segunda-feira, 1 de setembro de 2014

OSMAN LINS: A SAGRAÇÃO DA PALAVRA

Osman Lins
A literatura brasileira é fecunda de grandes obras e de grandes autores. Contudo, uma vez que o gosto pelas artes, especificamente pela literatura, não é difundido entre a população, muitos autores acabam se tornando famosos desconhecidos dentro do seu próprio país. Isso é compreensível, uma vez que as políticas culturais são tímidas, as escolas capengas e a mentalidade nacional, tacanha. E, no meio desse RAP do crioulo doido, ainda há a velha questão dos escritores “velhos” que não leem os “novos” e os “novos” que não leem os “velhos”. Assim sendo, grandes autores nacionais (universais, pelos temas que abordam) ainda precisam ter suas obras amplamente exploradas, uma vez que constituem relevantes contribuições para a cultura e para a sociedade brasileira.

Entre tantos e tantos autores desse quilate, ressalto Osman Lins (1924 – 1978), escritor pernambucano, considerado um “renovador de estruturas, linguagem, temas e conceitos literários”. Apenas para termos uma ideia, a obra do autor pernambucano abrange o conto (Os gestos, 1957; Nove novena (1966), romance (O visitante, 1955; O fiel e a pedra, 1961; Avalovara, 1973, A rainha dos cárceres da Grécia, 1976), teatro (Lisbela e o Prisioneiro, 1964; Guerra do Cansa-Cavalo, 1966), novela (A ilha no espaço, 1964) textos para a televisão (Casos especiais de Osman Lins, 1978), ensaios (Guerra sem testemunhas, 1969; Lima Barreto e o espaço romanesco, 1976) e viagens (Marinheiro de primeira viagem, 1963; La paz existe?, 1977); entre inúmeros outros trabalhos, sem considerarmos o que ainda há de inédito nos arquivos sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, da Universidade de São Paulo.

Embora tenha vivido muito pouco, Osman Lins nos legou uma obra de vastíssimo fôlego e, no que diz respeito às temáticas que aborda, opta por não fazer concessões. Dessa forma, a linguagem crua, por vezes ácida e mordaz das suas narrativas está em consonância com seu projeto de literatura. É o que podemos observar, por exemplo, na novela A ilha no espaço, de 1964. No que concerne ao texto dramatúrgico Lisbela e o Prisioneiro, também publicado no ano de 1964, o autor “alivia” na linguagem, a qual se mostra simples, mas não menos cáustica, com o intuito de atender aos requisitos do texto cômico. Nem por isso, no entanto, temas como a tortura, a repressão e o abuso de autoridade, deixarão de ser devidamente abordados. A ilha no espaço foi reeditada no ano de 1978 sob o título de Casos especiais de Osman Lins. O livro publicado pela editora Summus, traz ainda os textos Quem era Shirley Temple e Marcha Fúnebre, sendo esse o último livro publicado ainda em vida do autor. As três novelas constantes na referida edição também foram adaptadas pela Rede Globo de Televisão, exibidas entre os anos de 1975 a 1977.

Em A ilha no espaço, Osman Lins discorre sobre a solidão do homem contemporâneo em meio ao turbilhão de desejos e ambições que se tornaram razão máxima da existência de muitas pessoas. O espaço da novela em questão é a cidade de Recife, e o enredo gira em torno das agruras da personagem Cláudio Arantes Marinho, morador do luxuoso edifício Capibaribe. Para chegar até lá, a personagem empenhou até seu último centavo, para satisfazer mulher e filhas. Quando tudo acaba por dar errado e o Capibaribe se torna um edifício fantasma, Arantes é a única alma a vagar pelos andares do velho prédio. Arantes é agora uma ilha dentro da ilha que agora é o seu apartamento, que é uma ilha dentro do edifício, que agora também é uma ilha no espaço da grande cidade. A ilha no espaço aborda desde a banalidade do consumo às questões existenciais do ser humano; esse homem-ilha que contradiz a máxima de John Donne (1572 – 1631), quando afirma que nenhum homem é uma ilha. Dessa forma, a narrativa osmaniana aponta para questionamentos acerca do isolamento do homem, misto de solidão e vazio, impondo-nos a decifração do enigma que nos é posto pela sociedade contemporânea. E entre o “decifra-me ou te devoro”, embora pendendo mais para o “devorar”, a questão ainda se mostra em aberto.

