domingo, 20 de julho de 2014

A CABEÇA DO SANTO

É tradição na rasteira política brasileira, que os homens eleitos para trabalhar pelo povo simplesmente não o façam. Se o fizessem, as escolas e hospitais seriam exemplares. Na cabeça da maioria desses senhores o importante mesmo é fazer obras e, quanto mais faraônicas forem, melhor. Assim sendo, aqui, ali e acolá vão se amontoando obras inacabadas, sem serventia alguma. Verdadeiros elefantes brancos. E não importa se o governante é da esfera federal, estadual ou municipal. Mudam-se os eleitos, mas a prática hedionda de se perpetuar através de sua megalomania ainda é uma constante na cabeça de muitos políticos. Alguns preferem usinas, outros preferem aquários, estádios, aeroportos, estátuas de santos, viadutos etc.

E como a expressão "no Ceará não tem disso não" é uma das maiores mentiras que se pode ouvir em terras de Alencar, foi por essas bandas, mais especificamente na cidade de Caridade, a cem quilômetros de Fortaleza, que um desses absurdos se perpetua. Era o ano de 1992, quando a autoridade municipal constituída, decidiu erguer uma gigantesca estátua de Santo Antônio. Encomendada a estátua, pôs-se o corpo de pé, mas devido aos fortes ventos da região a enorme cabeça do Santo jamais pode ser colocada, uma vez que o corpo de Antônio não suportaria o peso de tão enorme cabeça. E assim sendo, a cabeça foi definitivamente abandonada cerca de três quilômetros do corpo do pobre Santo. Para quem quiser vê-la bem de perto, ei-la na Rua 102, no Bairro Conjunto Habitacional, na cidade de Caridade, interior do Ceará. 

Gabriela García Márquez
Se tais informações não tivessem sido noticiadas pela imprensa, mas nos tivessem sido contadas; poderíamos acreditar trata-se perfeitamente de uma história recheada do mais puro, curioso e belo realismo mágico bem ao gosto de Gabriel García Márquez (1927 - 2014). E quem ousaria afirmar, com a mais perfeita exatidão, a quantidade de Macondos que existem nas cidades perdidas  nos lugares mais recônditos desse imenso país? E dizem que para um bom escritor, meia história basta. Imagine uma história inteira! E é a partir dessa curiosa história inteira que a escritora Socorro Acioli desenvolve seu romance, denominado de A cabeça do santo, publicado pela Companhia das Letras, no ano de 2014. Acioli é natural de Fortaleza, tendo sido vencedora do Prêmio Jabuti de literatura infantil em 2013, com o livro Ela tem olhos de chuva. É a autora quem nos diz que "as primeiras ideias deste romance foram escritas em 2006 para a oficina de criação e roteiro "Como contar um conto", ministrada por Gabriel García Márquez na Escuela de Cine y TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba, entre 2 e 5 de dezembro". A influência do autor de Cem Anos de Solidão (1967) sobre a obra de Acioli já pode ser notada desde o amarelo da capa, em uma aproximação que lembra a rosa amarela tão utilizada por Márquez, até trechos que lembram o estilo do consagrado autor. Por exemplo, no capítulo "Cachorro", tem-se: "A primeira da família a saber o dia da própria morte foi a tataravó, Mafalda (...) e as palavras que não se dizem ao morto queimam na boca pra sempre". No capítulo "Contas", por sua vez, tem-se: "Talvez dali, junto aos pés do santo, ele visse a lua. Anos de lua e solidão" (p.150). E quantos anos de solidão seriam? 

O romance de Socorro Acioli está dividido em quatro partes, cada uma delas contendo pequenos capítulos, o que facilita a leitura, possibilitando que o leitor "se apegue mais ao livro" e não o queira soltar até que a leitura se conclua. O cenário no qual a narrativa é situada é a cidade de Candeia, no interior do Ceará, praticamente abandonada e esquecida no tempo. São poucos os viventes que ainda teimam em morar naquele pedaço de mundo amaldiçoado por um "santo degolado", aparentemente esquecido por Deus. E embora o termo "candeia" signifique "força para fazer algo", "lamparina", "candeeiro", "luminária" e "luz"; não é nada disso que se percebe nessa "terrinha" de fim de mundo. O que se tem é um cenário de esquecimento, perda, obscuridade, desencanto e dor. Uma descrição da cidade pode ser lida no capítulo "Café" (p.17). Lê-se: "Candeia era quase nada. Não mais que vinte casas mortas, uma igrejinha velha, um resto de praça... Nem o ar tinha esperança de ser vento".

