segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Nos rastros de uma migração: representações, memórias e sensibilidades, de Vilarin B. Barros


Em meio ao caos que impera no país, somente agora consegui um tempinho para um breve descanso, uma trégua. Não que minha situação se compare em tudo àquela do senhor Martín Santomé, personagem do clássico romance La Tregua (1960), de Mario Benedetti, embora guarde certas aproximações. No entanto, é sempre bom quando conseguimos desligar nosso “disjuntor interno”, para que possamos retornar mais atentos e fortes.  Quando tudo o que nos resta é apenas cansaço, uma pausa na correria do dia-a-dia nos cai feito um cafuné, um afago, vindo daqueles a quem amamos.


Assim, o abraço da mulher amada e o sorriso da filha pequena gargalhando junto à mais velha nos enche de alegria a alma e o coração, de forma que até tentamos esquecer o esgoto político que escorre das veias abertas da republiqueta de bananas e ossos na qual transformaram o Brasil. E foi nesse clima
de momentânea calmaria, que consegui concluir a leitura do livro Nos rastros de uma migração: representações, memórias e sensibilidades, de Vilarin Barbosa Barros; publicado no ano de 2020 pela editora e-Manuscrito, resultado da dissertação do autor defendida junto à Universidade Estadual do Ceará – UECE.

Na obra em questão, o professor Barros analisa as experiências dos migrantes de Quixadá, um dos principais municípios do sertão central cearense, que deixavam suas casas e famílias em busca de melhores - pelo menos na cabeça deles - condições de vida na cidade de São Paulo. Quase sempre, o que encontravam era preconceito, xenofobia e, consequentemente, a miséria das favelas surgidas já nos anos 50, haja vista os relatos de Carolina Maria de Jesus na obra Quarto de despejo – diário de uma favelada (1960), ela mesma uma migrante.

A necessidade do recorte temporal exigido pela referida pesquisa se inicia no ano de 1973, terminando em 2001. As migrações são marcas indeléveis na pele do Brasil, que em determinados momentos da história chegaram a diminuir, mas nunca acabaram. Assim, nossos “severinos” e “macabéas” continuam, como diz o poeta, descendo do Norte pra cidade grande, com seus pés cansados e feridos. Logo, a temática abordada pelo estudioso se mostra pra lá de atual, tendo em vista que os processos migratórios não se constituem como fenômenos restritos a este ou àquele país, mas universal, com “estranhos” batendo desesperadamente às portas do mundo, sejam saídos de Quixadá, tangidos e açoitados feito “bichos” nas fronteiras dos Estados Unidos ou morrendo aos milhares nas travessias do Mediterrâneo, por exemplo.

Difícil mesmo é discutir qualquer outro assunto, seja a questão climática, o racismo, a decolonialidade, a democracia, a interculturalidade, os direitos humanos, as questões de gênero ou o avanço do neofascismo, se não se colocarem os processos migratórios no centro dos debates mundiais. Neste sentido, o texto do prof. Vilarin Barbosa Barros deita olhos sobre um assunto aparentemente local, mas que é, na verdade, universal; uma vez que dialoga com ideias observáveis em Os emigrantes (2002), de W.G. Sebald, Estranhos à nossa porta (2017), de Zygmunt Bauman e, entre outros, A imigração: ou os paradoxos da alteridade (1991), de Abdelmalek Sayad.

Destarte, são cada vez mais urgentes e necessárias discussões como as que são propostas pelo referido pesquisador, uma vez que no âmbito da cultura contemporânea é para o humano a quem todos os olhares, palavras e ações políticas, sem exceção, devem estar voltados. E se assim não o for, nada mais fará sentido, pois a vida estará em outro lugar.


terça-feira, 10 de agosto de 2021

Carolina Maria de Jesus, presente!

 

O livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), faz 60 anos em 2020. Observadora atenta da realidade nacional, Carolina tinha importantes percepções acerca da sociedade brasileira, especificamente, sobre a cidade de São Paulo, os políticos e a política. A primeira entrada no diário de Carolina data de 15 de julho. A última, de 1 de janeiro de 1960. Como registro da atualidade do seu trabalho, listamos 20 passagens retiradas do seu diário.

As citações (mantivemos a ortografia original) constam da edição de 2014, da editora Ática. Assim, fazemos a referência completa apenas na primeira citação. Nas demais, indicamos somente as páginas. Vejamos o que diz Carolina sobre:

 

O espaço

1.       “... eu classifico São Paulo assim: O Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam lixo”. (JESUS, 2014, p. 32).

2.      : “... Havia pessoas que nos visitava e dizia: - Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo” (p.35)

3.      “... e quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo... Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (p. 37).

4.      “Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas” (p.85). 

Os políticos

5.      “E falamos de políticos. Quando uma senhora perguntou-me o que acho do Carlos Lacerda, respondi concientemente:

- Muito inteligente. Mas não tem inducação. É um político de cortiço. Um agitador...” (p.15).

6.      “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, nas crianças” (p.29).

7.      “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura – a fome” (p.32).

8.      “Eu quando estou com fome quero matar o Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos” (p.33).

9.      “... O que o senhor Juscelino tem te aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome” (p.35).

10.  “... Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política para melhorar nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade” (p.38).

A política

 

11.  “... A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia” (p.39).

12.  “Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre (...). Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores” (p.39).

13.  “... De quatro em quatro anos muda-se os políticos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as sucursais nos lares dos operários” (p.40).

14.  “... Mas o povo não está interessado nas eleições, que é o cavalo de Troia que aparece de quatro em quatro anos” (p.43).

15.  “Os políticos só aparece aqui no quarto de despejo, nas épocas eleitorais” (p.45).

16.  “Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajédias que os políticos representam em relação ao povo” (p.53).

