sábado, 17 de maio de 2014

PERDOE-ME TANTO LAQUÊ

Laquê, diz o dicionário Aurélio (2010:1239), é um substantivo masculino. Trata-se de um termo de origem francesa (laqué), definido como "produto com que se vaporizam os cabelos a fim de fixar o penteado". É então, uma espécie de fixador, o que, embora não deva ser confundido com um fixa dor nada impede de ser usado em um trocadilho poético. 

E é assim, em uma referência ao que vem escrito na contracapa do livro Perdoe-me tanto laquê, que discorro sobre a poesia de Juliana Gervason. Mas vamos por partes. Perdoe-me tanto laquê  é um belíssimo livrinho de poemas, de autoria de Juliana Gervason, publicado no ano de 2013 pela editora Bartlebee, de Juíz de Fora, Minas Gerais. Se gostei do livro, não posso negar que também gostei do nome da editora. Como ler Bartlebee e não lembrar do Bartleby, o imortal escrivão do conto de mesmo nome de autoria de Herman Melville (1819-1891), coisa que "eu preferia não fazer"?

A orelha direita do livro de Gervason afirma que ela "é, por natureza, mineira e caseira. Por acaso, blogueira e vlogueira. Por formação, especialista, mestre e doutora em estudos literários (...)". Gervason mantém o endereço www.obatondeclarice.com. Perdoe-me por tanto laquê é, como diz a própria autora, seu primeiro filho. Como há filhos e filhos, podemos afirmar que Gervason deu muita sorte com seu primeiro rebento. Sorte no sentido de ter "acertado na veia" na hora dar seu único filho (pelo menos por enquanto) ao mundo, uma vez que "se não tê-los, como sabê-los?". E é ao mundo a quem pertencem os filhos e os livros. Depois de nascidos, são dados a esse mundo, vasto mundo, para experimentar a liberdade, mas também para serem  expostos aos mais diferentes julgamentos. E o mundo, na maioria das vezes, se não nos propicia uma rima, muito menos nos oferta uma solução.

Perdoe-me tanto laquê é composto de trinta e dois poemas, sendo a maioria poemas curtos (alguns de dois versos apenas) e alguns haicais (três ao todo). Deixamos claro, no entanto, que a extensão dos poemas de Juliana Gervason não interfere na qualidade da sua poesia. Em busca de uma objetividade poética, a autora transforma o menos em mais de maneira bastante elíptica, aproximando-se muito daquilo que Dalton Trevisan opera no conto. Ainda no que diz respeito à estrutura da poesia de Juliana Gervason, percebemos uma aproximação da sua escrita com a poesia de outros nomes, não apenas da literatura brasileira, mas também da literatura universal. Dessa forma, ao optar por escrever seus poemas em letras minúsculas, nos remete, por exemplo, ao modus operandi de e.e.cummings (1894-1962). Sobre o poema "profanando" (p.69), observamos uma possibilidade aproximativa com a "oração do Nada", de Hemingway, presente no conto A clean well-lighted place (1926). No que concerne ao tamanho dos poemas de Juliana Gervason, somos levados a relacioná-los com a poesia da geração mimeógrafo, especialmente na figura de Ana Cristina Cesar (1952-1983). Relembrando Ana Cristina Cesar, "quase ana c" diz: " arrumo a cama exatamente como você costuma gostar/para manter o diário gozo de tê-lo expulsado de minha vida desde [então/arrumo a cama para você/mas quem se deita nela sou eu!" (p.17). A opção por poemas breves e haicais também aproximam a poesia da autora em questão da poesia praticada por Paulo Leminski (1944-1989). "das dores doía/mas era o azulejo/que alagava" (p.15), ou ainda: "como as aranhas/às vezes me pego tendo/muitos os olhos por chorar" (p.27) e "se quero ser vestal/que vestes devo/vestir?" (p.33). A poesia de Gervason também cria aproximação com a poesia de Orides Fontela (1940-1998) tanto na estrutura quanto na forma, principalmente no livro Teia, de 1996. Se no poema "Carta", Orides Fontela diz: "Da/vida/não se espera resposta"; no poema da p.53, Gervason diz: "há toneladas de solidão quando/na boca da noite/só você em seu quarto só/e o telefone toca.../e você descobre por engano/que nem o engano procura você". O poema da página 53, anteriormente referido, não possui título. Quando isso ocorre, o primeiro verso do poema passa a ser o título. No livro de Juliana Gervason, isso é recorrente. Percebemos ainda caminhar pela poesia de Perdoe-me tanto laquê, Waly Salomão (1943-2003) e Armando Freitas Filho, por exemplo.
Juliana Gervason


Mas afinal, do que trata a poesia de Juliana Gervason? Embora essa seja uma pergunta difícil de se responder quando tratamos de uma obra aberta, principalmente o texto poético, acreditamos não errar ao afirmarmos que sua poesia trata dos mesmos assuntos com os quais lidam os grandes poetas; o que a aproxima da poesia de Francisco Carvalho, Konstandinos Kavafis, Wislawa Szymborska, Jáder de Carvalho e Juan Gelman; por exemplo. Em outras palavras, a poesia contida em Perdoe-me tanto laquê trata do amor, da vida, das relações interpessoais, das idiossincrasias, solidões, carências e perdas... Tudo isso, como em boa parte da poesia de Armando Freitas Filhos e Orides Fontela, é perpassado pelo tempo. E é o tempo, e apenas ele, esse velho senhor, que pode dar resposta para pergunta tão simples e ao mesmo tempo tão complexa:
"Quando a gente cansa de tudo, quando nada mais nos surpreende a ponto de apresentar-se como novidade, a gente faz o quê em seguida?" (p.73). 

E se fossemos o tempo, diriamos ao eu-lírico para chutar a síndrome de Bartleby para bem longe, e escrever, escrever e escrever; pois a escrita (sempre) encontra amplidão em outras paragens/E nelas há sons que afagam.

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