domingo, 31 de agosto de 2025

O RISO FEITO FACA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE COISAS ENGRAÇADAS DE NÃO SE RIR, DE RAYMUNDO NETTO

 


Atores e atrizes costumam dizer que é muito mais fácil fazer chorar do que rir. Eles estão certos, pois fazer rir é uma arte que exige de todos aqueles que a exercem uma mestria que beira um dom, uma dádiva. No campo da literatura, o riso costuma exigir muito mais dos autores do que as construções semânticas que podem causar no leitor sensações de dor, nojo, indignação e cortes na carne de fazer espirrar sangue. E é esse tipo de riso que observamos nos contos “tortos” de Raymundo Netto, em seu Coisas engraçadas de não se rir (2024) que, feito faca, “cortam a carne” de leitoras e leitores, tirando-os de suas zonas de conforto e jogando-lhes na cara situações engraçadas de rir, mas também de não se rir.

Coisas engraçadas de não se rir foi publicado no ano de 2024, com revisão de Mayara Freitas, projeto gráfico de Dhara Sena, Raymundo Netto e Welton Travassos, com ilustrações de Guabiras e design de Welton Travassos.  O livro é constituído de 43 contos, sendo alguns mais breves que outros, mas que seguem de muito próximo aquilo que nos diz Edgar Allan Poe (1809 – 1849) em seu ensaio Filosofia da composição, de 1846, ou seja, observam as questões relativas ao tamanho, unidade de efeito e método lógico. É claro que os escritores não têm a obrigação de saber ou seguir tais direcionamentos, mas escrever da melhor maneira que conseguir, colocando no papel ou na tela aquilo que desejam, pois, como muito bem nos diz Sérgio Sant’Anna (2021:157): “o conto não existe”. Assim, não deve ser preocupação do contista dizer “o conto é isso”, “o conto é aquilo”. Mick Jagger, acrescenta Sant’Anna, não fala sobre as coisas: ele é a própria coisa acontecendo. E assim, mais importante que qualquer teorização, é fazer literatura que esteja sempre na vanguarda e em conexão com a realidade que insiste em esmagar o ser humano. No entanto, ainda conforme Sant’Anna (2021:160), não adianta fazer arte de vanguarda se tiranizo as pessoas ao meu redor e colaboro com o fascismo. Fazer literatura também é sobre isso.

Raymundo Netto é sabedor dos caminhos que atravessam a cultura, a arte e a literatura. É um escritor consciente das mudanças e dos impactos que um bom texto pode causar. Logo, ao trançar suas narrativas com o fio do riso, Netto o faz com a semelhante habilidade com a qual Dalton Trevisan costurava seus contos com o fio da dor, da faca no coração. Assim, ao mergulhar nas histórias que compõem o livro de contos em questão, percebe-se nitidamente o domínio da narrativa curta que o autor de Os Acangapebas adquiriu ao longo do tempo. Percebe-se, a partir de Coisas engraçadas de não se rir, um salto qualitativo na sua escrita, que o coloca entre os melhores autores cearenses contemporâneos. Por ser cronista (leiam do autor o livro Crônicas Absurdas de Segunda), Raymundo Netto traz para o seu conto as minúcias que os olhos treinados do cronista e do jornalista (o autor também é jornalista) conseguem capturar de maneira leve, objetiva e sutil, fazendo com que suas histórias pareçam aquelas conversas que ainda se dão a bordo de cadeiras na calçada.  

E é usando de sua habilidade enquanto escritor, que Raymundo Netto recorre ao riso como o élan necessário para costurar as narrativas do seu mais recente trabalho. Dessa forma, em Coisas engraçadas de não se rir, o riso se apresenta como forma de subversão e corta tal qual a faca só lâmina de João Cabral de Melo Neto, ou como na releitura de A palo seco, de Belchior, quando diz: “e eu quero é que esse canto torto/feito faca corte a carne de vocês”. A subversão é, conforme o dicionário Aurélio (2010), o ato ou o efeito de subverter (-se). É ainda a insubordinação às leis ou às autoridades constituídas. É a revolta contra elas. É a destruição, a transformação da ordem política, social e econômica estabelecida. É uma revolução. Assim sendo, o verbo subverter abriga o sentido de voltar de baixo para cima; revolver, agitar e, entre outros, revolucionar. E é também pra isso que serve a literatura.