Samuel, o personagem principal da narrativa é, como seu próprio nome indica, uma espécie de profeta, "um pedido de Deus". O homem que, atendendo ao pedido da mãe moribunda, deveria ir até a cidade de Candeia na tentativa de reencontrar sua avó e seu pai. E é exatamente isso que fará em um périplo quase épico, enfrentando o sol inclemente do sertão cearense, a dor,  solidão,  miséria e  fome. Ao nascer, a mãe de Samuel lhe "escolheu o nome que achava o mais bonito do mundo, aprendido na missa". Chegando em Candeia, Samuel era só pele, osso e angústia. Como abrigo, encontra uma gruta abandonada que mais adiante descobrimos ser a cabeça abandonada de Santo Antonio. Não demorará, e Samuel passará ouvir as vozes, rezas e pedidos das pessoas, especificamente das mulheres, endereçados a Santo Antonio. Mas o leitor precisa ter paciência, pois a narrativa só começa a desarnar, como se diz no interior do Ceará, a partir do sexto capítulo, aquele denominado "Cabeça". Até então a narrativa mostra-se lenta e desinteressante. E em tentativas de enfatizar a presença do realismo mágico, mostram-se desnecessárias expressões como: "Não fosse a mordida na perna sangrando, diria que eram cães fantasmas" (p.30) e "Talvez um gigante tenha degolado o santo, ele pensou" (p.33).  A autora, no entanto, se mostra sabedora dos usos do realismo mágico tão caro à literatura latino-americana. E ela o demonstra quando faz o leitor descobrir que a avó conversava com Samuel mesmo já estando morta (p.155-156). No que diz respeito aos nomes das personagens, além de Samuel, abundam nomes bíblicos/religiosos na narrativa de Acioli. Há Francisco, Sara, Gloria, Madalena, Expedito, Maria, Rosário e Zacarias; por exemplo.

Além da presença de García Márquez, também se percebe a influência da cultura popular no referido romance, principalmente, uma influência da obra de Ariano Suassuna. Como exemplo: " É minha avó mas nunca me deu nem um copo de água" (p.95) e "Nenhuma visita, nem sequer um copo de água" (p.133). Além disso, os planos de Samuel e Francisco (p.55), lembram aqueles postos em prática por João Grilo e Chicó, por exemplo. Assim como os primeiros cinco capítulos, o capítulo final do romance, intitulado "Coragem" também se mostra "desapontador"; não correspondendo ao ritmo observado no desenvolvimento da narrativa. Contudo, em termos gerais, o trabalho de Socorro Acioli é por demais relevante para a

Socorro Acioli
literatura brasileira, uma vez que a Candeia que nos é apresentada pela autora pode muito bem ser compreendida como um estado ou uma nação onde os vários poderes ( Estado, Igreja, Mercado e Mídia etc) se entrelaçam, brincando e tirando proveito daqueles que tudo o que possuem de mais (in)tangível é sua fé e sua crença naqueles que são capazes de promover qualquer forma de alento. Sejam eles homens ou santos. Com ou sem cabeças. Mas, como está dito na página que contém os dados catalográficos da obra: "Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles". Que assim seja! Socorro Acioli ainda tem muito a dizer na seara da Literatura Brasileira. Leiamos Socorro Acioli!

Um comentário:

  1. Como curiosidade, gostaria de acrescentar que a fictícia Candeia consiste em uma fusão de duas cidades cearenses: a mencionada Caridade e Cococi, espécie de cidade-fantasma dos Inhamuns. Para maiores detalhes sobre Cococi, anexo o vídeo abaixo:
    https://www.youtube.com/watch?v=unfe0MWTyZc

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