quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A RELAÇÃO DO MARANHÃO: JESUÍTAS E NATIVOS NO CEARÁ DO SÉCULO XVII

Com intuito de cumprir as determinações de seus superiores, no dia 20de janeiro de 1607, os jesuítas Francisco Pinto e Luiz Figueira embarcam no Recife rumo ao Ceará. A ideia missionária de conquistar o Maranhão, afirma Aragão (1985) surgiu por deliberação de Fernão Cardin, reitor do Colégio da Bahia e entusiasta da catequese maranhense. O historiador ainda afirma, que a escolha dos referidos padres jesuítas se deu por serem predestinados do martirológio e serem amantes do mundo embrutecido.
Conforme Aragão (1985):

Nessa primeira etapa, fez-se a viagem por via marítima, com o aproveitamento de navios salineiros. Desembarcaram no rio Mossoró, a 2 de fevereiro seguinte, e, nesse local permaneceram durante alguns dias. Não conduziam armas nem petrechos de guerra, mas serviam-se apenas de índios domesticados e designados para os trabalhos de guia e condução de alguns pertences. (ARAGÃO, 1985:31)

Sobre a chegada dos referidos religiosos ao Ceará, observemos o mesmo relato nas palavras do Barão de Studart (2001):

20 de janeiro – Os jesuítas Francisco Pinto e Luiz Figueira embarcam-se no Recife para a cathechese dos índios do Ceará em um barco, que ia carregar nas salinas de Mossoró. Acompanharam-os 40 índios, potiguares, tobajares e tupinambás. Prosseguindo pela costa septentrional 120 leguas, desembarcam no porto do Jaguaribe e d’ahi fazem seu caminho por terra a pé em demanda da Serra da Ibiapaba, tendo antes se encontrado com o chefe potiguar Algodão ou Amanay, que os acolheu com estima e respeito e sob cuja proteção estabeleceram uma aldeia, que tomou o nome de Ceará, da qual mais tarde se de tacaram duas outras com os nomes de Parangaba,  e Paupina e muito posteriormente a de Caucaia (...) (STUDART, 2001:6)

Os dois historiadores cearenses adaptam para seus textos, o trecho inicial da Relação do Maranhão, escrita pelo jesuíta Padre Luiz Figueira, enviada ao seu superior Claudio Aquaviva. Nas palavras do próprio padre tem-se:

PAX CHRISTI. No mez de jan.ro de 607 p. ordem de Fernão Cardim pr.al esta pr.a nos partimos pera a missão do Maranhão o p. e fr.co Pinto e eu cõ obra de sessenta Indios, cõ intenção de pregar o evangelho aaquela desemperada gentilidade, e fazermos cõ q’ se lançassem da parte dos portugueses, deitando de si os frãcezes corsairos q’ lá residem pera q’ indo os portugueses como determinão os não avexassem nem captivassem, e pera q’ esta nossa ida fosse sem sospeita de engano pareceo bem ao p. e pr. al  q’ não levássemos conosco portugueses e assi nos partimos sós co aquelles sessenta Indios. (Figueira, 1903:97)

Pe. Luiz Figueira, por Candido Portinari em 1942.
A jornada que os dois padres empreenderam pelas entranhas nativas das matas locais não se mostrou das mais agradáveis. Inúmeras foram as adversidades enfrentadas pelos dois missionários. Chuva torrenciais, rios transbordantes e caminhos lamacentos se uniam à fome, aos insetos, aos animais peçonhentos e ao intransponível da mata numa espécie de provação a qual estavam submetidos, tendo  a obrigação de vencê-la, para realizar a missão para a qual haviam sido enviados. Com enorme esforço, transpuseram a Serra dos Corvos, hoje Serra da Uruburetama, sentido na própria pele a inospitalidade dos tristes trópicos  habitados por homens “sem almas”, carente de conversão. Sobre as adversidades enfrentadas, Figueira afirma:

Nesta triste serra dos corvos parece q’ se juntarão todas as pragas do brasil, innumeráveis cobras e aranhas a q’ chamão caranguejeiras, peçonhentissimas de cuja mordedura se diz q’ morrem os homens, carrapatos sem conta, mosquitos e moscas q’ magoão estranham.t e e ferem como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora e assy parecião os índios leprosos das mordeduras, nem eu fizera caso de escrever essas cousas senão foram extraordinarias (...) (Figueira, 1903:103)

Chacina do Pe. Francisco Pinto em 1607, 
por Michiel Cnobbaert em 1667.
O assassinato do Padre Francisco Pinto foi, certamente, o coroamento às avessas da tentativa dos jesuítas de alcançarem o Maranhão. Impossibilitado de prosseguir, o Padre Luiz Figueira comunica, via carta (datada de 26 de agosto de 1609), aos seus superiores, as razões do fracasso da Missão, listando pelo menos seis motivos para tal e, mesmo assim, se oferecendo para uma futura empreitada se assim for o desejo da Companhia.