No conto de Raymundo Netto, essa subversão se dá aos olhos do leitor quando o autor se utiliza do cômico e do riso, unindo tudo aquilo a que se propõe na construção dos contos que compõem o livro. Assim sendo, é preciso lembrar que conforme Henri Bergson (1859 – 1941), em seu livro O Riso – Ensaio sobre a significação da comicidade, de 1899, que apenas o humano é cômico. Uma paisagem, afirma ele, poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; mas nunca será risível. Bergson lembra que é bastante comum ouvirmos a expressão “o homem é o único animal que sabe rir”. Para ele, essa expressão ficaria mais completa se a ela fosse acrescido outra que diz “um animal que faz rir”. E assim teríamos: O homem é o único animal que ri e que faz rir. Ainda conforme Bergson, o riso é sempre “o riso de um grupo” e “tem uma função social”. Mas afinal, o que devemos compreender pela palavra “riso”? O riso consiste no ato ou efeito de rir. Também pode ser compreendido como alegria, satisfação ou coisa ridícula. Rir também significa zombar ou ridicularizar. Destarte, o riso é por natureza, subversivo, ou seja, é algo capaz de transformar ou destruir o que está posto, estabelecido.

Por muito tempo na história da humanidade, o riso foi considerado pecado, coisa do diabo. Isso ocorria, certamente, pela capacidade que tem o riso de ridicularizar; subvertendo valores estabelecidos e tidos como imutáveis. Assim sendo, o riso foi por muito tempo considerado não apenas um pecado mortal, mas imoral e destruidor do Estado e da fé, por exemplo. Dessa forma, o riso foi censurado, sendo punidos com a morte todos aqueles que ousassem desafiar a Inquisição. Lembremos, por exemplo, das passagens nas quais os monges copistas são assassinados no livro O Nome da Rosa (1980), de Umberto Eco por, teoricamente estarem rindo a partir da leitura que faziam do livro A comédia, supostamente o segundo livro da Poética, escrito por Aristóteles.  Em tempos outros, sob sistemas autoritários, o riso continuou a ser perseguido e criminalizado. Muitos artistas, no entanto, utilizaram sua arte para fazer frente aos desmandos das elites políticas, ao arcaísmo da sociedade, bem como ao Estado e seus aparelhos ideológicos constituídos. Assim sendo, é possível afirmar que o autor de Coisas engraçadas de não se rir se utiliza do riso como forma de subverter determinados valores socioculturais observáveis no espaço e no tempo da produção dos seus contos. O riso, tal como está dito no livro de Umberto Eco, mata o temor.

E é por essa razão, entre inúmeras outras, que Coisas engraçadas de não se rir, de Raymundo Netto, mostra-se em consonância com seu tempo por seu caráter universal, contestatório e atemporal, e assim o será enquanto houver alguém que, mesmo pelos cantos da boca, insista em rir do que quer que seja.

sábado, 23 de agosto de 2025

MATEUS DA SILVA E A BELEZA DO MUNDO

 

Para Mateus da Silva

(in memoriam)

 

Mateus da Silva é uma dessas figuras singulares. Artista plástico, escultor, poeta e quase um dândi às avessas. Mateus mora na cidade de Fortaleza, a terra do sol. Mas, com ou sem sol, Mateus conseguiria se virar em qualquer lugar. Conheci o Mateus, não lembro muito bem quando. Mas faz tempo, muito tempo. Não sei se tem mulher, irmãos, filhos, pai ou mãe. Apenas conheci o Mateus e me apaixonei pela sua capacidade de pintar coisas que sempre imaginei, mas que jamais saberia transformar em arte. Também me apaixonei pela sua capacidade de me oferecer quadros, que nunca me recusaria comprar. Assim, devo ter umas dez telas pintadas por ele. São abstratos, naturezas mortas e outras coisas "inclassificáveis", mas igualmente belas. Prefiro os abstratos, pois gosto de imaginar coisas, "criar" a partir daquilo que já está posto. Deduzir, inferir.

