quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Não devo pensar em coisas ruins

 

O título do presente artigo é tomado de empréstimo do livro I must not think bad thoughts: Essays on American Empire, digital culture, posthuman porn, and sexual symbolism of Madonna’s big toe (2010), de Mark Dery que, por sua vez, tomou emprestado do disco More fun in the new world (1983), da banda de punk rock X. o referido livro foi traduzido para o português por Marcelo Duarte como Não devo pensar em coisas ruins: ensaios sobre o Império Americano, cultura digital, pornografia pós-humana e o simbolismo sexual do dedão da Madonna, também de 2010, publicado pela Editora Sulina. Os ensaios do referido crítico cultural, de teor irônico e bem humorados, desnudam a sociedade norte-americana, expondo suas chagas e contradições de maneira certeira e aprofundada, como poucos críticos da sua geração o fazem.

O livro de Dery me caiu às mãos (organizado por ele, já havia lido Flame wars: the discourse of cyberculture, de 1994, ainda sem tradução para o português brasileiro) em um momento em que reservei para mim dois dias sem pensar muito em coisas ruins, como a chacina do Rio de Janeiro, o PL daquele nobre parlamentar que tenta impedir a Policia Federal de investigar o crime organizado, os 284 Crimes Violentos Letais Intencionais – CVLI e as 41 mortes por intervenção policial ocorridas somente em outubro, no Ceará. Também me recusei a dedicar um fio de pensamento que fosse sobre se o cramunhão vai ser mantido em prisão domiciliar, preso em uma garrafa, mandado pra Papuda, Papudinha ou para a ilha de Lost. Muito “mais importante” foi ler e refletir sobre coisas como o simbolismo sexual do dedão da Madonna. Sem tempo pra pensar em coisa ruim!

Assim, larguei quase tudo (na verdade, deixei em stand by) e fui ler Mark Dery. Sinistro! Reli também Alucinação: minha vó costurou minha mãe uma mulher de costura (2023), livro de Samuel Maciel Martins, publicado pela Editora Aluá. Na sequência, reli Boceta encantada e outras historinhas (2023), livro de contos de Sarah Forte, publicado pela Editora Patuá. Lindezas!  Os poemas de Martins e os contos de Forte são belezas. E como bem nos dizem Jorge Mautner e Nelson Jacobina: “belezas são coisas acesas por dentro”. E para que as belezas não fossem apagadas, resolvi inundar o ambiente com música.  Assim, ouvi reiteradas vezes, na voz de Arrigo Barnabé, “Mal menor”, “Noite torta” e “De mais ninguém”. Na voz de Nina Simone, “To love somebody”, “Stars” e “Everything must change”. Nada de pensar em coisas (e pessoas) ruins ou “nos fatos que odiamos”, como diz a canção da banda X.

Ainda da série “Belezas são coisas acesas por dentro”, ouvi sem cessar a canção “Os passa vida”, de Osmar Júnior e Rambolde Campos, nas vozes de Nilson Chaves e Lucinha Bastos. Essa canção é de uma beleza monumental, pois contém na simplicidade da sua letra toda a complexidade de um belo poema: “Quando o sol chegou/Clareando o dia/Foi pra me socorrer da noite que eu vinha...”. De forma magistral, a composição dialoga com temas poéticos universais quando trata, por exemplo, do amor, da solidão e da saudade: “O que aperta o peito/É o tempo, é o cheiro/O amor é assim/Eu quis você pra mim/Eu quis você pra mim” ou “Eu te procurei/Te achei em minha solidão...” e “... Mandei a saudade de buscar/Pra perto de mim” e ainda: “...Um beijo no tempo segurei/E guardei pra você aqui”. A cor local também se mostra na tessitura da canção quando a cidade, que acredito deva ser Belém, surge nos versos dos poetas e dizem: “É que nessa cidade/As mangueiras falam sempre em ti/Na chuva da tarde, os passa vida/E é sempre assim”.

Como dois dias passam muito rápido, o livro de Mark Dery ainda está ali ouvindo essa nossa prosa e aguardando sua leitura ser concluída. De volta à realidade, vejo o noticiário e percebo que as coisas ruins nas quais me recusei a pensar, mesmo assim continuaram “pensando” em mim.   

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Arrigo visita Itamar ou quando Clara Crocodilo encontrou o Dragão do Mar

 

Por volta das 17h30 as pessoas já começavam a chegar. Entravam e não conseguiam desviar os olhos dos lustres que pendem do teto do majestoso Cineteatro São Luiz, casa de espetáculos cravada na Praça do Ferreira, coração da cidade de Fortaleza. A grandeza do prédio construído pelo Grupo Severiano Riberio é tanta, que nem mesmo a feiura dos tapumes da praça em reforma conseguem ofuscar sua imponente beleza. Na plateia, as pessoas começam a se acomodar, como se fossem abraçadas pela delicadeza daquele espaço. A apresentação está marcada para as 18h. Ainda há muitas cadeiras desocupadas, mas sei que isso não vai ficar assim.