DO DOCUMENTO

Embora constitua um documento de fundamental importância para os estudos de História, cultura e língua brasileiras, especificamente para o Ceará, não se sabe ao certo aonde se encontram os originais de tal narrativa. A versão disponível na Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, tomo XVII (www.institutodoceara.org.br) para pesquisas é, conforme Florival Seraine (1987), uma reprodução de uma fotocópia, cujo original se acha guardado no arquivo S. J. Romanorum e que teria sido entregue  ao Barão de Studart,, historiador cearense, pelo jesuíta P. J. B. van Meurs, do Limburgo Holandês, por ordem do Superior Geral da Companhia de Jesus.
O documento utilizado pelo Padre Luiz Figueira para comunicar ao seu superior imediato tudo o que aconteceu  na Missão do Maranhão chama-se, como já aludimos ao longo do presente artigo, Relação do Maranhão. Mas afinal, o que devemos compreender por “relação”? Dentre as possíveis definições oportunizadas pelos dicionários, a que atende às especificações do documento ao qual analisamos é aquela que diz: “ato de relatar; relato, informação, descrição” (HOUAISS, 2004). Por qual razão Padre Luiz Figueira decidiu que teria que escrever um “diário de viagem” e enviá-lo ao seu superior, o Provincial Pe. Claudio Aquaviva?
A decisão de escrever a Relação do Maranhão não saiu da cabeça abençoada do Padre Luiz Figueira. Na verdade, o referido missionário, ao produzir tal documento, estava apenas cumprindo as orientações que haviam sido criadas pelo fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola. Desde a criação da Companhia de Jesus, a obrigação de se escrever cartas já era uma realidade. Durante toda sua vida, Inácio de Loyola teria escrito por volta de 7000 cartas nas quais tratava não apenas das questões relacionadas ao funcionamento das obras da Companhia, mas também sobre a forma, o conteúdo e o estilo na feitura das missivas. Produzir cartas e enviá-las aos superiores era algo já previsto nas Constituciones, o documento que contém as normas que regem a Ordem. Conforme Pécora (2012:34), as Constituciones obrigam os missionários a manter o “Superior da Companhia” informado por carta dos êxitos e reveses da missão, a fim de que soubessem se era conveniente permanecer em uma missão ou dirigir-se a alguma outra.
Ainda sobre a correspondência dos jesuítas, Pécora afirma (2012):

Essa correspondência entre superiores e inferiores, segundo as Constituciones, também “ajuda na união dos ânimos”, a fim de que saibam uns dos outros, recebam novas informações das várias partes do mundo em que se encontram e obtenham consolação mútua em Cristo. Autoridades eclesiásticas locais ou reitores deveriam ainda escrever a cada semana ao Provincial – o representante da Ordem em uma província – que, por sua vez, escrevia ao Geral, a maior autoridade da Ordem no mundo (...). No início de cada quadrimestre, devia-se escrever uma carta em vulgar e outra em Latim ao Provincial, apenas com “coisas de edificação”, cujas cópias eram enviadas ao Geral e a outros da província e fora dela. (Pécora, 2012:35)
 
A constante produção de cartas, prevista como norma nas Constituciones, deixa claro três aspectos relacionados ao funcionamento da Ordem. O primeiro seria a informação, o segundo a ideia de que todos compunham um só corpo, mesmo que seus membros constituintes estivessem distantes, apartados. O terceiro aponta para o chamado impulso da experiência mística.  No entanto, o que nos interessa aqui é apenas o primeiro aspecto por este tratar da preocupação dos jesuítas com o registro escrito da informação. No período da colonização do Brasil, por exemplo, a correspondência era, basicamente, a única maneira de se relatar os fatos ocorridos nas Missões encampadas pelos Jesuítas. Assim sendo, compreende-se a razão da preocupação do Padre Luiz Figueira em registrar todas as informações sobre a Missão do Maranhão, tal qual se supõe, fez o Padre Antonio Vieira acerca da Missão da Serra da Ibiapaba. Neste caso, o termo “relação” em Relação do Maranhão, por exemplo, refere-se à obrigação que os missionários tinham de relatar, de fazer um relatório aos seus superiores sobre os andamentos nas Missões. A relação (ou o relatório) não podia ser escrito de qualquer maneira. Embora a escrita presente no texto da Relação do Maranhão aponte para uma escrita produzida por um homem de profundo saber lingüístico, trata-se de uma escrita simples, objetiva, sem floreios. Isso também se deve às orientações estabelecidas por Loyola. Para ele, em determinação aos padres, suas cartas deveriam ser escritas para que pudessem ser lida por qualquer pessoa, especificamente as autoridades de Roma, as quais sempre se mostravam desejosas de saber sobre outros mundos. Em carta ao Padre Roberto Claysson, de 1555, na qual recrimina o estilo empregado pelo padre, afirma: uma coisa é a “eloqüência, atrativo e gala da linguagem profana”; outra, é aquela que cabe ao religioso, para quem o estilo conveniente deve assemelhar-se ao uso dos adornos recomendáveis para uma “matrona”, que sempre deve “respirar gravidade e modéstia. O modo de expressão não deve ser jamais exuberante e juvenil, e quando tiver de ser copioso, que o seja “mais por abundância de ideias que de palavras”.
Para Pécora (2012):