 


Já faz muito tempo que não encontro Mateus. Ele não tem dado o ar da graça. Sumiu feito leite. Mas talvez estejamos apenas em desencontro, uma vez que mudei de casa, de cidade. O fato é que sinto falta do Mateus. Por onde andará Stephen Fry? A última vez que vi Stephen Fry, digo, Mateus, foi num domingo de um ano qualquer. Ele chegou com uma pasta debaixo do braço, sentou, cruzou as pernas e, ao tomar café, disparou: "Trouxe meu livro para você ler, ajustar e escrever o prefácio". E eu: Como assim? O "livro", de umas cinquenta páginas chama-se Da Beleza do Mundo. É, na verdade, o esboço de um livro de poemas. Diga-se de passagem, poemas muito bons. Poemas que trazem em si a consistência da sensibilidade do homem Mateus, do artista plástico, do poeta. Digo esboço, pois o livro ainda não tomou forma. Ainda está impresso e fotocopiado.

 Da Beleza do Mundo está dividido em cinco partes: "Poemas pássaros", "Da beleza do mundo", "Poemas curtos", "Visita a Van Gogh (Impressões do médico)" e "Caleidoscópio (Diversos e dispersos)". No poema "Da beleza do mundo" tem-se: "Não será o exterior sombrio/nem valores dilapidados pela civilização/que erguerão muros de Berlin/em meio à minha clara visão da beleza escancarada do mundo/Meu cavalo é alado/e como os deuses/desvendo céus/Meus castelos são reais/e eu habito neles". Que lindeza!

 Naquele mesmo dia, Mateus também me deu um livro de Anna Maria Ortese chamado O pássaro da dor. Anna Maria Ortese nasceu em Roma e residiu um longo tempo em Nápoles; desde 1975 mora na Lugúria (Norte da Itália). O pássaro da dor (Il cardillo addolorato) é sua primeira obra publicada no Brasil. Na dedicatória (não aceito livros sem dedicatória) Mateus escreveu: "Para o amigo Carlos, que sabe apreciar uma boa leitura". A data da dedicatória é de abril de 2005. Desde então não mais o encontrei. Sei que ele deve estar andando por aí, botando sua "cabeça de girassol" pra pensar; maquinando o próximo trabalho, o próximo passo.

 Em outro poema, "A estada do cigano", o poeta diz: "A estada do cigano/será mais longa/percorrer as estradas/Agora está mais difícil/Existem tantas fronteiras/e os pequenos precisam estudar/Ah! Mas quando é lua cheia/coçam-me os pés/e os cavalos relincham inquietos". Não sei bem quando será lua cheia. Mas até lá, talvez os pés do poeta cocem e, das estradas das tantas fronteiras, reapareça. Por essas épocas, talvez eu já tenha conseguido pensar um prefácio que mereça estar à altura dos poemas Da Beleza do Mundo.

 

NOTA: O texto acima está publicado originalmente em:

 CARVALHO, Carlos. Memória de peixe. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2010.

 Fiz algumas alterações e o posto aqui em homenagem ao amigo Mateus da Silva, que se encantou em 2025.


 

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Arte é desacordo: o ensaio de Bob Dylan

 


Quando políticos autoritários assumem o poder, cultura e educação são as primeiras áreas atacadas. Não poderia ser diferente, uma vez que são os artistas e os educadores que doam suas vidas em defesa da formação do pensamento crítico, sendo a principal barreira capaz de deter o avanço de políticas extremistas. A arte é subversiva e, na cabeça dessas pessoas, deve ser destruída. Não custa lembrar o que Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, disse: “a arte alemã da próxima década será heroica e imperativa”, o que resultou na queima de milhares de livros, bem como na perseguição, tortura e morte de inúmeros artistas, pois, aqueles que queimam livros, mais cedo ou mais tarde começam a queimar pessoas.