Terceira fileira, bem de frente pro palco, poltrona C1. Em localização privilegiada, aguardo a entrada de Arrigo Barnabé e a Banda Isca de Polícia, que visitarão a obra de Itamar Assumpção naquele início de

noite de domingo, quando tudo o mais parece estar parado lá fora. Na divulgação do evento, lemos que a ideia do show nasceu a partir do desejo de Arrigo Barnabé de revisitar a obra de Itamar Assumpção. As luzes se apagam. No palco, Paulo Lepetit (baixista), Jean Trad (guitarra) e Marco da Costa (bateria) já ocupam seus lugares. Então, o espaço é tomado por uma voz que pergunta sem cessar: “o que tem nessa cabeça, Beleléu?”. Lá no fundo do palco, por traz da bateria, vem surgindo lentamente um senhor grisalho, de 74 anos, elegantemente vestido em um sobretudo escuro, caminhando assim de lado, como se carregasse o peso da dor. Senhoras e senhores, Arrigo Barnabé está no palco!

Nas quase duas horas que se seguiram, Arrigo Barnabé e seus músicos fizeram, sem sombra de dúvidas, um dos melhores shows que já passaram por aquele teatro. E olhe, caro leitor, que Edinardo já incendiou aquilo ali bem recentemente! E assim sendo, o público foi brindado com canções de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, mas também de autores como Ataulfo Alves (“Na cadência do samba”), Nelson Cavaquinho (“Luz negra”, “Quando eu me chamar saudade”), Orlando Silva (“Errei... Erramos”) e Arnaldo Antunes (“De mais ninguém”), por exemplo. Dessa forma, Arrigo Barnabé e sua banda desfiaram um rosário de incontornáveis canções da música brasileira, para um público atento e ávido.

E por falar em rosário, Arrigo Barnabé ainda declamou o poema “Relógio do Rosário”, do livro Claro Enigma (1951), de Carlos Drummond de Andrade, o que acabou por compensar, para mim, a ausência da canção “Isso não vai ficar assim”. A escolha do referido poema não se deu por acaso, uma vez que algumas das canções apresentadas (“De mais ninguém”, “Dor elegante”), assim como algumas das falas do artista, versam sobre a condição humana, o tempo e, principalmente, a dor. E é por esse caminho que se estrutura o poema em questão, uma vez que Drummond o tece inteiramente a partir da carga semântica da lexia dor, a qual é muito menos física, mas muito mais existencial: “Oh dor individual, afrodisíaco...”, “Dor primeira e geral esparramada...”, “Dor de tudo e de todos/Dor sem nome...”, “Dor dos bichos...”, “Dor do espaço e do caos e das esferas, do tempo que há de vir, das velhas eras!”.

O bis ficou por conta de “Fico louco”, que diz: “A gente sofre tanto/Vive muito mal/Espero que você não se esqueça”. No final, tudo que se quer talvez seja apenas isso: “...andar nas ruas da cidade agarrado contigo/Vivendo em pleno vapor, felicidade contigo”.  Afinal, como nos diz Paulo Leminski: “um homem com uma dor é muito mais elegante” e, muitas vezes, ela é tudo o que nos sobra.  

 



domingo, 31 de agosto de 2025

O RISO FEITO FACA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE COISAS ENGRAÇADAS DE NÃO SE RIR, DE RAYMUNDO NETTO

 


Atores e atrizes costumam dizer que é muito mais fácil fazer chorar do que rir. Eles estão certos, pois fazer rir é uma arte que exige de todos aqueles que a exercem uma mestria que beira um dom, uma dádiva. No campo da literatura, o riso costuma exigir muito mais dos autores do que as construções semânticas que podem causar no leitor sensações de dor, nojo, indignação e cortes na carne de fazer espirrar sangue. E é esse tipo de riso que observamos nos contos “tortos” de Raymundo Netto, em seu Coisas engraçadas de não se rir (2024) que, feito faca, “cortam a carne” de leitoras e leitores, tirando-os de suas zonas de conforto e jogando-lhes na cara situações engraçadas de rir, mas também de não se rir.

Coisas engraçadas de não se rir foi publicado no ano de 2024, com revisão de Mayara Freitas, projeto gráfico de Dhara Sena, Raymundo Netto e Welton Travassos, com ilustrações de Guabiras e design de Welton Travassos.  O livro é constituído de 43 contos, sendo alguns mais breves que outros, mas que seguem de muito próximo aquilo que nos diz Edgar Allan Poe (1809 – 1849) em seu ensaio Filosofia da composição, de 1846, ou seja, observam as questões relativas ao tamanho, unidade de efeito e método lógico. É claro que os escritores não têm a obrigação de saber ou seguir tais direcionamentos, mas escrever da melhor maneira que conseguir, colocando no papel ou na tela aquilo que desejam, pois, como muito bem nos diz Sérgio Sant’Anna (2021:157): “o conto não existe”. Assim, não deve ser preocupação do contista dizer “o conto é isso”, “o conto é aquilo”. Mick Jagger, acrescenta Sant’Anna, não fala sobre as coisas: ele é a própria coisa acontecendo. E assim, mais importante que qualquer teorização, é fazer literatura que esteja sempre na vanguarda e em conexão com a realidade que insiste em esmagar o ser humano. No entanto, ainda conforme Sant’Anna (2021:160), não adianta fazer arte de vanguarda se tiranizo as pessoas ao meu redor e colaboro com o fascismo. Fazer literatura também é sobre isso.