O decoro proposto por Inácio para a escrita jesuítica é fundamentado na ideia de que a virtude se opõe às “palavras inchadas de orgulho”. Assim, os ornatos da elocução exigem sempre limites de aplicação e submetem-se a uma ordem, gramaticalmente correta, ajustando a seriedade do assunto à simplicidade das palavras. Com esse cuidado, seria possível garantir a fidedignidade do relato e a verdade da fé. (Pécora, 2012:36)

Destarte, o estilo presente na Relação do Maranhão deixa claro a mestria que possuía o Padre Luiz Figueira no trato com a língua portuguesa. Compôs como afirma Seraine (1987) a Carta Bienal, em Latim, de 1602 a 1603. Dedicando-se ao estudo do tupi, elaborou a Arte da Gramática da Língua do Brasil, a segunda sobre o tema, no Brasil. Figueira, embora tendo sido educado e vivido quando as ideias renascentistas já influenciavam o mundo, opta por uma escrita contida, quando o esperado seria uma escrita rebuscada já recorrente entre os autores contemporâneos seus. Assim sendo, a opção por um estilo mais simples na escrita da Relação do Maranhão visa, claramente, atender as orientações pré-determinadas no que concerne à maneira de escrever, devidamente registradas nas Constituciones, elaboradas por Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Assim sendo, defendemos que um estudo acerca da Relação do Maranhão deva abarcar aspectos ligados a história, a cultura e a língua; apoiando nossa posição naquilo explicitado por Abbade (2006) quando afirma:

Língua, história e cultura caminham sempre de mãos dadas e, para conhecermos cada um desses aspectos, faz-se necessário mergulhar nos outros, pois nenhum deles caminha sozinho e independente. Portanto, o estudo da língua de um povo é, consequentemente, um mergulho na história e cultura deste povo. (Abbade, 2006:214)

No caso do povo brasileiro, especificamente no período colonial, a língua dominante é a do indígena, o que obriga os catequistas a aprendê-la para melhor conduzirem seus interesses. Por muito tempo, observa-se certo equilíbrio entre a língua do colonizado e a do colonizador até que o português, bastante influenciado pela língua “nativa”, predomine. De todas as trocas culturais operadas no período colonial entre indígenas e portugueses, aquela que agiu diretamente na formação da língua nacional foi, certamente, a mais profunda e a mais relevante. Neste caso, deve-se considerar a relevância intelectual dos missionários da Companhia de Jesus na constituição e evolução lingüística nacional iniciada no período colonial brasileiro. 
Relação do Maranhão (pág.1)
No que concerne ao Ceará, a Relação do Maranhão constitui-se em farto material para os estudos linguísticos, uma vez que o estilo empregado por seu autor está eivado de expressões, termos, palavras e lexias, que miscigenam a língua do colonizador com a língua do colonizado. Por não possuir objetivos literários, a Relação do Maranhão, conforme Seraine (1987) aproxima-se mais da fala comum. Contudo, ressalta o autor, a tradição escrita é bem mais conservadora que a oral e, por conseguinte, a linguagem escrita de uma época jamais poderá ser a reprodução do falar normal de que ela é considerada a representação gráfica. E assim, mesmo tendo sido produzida em meados do século XVII, a Relação do Maranhão é um corpus que permite amplos estudos sobre o estilo, o léxico, a filologia, a morfologia e a fonética, entre outros. Muitos dos termos e expressões com as devidas acepções atribuídas no documento em questão pelo Padre Luiz Figueira constituem elementos de composição e uso recorrente no falar atual do povo cearense, o que demonstra a influência, a atualidade e a importância do referido documento seiscentista para a compreensão da história, da cultura e da identidade linguística do povo cearense.


Artigo escrito em parceria com Geórgia Gardênia Brito Cavalcante. Disponível na íntegra em: Encontro Internacional de História.

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