É tradição na rasteira política brasileira, que os homens eleitos para trabalhar pelo povo simplesmente não o façam. Se o fizessem, as escolas e hospitais seriam exemplares. Na cabeça da maioria desses senhores o importante mesmo é fazer obras e, quanto mais faraônicas forem, melhor. Assim sendo, aqui, ali e acolá vão se amontoando obras inacabadas, sem serventia alguma. Verdadeiros elefantes brancos. E não importa se o governante é da esfera federal, estadual ou municipal. Mudam-se os eleitos, mas a prática hedionda de se perpetuar através de sua megalomania ainda é uma constante na cabeça de muitos políticos. Alguns preferem usinas, outros preferem aquários, estádios, aeroportos, estátuas de santos, viadutos etc.
E como a expressão "no Ceará não tem disso não" é uma das maiores mentiras que se pode ouvir em terras de Alencar, foi por essas bandas, mais especificamente na cidade de Caridade, a cem quilômetros de Fortaleza, que um desses absurdos se perpetua. Era o ano de 1992, quando a autoridade municipal constituída, decidiu erguer uma gigantesca estátua de Santo Antônio. Encomendada a estátua, pôs-se o corpo de pé, mas devido aos fortes ventos da região a enorme cabeça do Santo jamais pode ser colocada, uma vez que o corpo de Antônio não suportaria o peso de tão enorme cabeça. E assim sendo, a cabeça foi definitivamente abandonada cerca de três quilômetros do corpo do pobre Santo. Para quem quiser vê-la bem de perto, ei-la na Rua 102, no Bairro Conjunto Habitacional, na cidade de Caridade, interior do Ceará.
Gabriela García Márquez |
Se tais informações não tivessem sido noticiadas pela imprensa, mas nos tivessem sido contadas; poderíamos acreditar trata-se perfeitamente de uma história recheada do mais puro, curioso e belo realismo mágico bem ao gosto de Gabriel García Márquez (1927 - 2014). E quem ousaria afirmar, com a mais perfeita exatidão, a quantidade de Macondos que existem nas cidades perdidas nos lugares mais recônditos desse imenso país? E dizem que para um bom escritor, meia história basta. Imagine uma história inteira! E é a partir dessa curiosa história inteira que a escritora Socorro Acioli desenvolve seu romance, denominado de A cabeça do santo, publicado pela Companhia das Letras, no ano de 2014. Acioli é natural de Fortaleza, tendo sido vencedora do Prêmio Jabuti de literatura infantil em 2013, com o livro Ela tem olhos de chuva. É a autora quem nos diz que "as primeiras ideias deste romance foram escritas em 2006 para a oficina de criação e roteiro "Como contar um conto", ministrada por Gabriel García Márquez na Escuela de Cine y TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba, entre 2 e 5 de dezembro". A influência do autor de Cem Anos de Solidão (1967) sobre a obra de Acioli já pode ser notada desde o amarelo da capa, em uma aproximação que lembra a rosa amarela tão utilizada por Márquez, até trechos que lembram o estilo do consagrado autor. Por exemplo, no capítulo "Cachorro", tem-se: "A primeira da família a saber o dia da própria morte foi a tataravó, Mafalda (...) e as palavras que não se dizem ao morto queimam na boca pra sempre". No capítulo "Contas", por sua vez, tem-se: "Talvez dali, junto aos pés do santo, ele visse a lua. Anos de lua e solidão" (p.150). E quantos anos de solidão seriam?
O romance de Socorro Acioli está dividido em quatro partes, cada uma delas contendo pequenos capítulos, o que facilita a leitura, possibilitando que o leitor "se apegue mais ao livro" e não o queira soltar até que a leitura se conclua. O cenário no qual a narrativa é situada é a cidade de Candeia, no interior do Ceará, praticamente abandonada e esquecida no tempo. São poucos os viventes que ainda teimam em morar naquele pedaço de mundo amaldiçoado por um "santo degolado", aparentemente esquecido por Deus. E embora o termo "candeia" signifique "força para fazer algo", "lamparina", "candeeiro", "luminária" e "luz"; não é nada disso que se percebe nessa "terrinha" de fim de mundo. O que se tem é um cenário de esquecimento, perda, obscuridade, desencanto e dor. Uma descrição da cidade pode ser lida no capítulo "Café" (p.17). Lê-se: "Candeia era quase nada. Não mais que vinte casas mortas, uma igrejinha velha, um resto de praça... Nem o ar tinha esperança de ser vento".
Samuel, o personagem principal da narrativa é, como seu próprio nome indica, uma espécie de profeta, "um pedido de Deus". O homem que, atendendo ao pedido da mãe moribunda, deveria ir até a cidade de Candeia na tentativa de reencontrar sua avó e seu pai. E é exatamente isso que fará em um périplo quase épico, enfrentando o sol inclemente do sertão cearense, a dor, solidão, miséria e fome. Ao nascer, a mãe de Samuel lhe "escolheu o nome que achava o mais bonito do mundo, aprendido na missa". Chegando em Candeia, Samuel era só pele, osso e angústia. Como abrigo, encontra uma gruta abandonada que mais adiante descobrimos ser a cabeça abandonada de Santo Antonio. Não demorará, e Samuel passará ouvir as vozes, rezas e pedidos das pessoas, especificamente das mulheres, endereçados a Santo Antonio. Mas o leitor precisa ter paciência, pois a narrativa só começa a desarnar, como se diz no interior do Ceará, a partir do sexto capítulo, aquele denominado "Cabeça". Até então a narrativa mostra-se lenta e desinteressante. E em tentativas de enfatizar a presença do realismo mágico, mostram-se desnecessárias expressões como: "Não fosse a mordida na perna sangrando, diria que eram cães fantasmas" (p.30) e "Talvez um gigante tenha degolado o santo, ele pensou" (p.33). A autora, no entanto, se mostra sabedora dos usos do realismo mágico tão caro à literatura latino-americana. E ela o demonstra quando faz o leitor descobrir que a avó conversava com Samuel mesmo já estando morta (p.155-156). No que diz respeito aos nomes das personagens, além de Samuel, abundam nomes bíblicos/religiosos na narrativa de Acioli. Há Francisco, Sara, Gloria, Madalena, Expedito, Maria, Rosário e Zacarias; por exemplo.
Além da presença de García Márquez, também se percebe a influência da cultura popular no referido romance, principalmente, uma influência da obra de Ariano Suassuna. Como exemplo: " É minha avó mas nunca me deu nem um copo de água" (p.95) e "Nenhuma visita, nem sequer um copo de água" (p.133). Além disso, os planos de Samuel e Francisco (p.55), lembram aqueles postos em prática por João Grilo e Chicó, por exemplo. Assim como os primeiros cinco capítulos, o capítulo final do romance, intitulado "Coragem" também se mostra "desapontador"; não correspondendo ao ritmo observado no desenvolvimento da narrativa. Contudo, em termos gerais, o trabalho de Socorro Acioli é por demais relevante para a
Socorro Acioli |
Como curiosidade, gostaria de acrescentar que a fictícia Candeia consiste em uma fusão de duas cidades cearenses: a mencionada Caridade e Cococi, espécie de cidade-fantasma dos Inhamuns. Para maiores detalhes sobre Cococi, anexo o vídeo abaixo:
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=unfe0MWTyZc