17.  “O custo de vida faz o operário perder a simpatia pela democracia” (p.112).

18.  “... Quando eu fui almoçar fiquei nervosa porque não tinha mistura. Comecei a ficar nervosa. Vi um jornal com o retrato da deputada Conceição da Costa Neves, rasguei e puis no fogo. Nas epocas eleitoraes ela diz que luta por nós” (p.113).

19.  “O povo não sabe revoltar-se. Deviam ir no Palacio do Ibirapuera e na Assembleia e dar uma surra nestes políticos alinhavados que não sabem administrar o país” (p.129).

20.  “Você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica rodando sem pegá-la? É igual o governo do Juscelino” (p.134).

 

Uma das principais obras da literatura brasileira, Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, constitui-se como leitura necessária não apenas para a compreensão do Brasil dos anos cinquenta, mas para o Brasil que se vê ainda hoje, imerso em contradições e desigualdades sociais extremas. Desta forma, em meio à liquidez do século XXI, a leitura da obra de Carolina Maria de Jesus impõe-se como indispensável e urgente, pois que é um continuado e lancinante grito de alerta e denúncia, que não pode ser silenciado.


Publicado originalmente em: https://www.brasil247.com/blog/carolina-maria-de-jesus-presente

 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Bob Dylan aos 80

 

Maio já começa dar adeus. O mês se vai, mas ficam as tristezas acumuladas que começaram a se espalhar por aqui no começo do ano de 2020. Em meio a tanta tristeza e dor, uma pausa se faz necessária para comemorarmos o aniversário de 80 anos de Bob Dylan, um dos maiores poetas do século XX, cuja existência e contribuição às artes é imensurável.




Robert Allen Zimmerman nasceu no dia 24 de maio de 1941, adotando tempos depois o pseudônimo de Bob Dylan em homenagem ao poeta galês Dylan Thomas (1914 – 1953). Ao longo da sua carreira, Dylan recebeu todos os prêmios que um artista pode almejar, o que significa o reconhecimento de público e crítica pelo trabalho que desenvolveu em todas as áreas nas quais esteve, a saber, cinema, literatura, música, artes plásticas etc. No ano de 2016, o autor de Like a rolling stone foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura por ter, segundo a Academia sueca, “criado novas expressões poéticas dentro da enorme tradição da música americana”. Dylan é, continuou a Academia, “provavelmente o maior poeta vivo”. A decisão de premiar Dylan com o Nobel de Literatura foi pra lá de acertada. Não o fazer seria como ter a oportunidade de premiar Homero ou Walt Whitman e, simplesmente, ignorar.

Mas por qual razão, em meio a uma pandemia que devasta a terra, tecer loas a Bob Dylan? Numa resposta simples e rápida seria, basicamente, por que Bob Dylan importa. E importa em todos os sentidos que dizem respeito ao estar-no-mundo, como ser humano e como poeta comprometido com a condição humana. Assim, a canção de Dylan ultrapassou há tempos os limites da própria canção, atingindo o status de poesia, fazendo com que o autor de Tarântula (1971) se tornasse referência indispensável para a compreensão sócio-histórica, política e cultural do século XX, uma vez que sua poesia é toda ela permeada não apenas por lirismo, mas por temáticas mais cruas e ácidas que abordam os direitos civis, religião, política, direitos humanos, assim como variados aspectos dos movimentos de contracultura e além. Em outras palavras, a poesia de Bob Dylan tornou-se, pela qualidade que a engendra, uma arte atemporal e universal.

Bob Dylan é um poeta contemporâneo, e como tal mantém todos os seus sentidos voltados para a observação e apreensão daquilo que constitui e transforma o ser humano. Pois, como bem define Giorgio Agamben na obra O que é o contemporâneo? E outros ensaios (2009): “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente (...). Pode-se dizer contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade (...). O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”. Assim sendo, a contemporaneidade do pensamento poético de Bob Dylan pode ser notada já nas suas primeiras produções. Como admirador de Woody Guthrie (na guitarra de Guthrie estava escrito: “essa máquina mata fascistas”), Bob Dylan já sabia muito bem por quais caminhos sua poesia deveria seguir.

Em “Blowin’ in the Wind” (1963), por exemplo, o poeta faz ecoar uma pergunta que se mantém bastante atual, embora em contexto diferente. Diz (tradução livre): “...quantas pessoas ainda terão que morrer, para que ele perceba que já se matou demais?”. Em “The Times They Are a Changing” (1964), por sua vez, o poeta conclama todos a abrirem os olhos e ficarem atentos, pois “os tempos estão mudando, ou aprendemos a nadar ou afundaremos feito pedras”. Já em “Like a rolling stone” (1965) o questionamento é sobre aqueles que possuem tudo, mas que de repente perdem. E então? “Como é se sentir assim, sem destino, como uma pedra que rola?” Os aspectos surreais observáveis em “Mr. Tambourine man”, por seu turno, aproximam-se do que se vive hoje, no que concerne ao vazio, a insônia e ao cansaço dos dias, como se estivéssemos eternamente presos em um filme de Fellini. Tem-se: “... não estou dormindo e não há nenhum lugar onde eu possa ir, pois todos os meus sentidos foram destroçados...”.

Concluímos, retomando Agamben (2009), quando diz que o poeta, enquanto contemporâneo, é uma espécie de fratura que impede o tempo de compor-se e, simultaneamente, o sangue de suturar a quebra. O poeta – o contemporâneo – continua Agamben, deve manter fixo o olhar no seu tempo. Mas o que vê quem vê o seu tempo, o sorriso demente do século? A resposta, meu amigo, está logo ali, em cada verso da poética de Bob Dylan que, aos oitenta anos, ainda tem muito a nos dizer.