Com intuito de cumprir as
determinações de seus superiores, no dia 20de janeiro de 1607, os jesuítas
Francisco Pinto e Luiz Figueira embarcam no Recife rumo ao Ceará. A ideia
missionária de conquistar o Maranhão, afirma Aragão (1985) surgiu por
deliberação de Fernão Cardin, reitor do Colégio da Bahia e entusiasta da
catequese maranhense. O historiador ainda afirma, que a escolha dos referidos
padres jesuítas se deu por serem predestinados do martirológio e serem amantes
do mundo embrutecido.
Conforme Aragão (1985):
Nessa primeira etapa, fez-se a
viagem por via marítima, com o aproveitamento de navios salineiros.
Desembarcaram no rio Mossoró, a 2 de fevereiro seguinte, e, nesse local
permaneceram durante alguns dias. Não conduziam armas nem petrechos de guerra,
mas serviam-se apenas de índios domesticados e designados para os trabalhos de
guia e condução de alguns pertences. (ARAGÃO, 1985:31)
Sobre a chegada dos
referidos religiosos ao Ceará, observemos o mesmo relato nas palavras do Barão
de Studart (2001):
20 de janeiro – Os jesuítas
Francisco Pinto e Luiz Figueira embarcam-se no Recife para a cathechese dos
índios do Ceará em um barco, que ia carregar nas salinas de Mossoró.
Acompanharam-os 40 índios, potiguares, tobajares e tupinambás. Prosseguindo
pela costa septentrional 120 leguas, desembarcam no porto do Jaguaribe e d’ahi
fazem seu caminho por terra a pé em demanda da Serra da Ibiapaba, tendo antes
se encontrado com o chefe potiguar Algodão ou Amanay, que os acolheu com estima
e respeito e sob cuja proteção estabeleceram uma aldeia, que tomou o nome de
Ceará, da qual mais tarde se de tacaram duas outras com os nomes de Parangaba, e Paupina
e muito posteriormente a de Caucaia (...)
(STUDART, 2001:6)
Os dois historiadores cearenses adaptam para seus textos, o trecho
inicial da Relação do Maranhão,
escrita pelo jesuíta Padre Luiz Figueira, enviada ao seu superior Claudio
Aquaviva. Nas palavras do próprio padre tem-se:
PAX CHRISTI. No mez de jan.ro
de 607 p. ordem de Fernão Cardim pr.al esta pr.a nos
partimos pera a missão do Maranhão o p. e fr.co Pinto e
eu cõ obra de sessenta Indios, cõ intenção de pregar o evangelho aaquela
desemperada gentilidade, e fazermos cõ q’ se lançassem da parte dos
portugueses, deitando de si os frãcezes corsairos q’ lá residem pera q’ indo os
portugueses como determinão os não avexassem nem captivassem, e pera q’ esta
nossa ida fosse sem sospeita de engano pareceo bem ao p. e pr. al
q’ não levássemos conosco
portugueses e assi nos partimos sós co aquelles sessenta Indios. (Figueira,
1903:97)
Pe. Luiz Figueira, por Candido Portinari em 1942. |
Nesta triste serra dos corvos
parece q’ se juntarão todas as pragas do brasil, innumeráveis cobras e aranhas
a q’ chamão caranguejeiras, peçonhentissimas de cuja mordedura se diz q’ morrem
os homens, carrapatos sem conta, mosquitos e moscas q’ magoão estranham.t
e e ferem como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora e assy parecião
os índios leprosos das mordeduras, nem eu fizera caso de escrever essas cousas
senão foram extraordinarias (...) (Figueira, 1903:103)
Chacina do Pe. Francisco Pinto em 1607, por Michiel Cnobbaert em 1667. |
DO DOCUMENTO
O documento utilizado pelo Padre Luiz Figueira para comunicar ao seu
superior imediato tudo o que aconteceu
na Missão do Maranhão chama-se,
como já aludimos ao longo do presente artigo, Relação do Maranhão. Mas afinal, o que devemos compreender por
“relação”? Dentre as possíveis definições oportunizadas pelos dicionários, a
que atende às especificações do documento ao qual analisamos é aquela que diz: “ato
de relatar; relato, informação, descrição” (HOUAISS, 2004). Por qual razão
Padre Luiz Figueira decidiu que teria que escrever um “diário de viagem” e
enviá-lo ao seu superior, o Provincial Pe. Claudio Aquaviva?
A decisão de escrever a Relação do
Maranhão não saiu da cabeça abençoada do Padre Luiz Figueira. Na verdade, o
referido missionário, ao produzir tal documento, estava apenas cumprindo as
orientações que haviam sido criadas pelo fundador da Companhia de Jesus, Inácio
de Loyola. Desde a criação da Companhia de Jesus, a obrigação de se escrever
cartas já era uma realidade. Durante toda sua vida, Inácio de Loyola teria
escrito por volta de 7000 cartas nas quais tratava não apenas das questões
relacionadas ao funcionamento das obras da Companhia, mas também sobre a forma,
o conteúdo e o estilo na feitura das missivas. Produzir cartas e enviá-las aos
superiores era algo já previsto nas Constituciones,
o documento que contém as normas que regem a Ordem. Conforme Pécora (2012:34),
as Constituciones obrigam os
missionários a manter o “Superior da Companhia” informado por carta dos êxitos
e reveses da missão, a fim de que soubessem se era conveniente permanecer em
uma missão ou dirigir-se a alguma outra.
