segunda-feira, 30 de março de 2015

CEM IDEIAS QUE DERAM EM NADA

O estranhamento talvez seja a primeira sensação que se tem ao ler o livro Cem ideias que deram em nada (2014), de Antonia Pellegrino. A segunda sensação é de que as cem ideias que a autora teve, realmente não deram em nada. Isso, no entanto, não se confirma, uma vez que as cem ideias acabaram dando em um livro. O trabalho sobre o qual discorremos foi publicado pela editora Foz. A imagem da capa é O Sonhador (The dreamer), óleo sobre tela, de 2006, de autoria de Adriana Varejão.

O estranhamento que a obra causa está mais na sua forma do que no seu conteúdo. Na houve, por parte da autora, nenhuma aparente preocupação em organizar seu livro seguindo estruturas formais observáveis. E nisso a autora marca ponto, uma vez que as ideias que expõe não merecem a clausura da forma. São ideias que precisavam ser explicitadas em seus próprios contextos. Dessa forma, a obra de Pellegrino é composta de crônicas e textos outros que poderiam ser considerados contos; alguns deles podem muito bem ser identificados por aforismos, versos etc. Cada capítulo se inicia sempre com o termo “ideia”. Assim, tem-se ideia de desejo (p.15), constituído apenas de uma “frase”: O gato branco arranha bolhas de sabão, texto que inicia o livro; terminando com ideia de maldição (p.159): o que você não termina, te acompanha até o fim. Desejo e maldição são as ideias antagônicas que abrem e fecham a obra.

Ao longo do trabalho, no entanto, observa-se o uso dos mais variados gêneros de escrita, o que faz do trabalho de Antonia Pellegrino, uma colcha de retalhos, cabendo ao leitor fazer as leituras que bem lhe aprouver. A experiência da autora com a tevê e o cinema (Pellegrino adaptou para as telas, por exemplo, o livro Vale Tudo (2007), de Nelson Motta, sobre a vida de Tim Maia) pode ser percebida, por exemplo, no texto Ideia possivelmente engraçada para seriado de baixo orçamento (p.18-19), Ideia para execução (p.27), quando apresenta as etapas de um “plano de negócio e estratégia de financiamento para produção do longa metragem” ou ainda Ideia para cena de amor deixada na lixeira da montagem (p.132-133).

Há, em Cem ideias que deram em nada, ideias para todos os gostos. São ideias que podem se efetivar no plano pessoal, no campo profissional; até ideias que não podem jamais se efetivar, mas se manter apenas no campo das ideias; o que também não é uma má ideia. Assim sendo, há ideias sobre o amor, o tesão, a democracia, o ressentimento, o tempo; bem como a ideia de ideia (p.152), na qual a autora reproduz (ou simula) uma conversa via e-mail. E o livro de Antonia Pellegrino é assim, uma espécie de brainstorming, pois se não a paramos de pensar, por qual razão parar de escrever. Se pensamos “tudo ao mesmo tempo agora”, esse “tudo” pode ser muito bem transposto para o papel, tal qual o pensamos (não o papel, mas o “tudo”), sem a necessidade de ser organizado em formas, fórmulas, escaninhos  e estruturas. Dessa forma, é possível, inclusive, unir O peixe prego com o tubarão martelo, em uma Ideia de rima (p.84) ou ter a Ideia ruim (p.96), de Escrever contos em leques e exibir em uma galeria de arte. Nesse caso, é melhor nem dar ideias!


O livro de Antonia Pellegrino está por aí, entregue ao mundo para o deleite do leitor. Cama cansa, o que segura casamento é feijão, afirma a autora, em Ideia de romantismo (p.120). Parafraseando a autora, a forma muitas vezes cansa, o que segura uma obra é o conteúdo. No caso de Cem ideias que deram em nada, a forma parece querer engolir o muito de conteúdo que está diluído nos textos que compõem o trabalho, cabendo ao leitor não se deixar levar pelos estranhamentos proporcionados pela obra, pois, muitas vezes, as nuvens brancas viajam onde ninguém nunca esteve.

domingo, 15 de março de 2015

QUERIA VER VOCÊ FELIZ


Muitas são as histórias de amor que lemos, vivemos ou ouvimos falar. Cada uma dessas histórias tem suas peculiaridades e trazem em si as alegrias e as dores dos envolvidos. Se perguntados se fariam tudo de novo, provavelmente os amantes diriam que sim, pois nem sempre são eles os donos dos seus destinos, mas o Amor.