Não faz muito tempo, do lado de baixo do equador, o secretário nacional da cultura daquele (des)governo extremista, cujo líder máximo é hoje réu no STF por ter tramado um golpe de estado, fez um discurso medonho em tudo semelhante ao do nazista Goebbels. Em sua asquerosa fala, o “cidadão de bem” (Alma White gargalha) afirmou que a “arte brasileira da próxima década será heroica e imperativa”. Certamente que todas as semelhanças entre os dois discursos não passam de mera coincidência retórica. Aham!

Recentemente, Donald Trump censurou os museus do país e ordenou que as exposições exaltem a “grandeza americana”. Estaria o “grande irmão” falando da imposição de uma arte nacional, heroica e imperativa?  Não sei. Só sei que já vimos esse filme antes e sabemos bem como termina. No caso, o nazismo foi derrotado, o tal do secretário de cultura voltou para a lata do lixo da qual nunca deveria ter saído, e seu chefe está prestes a puxar uns trinta anos de cana. Quanto ao pato manco, a derrocada parece vir a galope. O “laranjão” desceu pra brincar no parquinho, mas não combinou com os chineses.  

A arte sempre incomodou e continuará incomodando essa gente autoritária e tacanha, que costuma puxar o revólver sempre que se fala em cultura, uma vez que todos os seus acordos e conchavos são baseados em dinheiro, não em arte. Arte é desacordo. E é falando sobre arte (e política) que Bob Dylan inicia o ensaio sobre a música “Money Honey” (p.35-38), de Bob Miller. Diz ele: “Arte é desacordo. Dinheiro é acordo. Eu gosto de Caravaggio, você gosta de Basquiat. Nós gostamos de Frida Kahlo, e Warhol não nos toca. E é assim que a arte prospera, com embates espirituosos. É por isso que não pode haver uma forma nacional de arte. Se houver tentativas de fazer isso, as arestas se dissolvem – o esforço para considerar todas as opiniões, a vontade de não ofender ninguém. Em pouco tempo, tudo se transforma em propaganda ou comercialismo”.

O texto em questão é apenas um dos 66 ensaios constituintes do livro A filosofia da música moderna (2022), publicado no Brasil no ano de 2023, com tradução de Bruna Beber e Julia Debasse. Trata-se do primeiro livro que Dylan publica depois de receber o prêmio Nobel de literatura em 2016. A obra, como afirmam as tradutoras, é “uma aula magistral sobre a arte e o ofício da composição”, cujos textos abarcam canções de Elvis Presley, Nina Simone, The Who, Hank Williams, The Clash e Johnny Cash, por exemplo. Além disso, os ensaios de Dylan discorrem sobre como o compositor pode fugir da armadilha das rimas fáceis, e ensina como uma única sílaba pode causar um impacto para melhor ou para pior na letra de uma canção. Como se isso fosse pouco, o autor de Tarântula (1970) e Crônicas (2004) ainda discorre sobre as relações observáveis entre o bluegrass e o heavy metal, costurando tudo isso com informações que comprovam seu amplo conhecimento sobre os mais variados assuntos da cultura universal. 

Como a arte, e mais especificamente a música, não está “perdida no espaço” nem brota no canteiro da rua, antes de mergulhar nas análises Bob Dylan contextualiza a canção a ser abordada, traçando conexões com a realidade e tomando com eixo de sustentação tudo aquilo que implica naquilo que se compreende por condição humana. E assim sendo, não é nenhum exagero afirmar que A filosofia da música moderna é uma obra de arte em todos os seus aspectos, inclusive os gráficos, escrita na prosa inconfundível de Bob Dylan. Ao final da leitura de cada texto, percebe-se que aqueles ensaios não são “apenas” ensaios, mas poemas em prosa paridos pela mente única de um dos artistas mais relevantes de todos os tempos.