Por
iniciativa de Inácio de Loyola (1491 – 1556), a Companhia de Jesus foi criada
no ano de 1534. Contudo, somente por volta de 1537, juntamente com mais seis
estudantes da Universidade de Paris, é que Loyola vai para Roma solicitar ao
papa Paulo III autorização para criar a Societas
Iesu, a Ordem dos Jesuítas. Autorização concedida, Inácio de Loyola para de
peregrinar pelo mundo e se estabelece em Roma em 1538, tornando-se Superior-Geral
da Companhia que acabara de criar. O referido religioso redige, então, as
Constituições, documentos esses que regerão a Companhia a partir de 1554. Sob a
liderança de Loyola, os missionários são enviados para os quatro cantos do
mundo com o objetivo de levar a palavra de Jesus aos mais recônditos lugares. Contudo,
o contato entre os missionários e seus superiores deveria ser mantido a
qualquer custo. E assim, tendo em vista as dificuldades de comunicação,
escolheram a carta como forma de contato. Embora os assuntos tratados nas
cartas fossem os mais variados, com o tempo a carta se torna a principal forma
de relatar os acontecimentos nas chamadas missões. Era através dela, da
missiva, que todos deveriam compartilhar seus sucessos e suas dificuldades. Uma
vez tratar-se a carta de um verdadeiro relatório, recebeu oficialmente o nome
de Relação.
As narrativas produzidas sobre o Brasil colonial são caracterizadas por
discorrerem sempre sobre os mesmo aspectos, ou seja, os hábitos dos nativos, as
riquezas naturais, a fauna e a flora. E assim sendo, os documentos produzidos
pelos jesuítas que por terras cearenses estiveram não fogem a regra. Entre eles, podemos citar a Relação do Maranhão, do padre Luiz Figueira e a Relação da Missão da Serra de Ibiapaba, cuja autoria, embora sem comprovação, seja atribuída ao padre Antonio Vieira.
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Relação da Ibiapaba (pág. 1) |
Existem duas versões conhecidas da Relação
da Missão da Serra de Ibiapaba: a versão da Revista do Instituto Histórico,
Geográfico e Antropológico do Ceará (www.institutodoceara.org.br) e a versão publicada em livro, no ano de
2006, pela editora portuguesa Almedina, com o nome de A Missão de Ibiapaba. A edição da Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, do Instituto, constitui-se de cinquenta e três
páginas impressas, numeradas do número oitenta e seis ao número cento e trinta
e oito, disponíveis no tomo XVIII da referida Revista. Os assuntos a serem
abordados ao longo do documento são previamente apresentados, uma vez que o
corpo da Relação traz dezessete subdivisões, indicando cada um dos assuntos a
serem tratados. O texto de Padre Antonio Vieira se inicia com a seguinte
observação, posta logo abaixo do título do documento: “primeiros Missionários da Companhia de Jesus que no Brazil passarão
por terra ao Maranhão: seus trabalhos. Morre na empreza o venerável padre
Francisco pinto, e outros” (p.86). Tendo em vista os negócios entre a
Igreja Católica e a coroa portuguesa, não é com bons olhos que nosso narrador
vê a presença dos holandeses em território nacional, bem como sua relação como
os nativos tabajaras. Mas não eram apenas os holandeses a ocupar terras
nordestinas. A gênese da formação do povo brasileiro, a miscigenação, algo que só
bem mais tarde seria observado por Gilberto Freyre, já era devidamente notada
por Vieira, o qual mais uma vez não vê com bons olhos a tal miscigenação. Deduz-se
que, para ele, toda essa presença estrangeira em nada contribuía para a
efetivação dos objetivos da Companhia em terras nordestinas. Eis o que afirma o
religioso:
... eram verdadeiramente aquellas aldeãs uma composição
infernal ou mistura abominável de todas as seitas e de todos os vícios, formada
de rebeldes, traidores, ladrões, homicidas, adúlteros, judêos, hereges,
gentios, atheus, e tudo isto debaixo de nome de Christãos, e das obrigações de
Catholicos. (VIEIRA, 1904:94).
Certamente que o posicionamento do Padre Antonio Vieira não é apenas
seu, mas de toda uma Europa sedenta por conquistar cada vez mais espaço e de
uma Igreja descobridora das benesses advindas das conquistas. Assim sendo, a
história do Ceará e a cultura daí surgida estão impregnadas pelos resquícios da
ambição eurocêntrica, a derrama do sangue nativo e a imposição de uma fé que
nem de longe era a desejada. Embora não se justifique, o povo nativo cearense
não foi o único “bárbaro” a sofrer tal violação. Por toda a América Latina,
muitos povos foram invadidos, violados, extirpados de suas famílias e
expropriados de seus bens e, muitas vezes exterminados em nome de uma cultura
que não desejavam para si e em nome de uma fé que não era a sua. Documentos
como a Relação da Missão da Serra da
Ibiapaba, se lidos detidamente, dizem muito dessa dominação
histórico-léxico-cultural a qual o povo cearense especificamente, e o povo
latino-americano, genericamente, esteve submetido.
Além dos aspectos históricos e culturais, a Relação da Missão da Serra da Ibiapaba também
possibilita o estudo da língua sob suas mais variadas vertentes. Que sejam: a
fonética, a morfologia, a sintaxe e o léxico. Em relação ao documento mais
antigo, a versão da editora Almedina mantém o mesmo texto e dá textualmente ao
padre Antonio Vieira a autoria do documento. Convém ressaltar que o documento
original não traz a assinatura do referido religioso. Excetuando-se esse
detalhe, a edição se notabiliza por trazer um valioso prefácio de autoria de
Eduardo Lourenço e um posfácio não menos relevante, assinado por João Viegas.
Chegado ao século XXI o homem ainda luta para conseguir ter seus
direitos respeitados; seja no que diz respeito à sua liberdade individual, à
liberdade de expressão ou à assunção da sua identidade. Isso, contudo, não tem
se mostrado tão simples assim. A civilização do espetáculo tal qual analisada
por Vargas Llosa (2013), mas já anunciada como sociedade do espetáculo, por Guy
Debord (1967) tem causado intrigante interferência naquilo que se convencionou
chamar de cultura. Se o conceito de cultura estava ligado ao ato de cultivar, como bem nos lembra Raymond
Williams (2007), não nos parece mais ser bem assim. Instaurou-se, na verdade,
uma cultura do efêmero, do descartável, que acaba por impedir que se perceba o
que é realmente relevante para a constituição de um estado que se pretenda
nação, ou seja, de um povo que se pretenda cidadão.
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Padre Antonio Vieira |
Analisando por essa ótica, percebe-se que um documento como a Relação da Missão da Serra de Ibiapaba é
de relevante importância para a compreensão da gênese do povo cearense, por
possibilitar seu estudo através de diferentes áreas do conhecimento. É,
certamente, objeto para a Linguística, a História, a Historiografia, a
Etnografia e a Filologia; somente para citarmos algumas áreas.
Ao longo dessa breve resenha, tentamos fazer algumas considerações acerca do referido
documento, mas cientes da impossibilidade de abarcá-lo como um todo, tendo em
vista sua amplitude. A Relação da Missão da Serra de Ibiapaba é um documento proporcionador de aberturas para inúmeros estudos que contemplem a
língua, a linguagem, o discurso, a história, a cultura, bem como suas múltiplas
acepções, ações, atividades, ressignificações e usos.
Sobre Padre Vieira na Ibiapaba:
http://www.opovo.com.br/app/colunas/anamiranda/2012/07/28/noticiasanamiranda,2886802/padre-vieira-na-ibiapaba.shtml
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