sábado, 15 de fevereiro de 2014

PESSOAS COMUNS EM HEMINGWAY E CÉZANNE

Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, o mundo precisava de um novo redimensionamento. O homem já não era mais o mesmo. Novos caminhos eram mais que necessários. Assim, nos estados Unidos da América, Bob Dylan afirmava que os tempos estavam mudando. The times they are a-changing, dizia o músico. Seus versos já eram mais discutidos que os poemas de T.S.Eliot. No ritmo das mudanças, McLuhan era mais lido que Karl Marx e o consumo, esse grande deus hodierno, já surgia nas pinturas de Andy Warhol e Jean-Michel Basquiat.

Na velha Londres, David Bowie encarnava Ziggy Stardust. Caído na Terra, esse ser vindo das estrelas era capaz de assistir, ao mesmo tempo, cinqüenta telas de TV. Tratava-se, é claro, de uma releitura de Argos. E nada melhor que Argos para representar uma época capaz de fazer sentir tudo ao mesmo tempo.
Ernest Hemingway

Essa forma semiótica de ver as coisas foi denominada por críticos literários como Ihab Hassan, Leslie Fieldler, Irving Howe e Harry Living, nos anos 50 e 60, como Pós-Modernismo. Termo esse que não deve, em hipótese alguma, ser usado como sinônimo de Pós-Modernidade, pois enquanto o termo Pós-Modernidade está relacionado aos estudos sociais, Pós-Modernismo relaciona-se aos estudos culturais. Assim sendo, no centro do que se convencionará chamar de Pós-Modernismo, surgirão termos relevantes como: metalingüística, metalinguagem, metaficção e intertextualidade, entre inúmeros outros.

A intertextualidade, compreendida como a relação, o diálogo de uma arte com outra, está relacionada aos recursos que um determinado autor utiliza com o intuito de enriquecer e diversificar seu próprio trabalho. Tal recurso pode ser identificado na obra de Ernest Hemingway, por exemplo. Para Earl Rovit e Gerry Brenner (1986), a narrativa do autor de O Velho e o Mar, pode ser compreendida como um perfeito repositório da cultura Ocidental. Dessa forma, e bem à sua maneira, o renovador da moderna prosa norte-americana traz para seus contos, por exemplo, temas como literatura, música, pintura e misticismo religioso, entre várias outras temáticas.

No que concerne à pintura, para ficarmos apenas em dessas temáticas, muitos estudiosos afirmam que a prosa hemingwayniana é fortemente influenciada pela arte de Goya. Contudo, acreditamos que, muito mais que Goya, a prosa do autor de Morte na Tarde é mais forte em intertextualidades com a pintura de Paul Cézanne, o pintor francês obcecado pela perfeição técnica. A obsessão de Cézanne é tomada à risca por Hemingway na feitura da sua narrativa.O próprio Hemingway afirma em Paris é uma festa, que muito de sua técnica foi aprendida quando das observações que fazia, num museu de paris, das pinturas de Cézanne.
Paul Cézanne

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty em A Prosa do Mundo, afirma: “Os atos de pintar e escrever são praticamente autônomos, pois seus únicos mestres são a natureza e a verdade”. Paul Cézanne, por sua vez, dizia que um bom pintor era aquele capaz de pintar inclusive odores. Hemingway era, podemos afirmar, capaz de escrever inclusive odores.

Paul Cézanne e Ernest Hemingway abordam, cada um ao seu modo, temas como natureza morta, paisagens e pessoas comuns. Se tomarmos como exemplo o conto Big Two Hearted River (O rio dos dois corações), não é difícil perceber o quanto da pintura de Cézanne espraia-se na prosa de Hemingway. No referido conto, do início ao fim, o narrador conduz o protagonista Nick, passo a passo, da mesma forma como um pintor escolhe e aplica suas tintas na concepção de uma tela. Assim, enquanto Nick caminha rumo ao grande rio, o narrador pinta, digo, descreve todo o cenário, como a emoldurar a narrativa.

A relação pintura/escritura ou Cézanne/Hemingway não se limita apenas ao conto citado, mas em várias outras obras do autor de O sol também se levanta. As pessoas comuns de O velho e o mar, por exemplo, bem como aquelas de A clean well-lighted place são tão comuns quanto os jogadores de carta, de Cézanne. Comparando-os, é possível observar como a dignidade, leitmotiv da prosa de Ernest Hemingway, delas emana em todas as suas letras, cores, idéias e odores.

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