Raymundo Netto é sabedor dos caminhos que atravessam a cultura, a arte e a literatura. É um escritor consciente das mudanças e dos impactos que um bom texto pode causar. Logo, ao trançar suas narrativas com o fio do riso, Netto o faz com a semelhante habilidade com a qual Dalton Trevisan costurava seus contos com o fio da dor, da faca no coração. Assim, ao mergulhar nas histórias que compõem o livro de contos em questão, percebe-se nitidamente o domínio da narrativa curta que o autor de Os Acangapebas adquiriu ao longo do tempo. Percebe-se, a partir de Coisas engraçadas de não se rir, um salto qualitativo na sua escrita, que o coloca entre os melhores autores cearenses contemporâneos. Por ser cronista (leiam do autor o livro Crônicas Absurdas de Segunda), Raymundo Netto traz para o seu conto as minúcias que os olhos treinados do cronista e do jornalista (o autor também é jornalista) conseguem capturar de maneira leve, objetiva e sutil, fazendo com que suas histórias pareçam aquelas conversas que ainda se dão a bordo de cadeiras na calçada.  

E é usando de sua habilidade enquanto escritor, que Raymundo Netto recorre ao riso como o élan necessário para costurar as narrativas do seu mais recente trabalho. Dessa forma, em Coisas engraçadas de não se rir, o riso se apresenta como forma de subversão e corta tal qual a faca só lâmina de João Cabral de Melo Neto, ou como na releitura de A palo seco, de Belchior, quando diz: “e eu quero é que esse canto torto/feito faca corte a carne de vocês”. A subversão é, conforme o dicionário Aurélio (2010), o ato ou o efeito de subverter (-se). É ainda a insubordinação às leis ou às autoridades constituídas. É a revolta contra elas. É a destruição, a transformação da ordem política, social e econômica estabelecida. É uma revolução. Assim sendo, o verbo subverter abriga o sentido de voltar de baixo para cima; revolver, agitar e, entre outros, revolucionar. E é também pra isso que serve a literatura.

No conto de Raymundo Netto, essa subversão se dá aos olhos do leitor quando o autor se utiliza do cômico e do riso, unindo tudo aquilo a que se propõe na construção dos contos que compõem o livro. Assim sendo, é preciso lembrar que conforme Henri Bergson (1859 – 1941), em seu livro O Riso – Ensaio sobre a significação da comicidade, de 1899, que apenas o humano é cômico. Uma paisagem, afirma ele, poderá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; mas nunca será risível. Bergson lembra que é bastante comum ouvirmos a expressão “o homem é o único animal que sabe rir”. Para ele, essa expressão ficaria mais completa se a ela fosse acrescido outra que diz “um animal que faz rir”. E assim teríamos: O homem é o único animal que ri e que faz rir. Ainda conforme Bergson, o riso é sempre “o riso de um grupo” e “tem uma função social”. Mas afinal, o que devemos compreender pela palavra “riso”? O riso consiste no ato ou efeito de rir. Também pode ser compreendido como alegria, satisfação ou coisa ridícula. Rir também significa zombar ou ridicularizar. Destarte, o riso é por natureza, subversivo, ou seja, é algo capaz de transformar ou destruir o que está posto, estabelecido.

Por muito tempo na história da humanidade, o riso foi considerado pecado, coisa do diabo. Isso ocorria, certamente, pela capacidade que tem o riso de ridicularizar; subvertendo valores estabelecidos e tidos como imutáveis. Assim sendo, o riso foi por muito tempo considerado não apenas um pecado mortal, mas imoral e destruidor do Estado e da fé, por exemplo. Dessa forma, o riso foi censurado, sendo punidos com a morte todos aqueles que ousassem desafiar a Inquisição. Lembremos, por exemplo, das passagens nas quais os monges copistas são assassinados no livro O Nome da Rosa (1980), de Umberto Eco por, teoricamente estarem rindo a partir da leitura que faziam do livro A comédia, supostamente o segundo livro da Poética, escrito por Aristóteles.  Em tempos outros, sob sistemas autoritários, o riso continuou a ser perseguido e criminalizado. Muitos artistas, no entanto, utilizaram sua arte para fazer frente aos desmandos das elites políticas, ao arcaísmo da sociedade, bem como ao Estado e seus aparelhos ideológicos constituídos. Assim sendo, é possível afirmar que o autor de Coisas engraçadas de não se rir se utiliza do riso como forma de subverter determinados valores socioculturais observáveis no espaço e no tempo da produção dos seus contos. O riso, tal como está dito no livro de Umberto Eco, mata o temor.

E é por essa razão, entre inúmeras outras, que Coisas engraçadas de não se rir, de Raymundo Netto, mostra-se em consonância com seu tempo por seu caráter universal, contestatório e atemporal, e assim o será enquanto houver alguém que, mesmo pelos cantos da boca, insista em rir do que quer que seja.