Era o ano de 1952. No
dia 23 de maio, de Paris, o pintor Antonio Bandeira (1922 – 1967) escrevia ao
colega Zenon Barreto (1918 – 2002), fazendo algumas observações sobre a pintura
do amigo. Dizia o mestre:
Acho que seus
quadros possuem harmonia de formas e de desenhos e uma certa sensibilidade na
escolha das cores. Porém gostaria que você trabalhasse mais na mistura das
cores primárias, quero dizer, pacientasse mais na mistura das sete cores (o
arco-íris). Creio que ainda
é cedo para os cinzas, verdes e rosas. Acredito mesmo que você poderia
prolongar um pouco mais aqueles seus quadros meio ‘fauves’ e trabalhar
demasiadamente na matéria, trabalhar até ficar exausto (a luta física com o
quadro perto de nascer). Muito cuidado com os amarelos perto dos verdes, também
muito cuidado na mistura dos lilases. O amarelo é talvez a cor mais perigosa e
precisa, na composição, ser jogada com maestria. Por isso gostaria que você
trabalhasse mais o quadro. Um quadro deve ser ‘cansado’ (no trabalho da
matéria) ou ‘fresco’ (um nascimento repentino), nunca jovial. Quanto ao desenho
você o trabalhe sempre que possa. Desenhar todo o tempo, pensar desenho, ver as
coisas em desenho (...). Sei que isso tudo é difícil e v. deve me achar meio
cacete. Não dou conselhos, nunca os dou a ninguém, mas é claro que desejo ver
progresso na sua arte (...). (BANDEIRA apud ESTRIGAS, 2001:75)
Começo com a presente citação do pintor
Antonio Bandeira, uma vez que a análise crítica que empreenderemos recai sobre
o primeiro trabalho de um jovem escritor. Trata-se do livro de contos Odisseu (2013), do estreante Márcio
Moreira. Não é objetivo da presente resenha, no entanto, traçar uma espécie de Cartas a um jovem poeta, pois Márcio
Moreira não é Franz Kappus e nós, nem de longe, nos equiparamos à grandiosidade
de Rainer Maria Rilke (1875 – 1926). Contudo, o trabalho de Márcio Moreira nos
chama atenção por ser mais um contista a aportar em terras tão largamente
habitadas por inúmeros outros autores dedicados à arte da história curta.
Refiro-me ao Brasil, em geral e; mais especificamente ao Ceará, terra de Rachel
de Queiroz e Moreira Campos, entre vários outros.
O Odisseu,
de Márcio Moreira é uma coletânea de contos (erroneamente denominado de
“romance” na ficha catalográfica), publicada de forma independente no ano de
2013, contando com capa e editoração do próprio autor. O trabalho traz ainda
“edição” (seja lá o que isso queira dizer!) e apresentação de Amanda Jéssica M
com fotografias de Mel Andrade e Arquivo pessoal. Márcio Moreira nasceu no ano
de 1989 e, como ele mesmo diz: “com um pé em Fortaleza e o outro no Aracati”.
O livro de Márcio Moreira é composto de
treze contos, sendo em sua maioria, minicontos. Os contos estão denominados e
organizados na seguinte ordem: “Último capítulo” (p.11), “Fossem reais os
pixels...” (p.13), “Louva-a-Deus” (p.17), “Sem título” (p.18), “Luz no fim do
túnel” (p.21), “Oficina de Assessoria de Comunicação” (p.24), “Pirata” (p.28),
“Cheiro de álcool” (p.31), “Bíblica” (p. 33), “Notas” (p.36), “Cães e Gatos”
(p.39), “Odisseu” (p.41) e “Faróis” (p.46). Dos treze contos da coletânea,
apenas cinco, aproximadamente, ocupam mais de uma página. O que percebemos é
que Márcio Moreira demonstra certo controle acerca da arte do miniconto,
alcançando a concisão e a essencialidade apontadas por Edgar Allan Poe (1809 –
1849) e Anton Tchekhov (1860 – 1904), o que pode ser comprovado a partir da
leitura das narrativas “Cheiro de álcool” (p.31) e “Bíblica” (p.33), por
exemplo. Por outro lado, o autor sempre derrapa quando se aventura pelos mares
das narrativas maiores, como no caso de “Luz no fim do túnel” (p.21) e do
próprio “Odisseu” (p.41). Isso não constitui um problema, pois devidamente
“ajustado” pode se tornar uma qualidade das melhores; uma vez que são poucos os
contistas reconhecidos por dominar a arte das micronarrativas. O principal nome
nesse caso é, sem dúvida, Dalton Trevisan. No Ceará, terra na qual o contista
mantém um dos seus pés, podemos apontar alguns dos contos de Pedro Salgueiro,
Geórgia Cavalcante Carvalho, Raymundo Netto, Vânia Vasconcelos e Carmélia
Aragão.
Mas acredito, tal qual Bandeira em
relação à obra de Zenon, que Márcio Moreira deva trabalhar mais na matéria, uma
vez que seu texto ainda é muito jovial. “Trabalhar até ficar exausto”, ou seja,
escrever e reescrever até conseguir manipular com maestria todas as cores da
paleta chamada literatura. É preciso, como bem advertia o mestre, ter “muito
cuidado com os amarelos perto dos verdes”. Muitas vezes, na ânsia de dar um
rebento ao mundo, o escritor estreante erra a mão na inexatidão de algo que
poderia ser bem mais interessante se melhor trabalhado. Não custa lembrar que
vários foram os anos que demoraram a trazer Odisseu de volta à sua Ítaca. Anos
que o fizeram ver o mundo, conhecer as coisas e entender a vida sem cair no
canto doce e enganoso das sereias.
Assim sendo, parafraseando o autor de Cidade queimada de sol, um texto (o
conto, no caso) precisa ser recorrentemente mais trabalhado até que atinja seu
ápice de exigência estética. Um texto literário precisa ser “cansado” ou
“fresco”, nunca jovial. É necessário gestá-lo, nutri-lo e vivê-lo intensamente
até que ele esteja pronto para ser dado aos olhos do mundo. “Não somente os
olhos da cara, mas também no cérebro e no coração”. O Odisseu, de Márcio Moreira é a carta de apresentação de um contista
que, aprendendo a manipular os amarelos e os verdes da arte de escrever, poderá
nos legar futuros grandes trabalhos. Para tanto, bastará estar atento para
saber a hora certa para lançar mão dos cinzas, verdes e rosas. Caso contrário,
não mais que de repente, poderá ser atingido por um disparo de uma baladeira
qualquer e cair, em espirais descendentes, infinitesimais e eternas.
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