A literatura universal está repleta de casais que, fictícios ou não, viveram grandes paixões. Convém inclusive indagar, o que seria da vida sem uma grande paixão, um grande amor para ser vivido. Às vezes, grandes amores se tornam grandes obras, mas nenhuma grande obra jamais valerá mais que um grande amor. É claro que nos encanta o amor de Fernando e Isaura, Tristão e Isolda, Heloísa e Abelardo, Isabeau e Navarre ou Romeu e Julieta; entre tantos outros. O curioso é, muitas vezes, não nos darmos conta daqueles grandes amores que acontecem bem diante dos nossos olhos e que nem sempre percebemos.

Uma linda (e triste) história de amor nos é contada pela escritora Adriana Falcão no seu mais recente trabalho intitulado Queria ver você feliz, publicado pela editora Intrínseca, no ano de 2014. Trata-se da história de amor vivida por Caio e Maria Augusta, pais da autora. A narrativa de Falcão é costurada pelas cartas trocadas pelo casal desde que se conheceram na juventude até boa parte da vida de casados. Chama-nos atenção a boa qualidade da edição  do livro que, além das cartas reproduzidas em cor de destaque, também traz fotografias do acervo pessoal da família da autora, o que enriquece em muito a obra.


Adriana Falcão é escritora, cronista e roteirista, nome conhecido por trabalhos na televisão e no cinema. Queria ver você feliz é sua primeira incursão pela literatura de não ficção, o que faz com destacada mestria. A maneira escolhida pela autora para contar a história de amor, vida e morte dos seus pais é inovadora, uma vez que ela deu ao próprio Amor a função de narrar os fatos. É claro que aqui e ali o narrador se empolga e desanda a falar dele mesmo; não tarda e eis que ele retoma o fio da narrativa.  E se a história de Caio e Maria Augusta ganhou o mundo, a culpa (se é que há culpa) é do Amor, em conluio com quem teria aberto “um certo baú florido onde estavam guardados cartões, bilhetes, retratos e cartas”. Mas ainda bem que alguém se dignou abrir o tal do baú, pois a história de Maria Augusta e Caio não poderia ficar eternamente encerrada em um baú; mesmo que florido. O amor de Maria Augusta e Caio precisava ser registrado e amplamente divulgado, para ser lido com o mesmo fervor com o qual lemos sobre Guinevere e Lancelot, por exemplo.

A narrativa de Adriana Falcão faz com que o leitor sinta cada mudança ocorrida na relação das personagens principais, desde seus mais tenros encontros aos momentos mais difíceis que tiveram que enfrentar (sempre juntos) ao longo da vida. O texto de Falcão não deve ter sido muito fácil de ser construído, tendo em vista ela também ser  personagem em uma história palmilhada por recorrentes picos de alegrias, perdas, tristezas e dores. Às vezes, no entanto, o escritor precisar se afastar do fato para poder ver de fora e contar da melhor maneira possível aquilo que ele achava que já estava pronto e imutável. Além de uma possível catarse, o registro publicado por Falcão deve tê-la aproximado cada vez mais dos próprios pais e da própria família. Caio e Maria Augusta eram dois. Tornaram-se apenas um, para depois restar apenas um sozinho, para depois restar apenas os registros e as memórias.

Queria ver você feliz é uma das melhores narrativas de não ficção publicadas nos últimos anos. Advirto-o, caro leitor, que não se trata de uma história leve. Embora o narrador, o Amor, use de toda sua poesia e bom humor na condução da narrativa, ele não consegue fazer com que o leitor não receba sua carga de dor. E se, ao final da leitura, você se sentir pesado, triste, cansado e com a impressão de que gostaria que as coisas tivessem sido diferentes para Caio e Maria Augusta; não ache estranho, pois você realmente estará se sentindo assim.  Não entenda isso como um problema, nem como um obstáculo para a leitura do livro, mas como uma maneira de compreender que a narrativa foi escrita com sangue e pulso, como devem ser escritas as grandes narrativas. A depressão, a síndrome de bordeline, comprimidos e álcool podem até matar corpos; mas jamais terão o poder de extinguir um grande amor. E o Amor, mais do que ninguém, sabe muito bem disso, pois: “the cigarettes you light / One after another / Won’t help you forget her / And the way that you love her”. 

O que todos queremos, na maioria das vezes, é apenas ver felizes aqueles a quem amamos.