sábado, 20 de setembro de 2014

DOS MILAGRES DE JORGE

Contar uma história, aparentemente pode ser um algo muito simples. Para alguns pode até ser a coisa mais fácil do mundo. No entanto, não é bem assim, uma vez que ao se contar uma história, há toda uma convenção de valores que devem ser lembrados, revistos e recriados, dando àquela história o arcabouço necessário para agradar a leitores gregos e troianos (russos e ucranianos também).

Jorge Amado

Há aqueles autores que, de uma sentada só, escrevem histórias que nos provocarão de uma forma ou de outra. Por outro lado, há aqueles que demoram dias, meses e até anos para compor seus textos, os quais sairão formalmente impecáveis, mas que serão incapazes de mover sequer uma única sobrancelha de um leitor para lá de hiperativo. Há, ainda, em alguns autores, principalmente nos mais jovens, uma necessidade imensa de escrever e publicar. Ao agir assim, impulsionados pelo ímpeto, os textos acabam saindo mal acabado, com aquela aparência de descaso com a forma e o conteúdo. Mais vale deixar o texto dormitar em gavetas, para que amadureça até estar pronto para ser dado ao leitor. A pressa, se o autor não demonstrar traços de genialidade, apenas atrapalhará na feitura de qualquer que seja o trabalho. A escrita precisa ser maturada, dormida e, somente acordada quando esta mesma assim o desejar. Se, como nos diz Paulo Freire (1921 – 1997): “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”, também podemos afirmar que a escrita da palavra requer antes uma leitura aprofundada do mundo com todas as nuanças que lhe constituem.     


A experiência e a maturação do autor no exercício da sua escrita podem muito bem ser observadas na história que Jorge Amado (1912 – 2001) nos conta e a qual denominou de O milagre dos pássaros (1997). Figura das mais representativas do Modernismo brasileiro, Amado faz parte dos autores didaticamente inseridos na chamada Geração de 30 do referido movimento, dominada basicamente por autores da região Nordeste, estando ao lado de Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego; bem como do gaúcho Érico Veríssimo. Autor de inúmeras obras traduzidas para mais de quarenta idiomas, Amado é, sem sombra de dúvidas, um grande contador de histórias. Das suas obras emergem os velhos marinheiros, os negros, os meninos de ruas, as prostitutas, os bêbados e os vagabundos como expoentes máximos daquela diversidade tão cedo compreendida por Gilberto Freyre (1900 – 1987) e devidamente discutida em sua obra máxima Casa Grande & Senzala (1933). Mas, “fugindo” um pouco das suas temáticas mais recorrentes, Jorge Amado também enveredou por temas mais caros como, por exemplo, a repressão militar durante o Estado Novo (1937 – 1945), tal qual está posto em Os subterrâneos da liberdade, obra em três volumes (Os ásperos tempos, Agonia da noite e A luz no túnel), de 1954. Considerado um dos romancistas mais importantes da língua portuguesa, Jorge Amado também fez das suas ao incorrer pela arte do conto. Falamos aqui, especificamente, do conto O milagre dos pássaros, publicado pela editora Record, no ano de 1997. O título do conto em questão, faz uma referência ao “Milagre dos sete pães e peixes”, tratado no Evangelho de Mateus (14:13-21) e que também aparece nos Evangelhos de Marcos (6:31-44), Lucas (9:10-17) e João (6:5-15), apresentando algumas diferenças. O conto de Jorge Amado, no entanto, não tratará de milagres do tipo que alimentam famintos com a multiplicação de peixes e pães, mas de outro tipo. A epígrafe de abertura da narrativa diz: “... do recente milagre dos pássaros acontecido em Terras de Alagoas, nas ribanceiras do rio São Francisco ... contado por Jorge Amado”. 

A narrativa de Amado tem com cenário a cidade de Piranhas, às margens do rio São Francisco e conhecida por sua muralha de pedras intransponível. A história, bem ao estilo do autor de Capitães da areia (1937), é narrada em terceira pessoa e traz como personagens principais Ubaldo Capadócio (trovador e conquistador), capitão Lindolfo Ezequiel (pistoleiro com mais de trinta mortes nas costas) e sua legítima esposa, Sabô (mulher reconhecida pela graça do corpo, andar de dança e bunda em despropósito...).

Ingredientes como esses, os quais nos fazem lembrar Dona Flor e seus dois maridos (1966), são para lá de explosivos (na verdade, cômicos), quando postos no caldeirão da literatura e misturados pelo amado bruxo. O conto de Jorge Amado tem trinta e sete páginas e é de agradável leitura. O enredo escolhido pelo autor aproxima sua narrativa de textos como Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna (1927 – 2014) e Lisbela e o Prisioneiro (1964), de Osman Lins (1924 -1978), apresentando ainda aspectos do realismo mágico como elementos de sustentação da narrativa. 

Os pássaros me dizem que Ubaldo Capadócio, ainda hoje, faz a alegria de algumas freiras em um convento em Sergipe. Será? Se mais não o digo é para não dar detalhes e nem comprometer a leitura de narrativa tão agradável e, literalmente, maravilhosa. Salve, Jorge!

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