer tentativa de se chegar a uma interpretação clara e certa, por exemplo, do estabelecimento da identidade de Godot através de uma análise crítica seria tão tola, afirma Martin Esslin, quanto tentar descobrir contornos definidos escondidos por trás do chiaroscuro de uma tela de Rembrandt pelo simples método de se raspar a tinta. Uma obra, sabemos, sempre quer dizer muito mais do que acreditamos ela possa dizer. Obras como a de Samuel Beckett estão preocupadas em transmitir, reforça Esslin, o senso de mistério, perturbação e ansiedade do autor quando confrontado com a condição humana, bem como o seu desespero diante de sua incapacidade de encontrar um sentido na existência. E é exatamente a condição humana (Beckett a chama de “condição desumana”) e a busca por um sentido na existência, que constituem o cerne da obra do autor em análise. Suas obras Esperando Godot (1952), Fim de Partida (1957) e Dias Felizes (1961), por exemplo, servem como referência para a compreensão do que afirmamos até aqui. Vejamos um pouco sobre Esperando Godot.
Era agosto de 1942. Paris estava ocupada pelas forças alemãs. A brutalidade, a prisão de alguns amigos da Resistência e o declarado anti-semitismo do regime invasor contribuíram para que Beckett abandonasse Paris, indo trabalhar como agricultor em Vaucluse, sul da França. Somente com a libertação de Paris, em 1945, é que Beckett retorna ao seu apartamento nos limites de Montparnasse, Paris. Nos cinco anos que se seguiram, o autor trabalhou incansavelmente, escrevendo algumas de suas peças mais importantes: Eleutheria, Esperando Godot e Fim de Partida. Escreve a trilogia Molloy, Malone Morre e O Inominável. Escreve ainda Mercier et Camier e Textos para Nada. De toda a obra beckettiana, Esperando Godot é, certamente, a mais conhecida e a mais encenada. Escrita em francês, Esperando Godot (Em attendant Godot) teria sido escrita no ano de 1949. De início foi rejeitada pelo mercado editorial, que ainda não possuía as ferramentas necessárias para compreender, embora possuísse ignorância suficiente para recusar grande parte da obra produzida no período. Vários empresários do meio artístico desprezaram Esperando Godot por, segundo eles, não possuir qualidade dramática. Em tempos de guerra, acreditamos, não é aconselhado atirar no próprio pé como fizeram aqueles senhores. Roger Blin, ator próximo a Jean Genet e Jean Cocteau, assumiu o risco e, sob sua direção (Blin fez o papel de Pozzo), Esperando Godot estreou no palco do Théatre de Babylone, no Boulevard Raspail, tornando-se um dos maiores sucessos do teatro do pós-guerra. Embora não tenhamos dados que possam comprovar, das quatrocentas apresentações feitas no Théatre de Babylone até os nossos dias, Esperando o Godot já deve ter sido traduzida e montada em diferentes idiomas e lugares,  se não em todo o mundo. Conforme Fábio de Souza Andrade, no prefácio à edição brasileira da obra, Godot já foi encenada por internos no interior de um presídio, em Sarajevo dividida e sitiada, com atores de várias etnias; durante o apharteid, só com negros atuando e também com um elenco composto apenas por mulheres, bem como encenações dirigidas pelo próprio Beckett. Assim, concordamos com Andrade quando este afirma que já não esperamos por Godot. É ele quem vem ao nosso encontro. Godot, afirma o autor de Beckett: O Silêncio Possível (2001), é o ausente que ganhou vida própria, deixando rastros por toda parte. Mas o que há em Esperando Godot, se sabemos nada haver em Esperando Godot?  
Conforme Martin Esslin (1968), Esperando Godot não conta uma história; explora uma situação estática. “Não acontece nada, ninguém vem, ninguém vai, é horrível”. A situação estática apontada pelo autor de O Teatro do Absurdo (1968) consiste em uma das inovações trazidas por Beckett ao teatro modernista. Se no chamado teatro convencional a ação é o que motiva o espetáculo, em Beckett é a imobilidade. E é assim que em Fim de Partida (1957), Ham and Clov, Nagg e Nell dividem um abrigo que, ao mesmo tempo, lhes é lar e confinamento. Ham está preso a uma cadeira. Nagg e Nell, seus pais, estão limitados, cada um, ao seu camburão de lixo. Suas limitações também são físicas, pois não possuem membros completos; mas apenas cotos. Em Dias Felizes (1961), Winnie e Willie dividem o palco. Enquanto Willie tem certa “mobilidade”, Winnie aparece enterrada até a cintura. O grau de imobilidade de
Winnie aumenta no segundo ato, quando estará enterrada até o pescoço.
Em Esperando Godot também não é diferente. O lugar é ermo. À beira de uma estrada, no meio do nada. Perto de uma árvore, Vladimir e Estragon, dois vagabundos esperam Godot. Ao final do primeiro ato, um menino entra em cena e avisa que o Sr. Godot não virá, mas certamente estará lá amanhã para o encontro marcado com os dois clowns. O segundo ato termina da mesma forma, com as mesmas falas. Neste caso, ditas em ordem inversa. Esslin (1968) lembra, que a sequência dos acontecimentos e o diálogo diferem em cada ato. De cada vez Vladimir e Estragon encontram outro par de personagens, Pozzo e Lucky, senhor e escravo, em diferentes circunstâncias. Em cada ato, reforça Esslin, os dois vagabundos tentam o suicídio e fracassam, por razões diversas. Tais variações, no entanto, servem apenas para enfatizar o fato de que essencialmente tudo se resume sempre à mesma coisa: a espera. Vladimir e Estragon são duplos, como os vários outros duplos de Beckett. Mas também podem ser muitos. Impossível não vê-los e não lembrarmos, por exemplo, Laurel e Hardy, o Gordo e o Magro. Ou vê-los nas figuras dos dois ladrões crucificados com Cristo. Para outros, também podem ser representações das figuras de Caim e Abel. Sobre as relações de Godot com a Bíblia protestante e o cristianismo, vejamos o que observa Harold Bloom (1995):


“... Godot é obcecado pela Bíblia protestante: Caim e Cristo pairam por perto, mas Godot não é mais Deus que o pavoroso Pozzo. Seu nome é arbitrário e sem sentido, qualquer que seja a origem, em Balzac (a quem Beckett detestava) ou na vida do próprio Beckett. Quanto ao cristianismo e Esperando Godot, Beckett foi brutalmente definitivo: “O cristianismo é uma mitologia com a qual estou perfeitamente familiarizado, e por isso a uso.” ( BLOOM, 1995:475)

Como seja, os clochards de Beckett caracterizam a incessante busca do eu, perdido (ou seria escondido, recluso?) no mais íntimo de cada um de nós, homens angustiados a esperar, esperar, esperar... 

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