Ainda sobre a correspondência dos jesuítas, Pécora afirma (2012):
Essa correspondência entre
superiores e inferiores, segundo as Constituciones,
também “ajuda na união dos ânimos”, a fim de que saibam uns dos outros, recebam
novas informações das várias partes do mundo em que se encontram e obtenham
consolação mútua em Cristo. Autoridades eclesiásticas locais ou reitores
deveriam ainda escrever a cada semana ao Provincial – o representante da Ordem
em uma província – que, por sua vez, escrevia ao Geral, a maior autoridade da
Ordem no mundo (...). No início de cada quadrimestre, devia-se escrever uma
carta em vulgar e outra em Latim ao Provincial, apenas com “coisas de
edificação”, cujas cópias eram enviadas ao Geral e a outros da província e fora
dela. (Pécora, 2012:35)
A constante produção de cartas, prevista como norma nas Constituciones, deixa claro três
aspectos relacionados ao funcionamento da Ordem. O primeiro seria a informação,
o segundo a ideia de que todos compunham um só corpo, mesmo que seus membros
constituintes estivessem distantes, apartados. O terceiro aponta para o chamado
impulso da experiência mística. No
entanto, o que nos interessa aqui é apenas o primeiro aspecto por este tratar
da preocupação dos jesuítas com o registro escrito da informação. No período da
colonização do Brasil, por exemplo, a correspondência era, basicamente, a única
maneira de se relatar os fatos ocorridos nas Missões encampadas pelos Jesuítas.
Assim sendo, compreende-se a razão da preocupação do Padre Luiz Figueira em registrar
todas as informações sobre a Missão do
Maranhão, tal qual se supõe, fez o Padre Antonio Vieira acerca da Missão da Serra da Ibiapaba. Neste
caso, o termo “relação” em Relação do
Maranhão, por exemplo, refere-se à obrigação que os missionários tinham de
relatar, de fazer um relatório aos seus superiores sobre os andamentos nas
Missões. A relação (ou o relatório) não podia ser escrito de qualquer maneira.
Embora a escrita presente no texto da Relação
do Maranhão aponte para uma escrita produzida por um homem de profundo
saber lingüístico, trata-se de uma escrita simples, objetiva, sem floreios.
Isso também se deve às orientações estabelecidas por Loyola. Para ele, em
determinação aos padres, suas cartas deveriam ser escritas para que pudessem
ser lida por qualquer pessoa, especificamente as autoridades de Roma, as quais
sempre se mostravam desejosas de saber sobre outros mundos. Em carta ao Padre
Roberto Claysson, de 1555, na qual recrimina o estilo empregado pelo padre,
afirma: uma coisa é a “eloqüência, atrativo e gala da linguagem profana”;
outra, é aquela que cabe ao religioso, para quem o estilo conveniente deve
assemelhar-se ao uso dos adornos recomendáveis para uma “matrona”, que sempre
deve “respirar gravidade e modéstia. O modo de expressão não deve ser jamais
exuberante e juvenil, e quando tiver de ser copioso, que o seja “mais por
abundância de ideias que de palavras”.
Para Pécora (2012):
O decoro proposto por Inácio para
a escrita jesuítica é fundamentado na ideia de que a virtude se opõe às
“palavras inchadas de orgulho”. Assim, os ornatos da elocução exigem sempre
limites de aplicação e submetem-se a uma ordem, gramaticalmente correta,
ajustando a seriedade do assunto à simplicidade das palavras. Com esse cuidado,
seria possível garantir a fidedignidade do relato e a verdade da fé. (Pécora,
2012:36)
Destarte, o estilo presente na Relação
do Maranhão deixa claro a mestria que possuía o Padre Luiz Figueira no
trato com a língua portuguesa. Compôs como afirma Seraine (1987) a Carta Bienal, em Latim, de 1602 a 1603.
Dedicando-se ao estudo do tupi, elaborou a Arte
da Gramática da Língua do Brasil, a segunda sobre o tema, no Brasil.
Figueira, embora tendo sido educado e vivido quando as ideias renascentistas já
influenciavam o mundo, opta por uma escrita contida, quando o esperado seria
uma escrita rebuscada já recorrente entre os autores contemporâneos seus. Assim
sendo, a opção por um estilo mais simples na escrita da Relação do Maranhão visa, claramente, atender as orientações
pré-determinadas no que concerne à maneira de escrever, devidamente registradas
nas Constituciones, elaboradas por
Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Assim sendo, defendemos que
um estudo acerca da Relação do Maranhão
deva abarcar aspectos ligados a história, a cultura e a língua; apoiando nossa
posição naquilo explicitado por Abbade (2006) quando afirma:
Língua, história e cultura
caminham sempre de mãos dadas e, para conhecermos cada um desses aspectos,
faz-se necessário mergulhar nos outros, pois nenhum deles caminha sozinho e
independente. Portanto, o estudo da língua de um povo é, consequentemente, um
mergulho na história e cultura deste povo. (Abbade, 2006:214)
No caso do povo brasileiro, especificamente no período colonial, a língua
dominante é a do indígena, o que obriga os catequistas a aprendê-la para melhor
conduzirem seus interesses. Por muito tempo, observa-se certo equilíbrio entre
a língua do colonizado e a do colonizador até que o português, bastante
influenciado pela língua “nativa”, predomine. De todas as trocas culturais
operadas no período colonial entre indígenas e portugueses, aquela que agiu
diretamente na formação da língua nacional foi, certamente, a mais profunda e a
mais relevante. Neste caso, deve-se considerar a relevância intelectual dos
missionários da Companhia de Jesus na constituição e evolução lingüística
nacional iniciada no período colonial brasileiro.
Relação do Maranhão (pág.1) |
Artigo escrito em parceria com Geórgia Gardênia Brito Cavalcante. Disponível na íntegra em: Encontro Internacional de História.
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