Por sua vez, Lisbela e o Prisioneiro, como bem afirma Sandra Nitrini (p.113) no posfácio à edição de 2003, publicada pela Editora Planeta, surgiu como resultado do curso de Dramaturgia da Escola de Belas Artes de Recife. A questão é que Osman Lins participara do I Concurso Nacional da Companhia Tônia-Celi-Autran. Adolfo Celi foi o primeiro diretor artístico do TBC. Lins concorreu com a peça O Vale Sem Sol, em 1958, recebendo apenas menção honrosa. Conforme afirma a professora Sandra Nitrini, Osman Lins ficou Insatisfeito com sua incursão como dramaturgo, considerando-a deficiente. Assim, matricula-se no mesmo ano na Escola de Belas Artes de Recife, onde vem  a ser aluno de Joel Pontes, Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna. Numa entrevista, Osman Lins mencionará este último como possível influenciador no que diz respeito às normas de composição de Lisbela e o prisioneiro. Lisbela e o Prisioneiro foi escrito no período de 25 de julho a 09 de setembro de 1960, sendo encenada pela primeira vez no ano de 1961, no Rio de Janeiro. Sua publicação, no entanto, só ocorreu no ano de 1964.

A peça, uma comédia de caráter (ou de caracteres), conta com quinze personagens ao todo. São eles, na ordem de entrada em cena: Jaborandi (soldado e corneteiro), Testa Seca (preso), Citonho (velho carcereiro), Paraíba (preso), Tem. Guedes (delegado), Leléu ( aramista e prisioneiro), Juvenal (soldado), Heliodoro (cabo de destacamento), Lisbela (filha do tenente Guedes), Dr. Noêmio (advogado, noivo de Lisbela), Tãozinho (vendedor ambulante de pássaros), Frederico (assassino profissional), Lapiau (artista de circo e amigo de Leléu). Dois soldados, personagens mudos. A peça está organizada em três atos (estrutura comum às comédias). No primeiro ato tem-se uma espécie de apresentação geral das personagens. No segundo, o leitor toma conhecimento das questões existenciais das personagens, especificamente do prisioneiro Leléu. No terceiro ato, tem-se o desenrolar da ação, onde são selados os destinos das personagens. Como é recorrente nos textos de comédias, tem-se um final feliz com Lisbela e o prisioneiro Leléu ficando juntos. O cenário da peça é a cadeia pública, em Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, cidade natal de Osman Lins. No que concerne à linguagem observa-se o uso da linguagem comum ao interior do Nordeste do Brasil, mais especificamente do interior de Pernambuco. E essa, por sua vez, é criativamente manipulada por Osman Lins, quando este a transforma em indispensável objeto do riso na peça em questão. A linguagem, no texto escrito, bem como a linguagem corporal, quando da encenação da peça, praticamente constituem-se em outros “personagens”.
 
O enredo gira em torno de Lisbela, filha do tenente Guedes, delegado da Cadeia de Santo Antão, que se envolve amorosamente com o prisioneiro Leléu, uma espécie de Don Juan nordestino. Daí o nome da peça. No dia do seu casamento com o Dr. Noêmio, advogado e vegetariano, Lisbela foge com Leléu. Ao optar pelo artista de circo preso, abandonando a “estabilidade” que teria com o advogado, representante do estabelecido e da segurança, Lisbela assume o risco, subvertendo os valores vigentes na sociedade patriarcal na qual está inserida. Convém ressaltar que Lisbela é a única mulher em cena. Outras mulheres são apenas mencionadas.

A utilização da comédia como forma de exposição do texto, aponta para a mestria de um autor que, mesmo situando seu drama em um contexto regionalista, o faz sabendo estar ao mesmo tempo situando-o no contexto do drama universal; uma vez que as dores, desejos e angústias das personagens Lisbela e Leléu também o são de todo homem e de toda mulher em qualquer lugar do mundo. O riso, recurso estilístico recorrente em Lisbela e o Prisioneiro (1964)  apresenta-se, então, como uma das únicas formas de subversão legada àqueles  que se recusam a se submeter aos ditames impostos pela sociedade. O riso, tal qual dito em O Nome da Rosa (1980), de Umberto Eco, mata o temor. 

É por essa razão, entre inúmeras outras que, Lisbela e o Prisioneiro, de Osman Lins, permanece atual, universal e atemporal e assim o será enquanto houver alguém que, mesmo pelos cantos da boca, insista em rir do que quer que seja. 


SOBRE OSMAN LINS E SUA OBRA:

1. ANDRADE, Ana Luíza. Osman Lins: crítica e criação. São Paulo: Hucitec, 1987.
2. IGEL, Regina. Osman Lins: uma biografia literária. Brasília: T.A. Queiroz, 1988.
3. SILVA, Odalice de Castro. A obra de arte e seu intérprete. Fortaleza: EUFC, 2000.
4. FERREIRA, Ermelinda. Cabeças compostas. São Paulo: EDUSP, 2005.
5. FARIAS, Zênia de & FERREIRA, Ermelinda. 85 anos: a harmonia de imponderáveis. Recife: EUFPE, 2009.

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